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Chuteiras imortais

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 20 de abril de 2006

Acusado pelo sr. Diogo Mainardi de dar uma força aos parentes para a conquista de altos cargos na burocracia federal, o jornalista Franklin Martins, seqüestrador aposentado, protegido de Fidel Castro e queridinho do establishment petista, saiu-se com uma aposta: “Se qualquer um dos 81 senadores ou senadoras vier a público afirmar que o procurei pedindo apoio para o meu irmão, pendurarei as chuteiras e irei fazer outra coisa na vida.” Caso contrário, exige o indignado desafiante, o perdedor Mainardi é que deverá abdicar de sua coluna em “Veja” e reduzir-se a um silêncio contrito.

É uma maravilha, não é mesmo? Senadores inocentes não hão de confessar o que não fizeram; e os culpados, se existem, não vão querer jogar fora a própria reputação só pelo prazer de arruinar junto a de um jornalista e exaltar a de outro. Pior: quem ama o sr. Martins ao ponto de arriscar-se a lhe prestar um favor ilícito não pode estar também apaixonado pelo seu inimigo Mainardi ao ponto de cometer suicídio político por ele. A probabilidade de que alguma confissão apareça, quer venha de culpados ou inocentes, é portanto de exatamente zero por cento. O sr. Martins não é bobo o suficiente para não perceber isso. Não sei se ele assediou senadores com pedidos de empregos para o irmão, a esposa, a sogra ou o tetravô. Mas sei que, no esforço de fugir a essa acusação, ele se revelou é uma boa bisca. Apostando as chuteiras num teste premeditadamente inócuo, ele está seguro de poder calçá-las no dia seguinte e ainda gabar-se de ter feito o adversário de trouxa. O desafio que ele lançou ao sr. Marnardi não é um desafio, não é sequer um blefe: é uma simulação de blefe, concebida para enganar pessoas afetadas de déficit crônico de atenção. O cálculo psicológico por trás desse golpe de teatro é tão malicioso, tão perverso, que ele depõe contra a idoneidade do sr. Martins mais do que poderiam fazê-lo mil colunas de mil Diogos Mainardis.

No entanto, não é impossível que ele tenha concebido o engodo sem intuito conscientemente maligno. Talvez ache até que foi honesto. Cabeça de esquerdista é assim: uma vez que você aboliu todos os princípios morais consagrados pela civilização, substituindo a clareza implacável das suas deduções por uma maçaroca obscura de slogans politicamente corretos, todos os arranjos casuísticos são possíveis: você está pronto para se tornar um príncipe da embromação e ainda acreditar que desonestos são os outros. Quando um sujeito está intelectualmente persuadido de que o bem e o mal são apenas construções ideológicas mas ao mesmo tempo insiste em cultivar o sentimento reconfortante de que está do lado do bem absoluto, não há mais limites para o exercício do auto-engano, que culmina quando o mentiroso passa a acreditar nas próprias mentiras ao ponto de emocionar-se com elas. A essência da moral esquerdista é a auto-persuasão histérica.

O caso do sr. Martins, em si mesmo, não significa nada, e sua desavença com o sr. Mainardi é tão decisiva para o futuro da humanidade quanto uma trombada de velocípedes num playground. O que torna o sr. Martins interessante é a tipicidade da sua forma mentis, cujos similares, hoje, superlotam as universidades, as redações, a burocracia filantrópica e a rede internacional de ONGs ativistas. Por enquanto, a lógica moral antiga, negada em palavras, permanece vigente no fundo, como um referencial semiconsciente a que até seus detratores mais ferozes voltam a apelar quando precisam. Em uma ou duas gerações, ela terá desaparecido por completo da memória geral: o casuísmo politicamente correto usurpará o prestígio do Decálogo, da ética aristotélica, do Direito Romano e do Código de Hamurabi. A mentira indignada, apoiada na vociferação da militância organizada, será a única autoridade moral restante. Então será preciso escolher entre ela e o caos integral. Nesse dia, as chuteiras de Franklin Martins se tornarão monumentos à honestidade.

Trágica leviandade

Olavo de Carvalho

Época, 21 de outubro de 2000

Incapazes de transformar a si mesmos, os esquerdistas buscam transformar o mundo

Jamais conheci um esquerdista que chegasse a sê-lo por etapas, por experiência acumulada e avaliação ponderada dos fatos. Todos tomam posição logo de cara na entrada da adolescência, antes de saber coisa alguma do mundo, e passam o resto da vida julgando tudo à luz dessa opção inicial. Nada lhes parece mais normal, portanto, que presumir que as opiniões contrárias às suas tenham se originado de escolhas igualmente irracionais, apenas com signo invertido.

Acontece que a quase totalidade dos pensadores anticomunistas é constituída de indivíduos que um dia foram comunistas e depois mudaram de idéia por um lento, difícil e doloroso processo de autodesmascaramento. As obras de Arthur Koestler, Irving Kristol, David Horowitz, Whittaker Chambers, Milovan Djilas, Daniel Bell e tantos outros – hoje excluídas do mercado livreiro – não são apenas “argumentações” em favor de uma “posição”: são expressões de uma experiência longamente amadurecida no isolamento e na árdua conquista de si. Cada um desses homens pagou um alto preço moral por suas idéias, enquanto as dos comunistas foram recebidas, prontas e gratuitas, de um ambiente juvenil onde circulavam como frases feitas.

É verdade que, para muitos comunistas, sua escolha ideológica trouxe provações e riscos. Mas justamente isso lhes deu um pretexto edificante para que se dispensassem de questionar as doutrinas às quais tinham oferecido a vida. Quem, depois de passar por perseguições, prisão, tortura, há de querer reconhecer que sofreu tudo isso por uma mentira? Assim, o heroísmo esquerdista é de ordem apenas física e social, sem profundidade interior: quanto mais o militante tem a coragem de padecer por suas crenças, mais covardemente foge do risco de se decepcionar com elas. Ademais, seu sofrimento tem sempre o reconforto da solidariedade coletiva, organizada, mundial. Sozinho, no cárcere, ele tem a certeza de que milhões lutam a seu lado. Quem haverá de querer, no fundo do poço, abdicar desse último consolo?

Mas é precisamente esse heroísmo em dose dupla que se encontra nos homens que, após sofrer perseguição de seus adversários políticos, consentiram em suportar, solitários, o ódio de seus antigos companheiros. Heroísmo, na verdade, triplo, pois entre a primeira e a segunda provação vem o mais difícil: a travessia do deserto, a luta para vencer a si mesmo. Por isso os clássicos do anticomunismo têm aquela tensão moral, aquele peso das decisões plenamente responsáveis e aquela high seriousness que faltam por completo às obras de seus adversários. Se as biografias pessoais de Marx, Lênin, Mao, Stálin e Fidel são uma galeria de baixezas (envolvem desde rituais satanistas e crueldade para com os familiares até pedofilia), não são menos deprimentes os perfis intelectuais de um cínico imoralista como Brecht (o homem que disse dos acusados no Processo de Moscou: “Se eles são inocentes, merecem ser fuzilados precisamente por isso”), de um sabujo profissional como Lukács, sempre pronto a mudar de opinião sob comando, ou de um palhaço verboso como Jean-Paul Sartre, sem falar nas dúzias de vigaristas acadêmicos que o famoso experimento Sokal desmascarou definitivamente.

Há uma trágica leviandade em homens que, incapazes de transformar a si mesmos, se dispõem a “transformar o mundo”. Que mundo pode nascer daí senão uma pantomima sangrenta?

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