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O filósofo predileto dos incapazes

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 6 de setembro de 2008

Fazendo eco ao consenso da intelectualidade esquerdista, o Nouvel Observateur apresenta Alain Badiou como “l’un des plus grands noms de la philosophie mondiale”. Mas é óbvio que ele não é um filósofo de maneira alguma, apenas um demagogo comunista da mais baixa espécie, uma reencarnação atrofiada do pior Jean-Paul Sartre, sendo aplaudido como filósofo justamente por isso. Nada caracteriza mais acentuadamente a mídia mundial desde os anos 60 do que seu ódio visceral à filosofia, sua necessidade compulsiva de substituí-la por algum simulacro idiota apropriado à política do dia. Na primeira década do século XX, os jornais aceitavam como filósofos representativos aqueles que os estudiosos de filosofia apontassem como tais. Depois a mídia adotou seus próprios critérios e, em vez de divulgar a alta cultura, passou a moldá-la a seu belprazer. Foi aí que tipos como Badiou se tornaram filósofos eminentes, enquanto a filosofia de verdade virou um segredo esotérico, reservado a um pequeno círculo de highbrows.

Tal como Sartre, Badiou não toma como ponto de partida uma pergunta, uma dúvida, um desejo de esclarecimento e fundamentação, mas a expressão histérica de uma preferência dogmática injustificada e injustificável, recobrindo-a em seguida de floreios retóricos tecidos com vocabulário filosófico, mas carentes do mínimo senso analítico e autocrítico que precisariam para ser admitidos até mesmo como trabalhos escolares de filosofia.

O dogma essencial da doutrina Badiou é aquele alardeado por Jean-Paul Sartre: “Todo anticomunista é um cão.” Se me ocorre a idéia de que todo comunista é uma hiena, não tomo isso como premissa, mas como mero resumo figurativo de exposições históricas fartamente documentadas e análises críticas que não deixam margem para nenhuma conclusão mais suave. O dogma de Sartre-Badiou, ao contrário, é um aviso pregado na porta para informar aos visitantes que qualquer tentativa de análise crítica será repelida mediante gritos de horror. A fuga à análise crítica, em Sartre, era puro fingimento maquiavélico, mas em Badiou ela expressa uma genuína incapacidade. Sartre, quando se fazia de fanático, tinha para isso um pretexto intelectualmente sofisticado: sua teoria do primado da existência sobre a essência justificava tomadas de posição irracionais como um esforço para “existir” – numa linha bem parecida, no fundo, com o arbitrário “decisionismo” de Carl Schmitt, que justificava as políticas do Führer com a mesma cara-de-pau com que o autor de A Náusea justificava as de Stalin, tornando-se nauseabundo ele próprio. Badiou não precisa de nada disso. Sua adesão passional ao comunismo é um princípio autofundante, desnecessitado de qualquer justificação, mesmo simulada. É o axioma fundamental, e dele deduz-se tudo o mais que o tagarela incansável venha a dizer sobre o que quer que seja.

Numa de suas mais célebres conferências (v. http://alainindependant.canalblog.com/archives/2007/11/11/6847208.html), ele toma o comunismo como “uma hipótese” em vias de realização – e, com a habilidade filosófica de um mau aluno de ginásio, compara as belezas dessa hipótese, não à hipótese contrária, democrático-capitalista, porém às más qualidades reais que ele crê enxergar no capitalismo existente, ao passo que os males do comunismo real não precisam entrar na comparação porque a hipótese – por hipótese – já os absorveu e santificou nas suas futuras belezas hipotéticas. A estrutura do raciocínio, em si, é a de um fingimento histérico que tenta camuflar sua própria irracionalidade mediante invectivas furiosas que dissuadem o ouvinte de cobrar do pretenso filósofo os deveres mínimos da racionalidade filosófica. Admito que seja uma técnica, mas é uma técnica de charlatão.

Mais charlatanescamente ainda, ele condena a violência policial sangrenta do regime soviético não por ser imoral em si, mas por “não ter conseguido salvar da inércia burocrática” o regime comunista. Ele apela, sob esse ponto de vista, à doutrina de Mao Dzedong segundo a qual “o movimento” deve prevalecer sobre a hierarquia estática do Partido. Reconhecendo que esta teoria também descambou em violência, ele se esquece de observar que foi violência três ou quatro vezes maior que a dos soviéticos, revelando-se um remédio mais letal do que a doença e desqualificando-se, ipso facto, como crítica válida ao descalabro soviético. Empinando o narizinho para fazer-se de moralmente superior ao “comunismo de Estado” soviético, ele faz a apologia do maio de 68, quando “a sociedade civil”, em vez do Partido, tomou a iniciativa de tentar estrangular a burguesia. Mas no regime soviético quem mandava não era o Estado, era o Partido, do qual o Estado era apenas um instrumento maleável. E que é a “sociedade civil organizada” senão a versão renovada, gramsciana, do Partido? Em suma, contra os males do Partido, Badiou sugere como remédio… o Partido.

A coisa é de um primarismo digno do dr. Emir Sader, e não é de espantar que ela termine pela proclamação de um inalterado amor irracional àquilo que não se pode justificar racionalmente.

Comparar ideais com ideais, fatos com fatos, e não os belos ideais de um lado com os fatos supostamente deprimentes do outro, é o princípio elementar, já não digo da filosofia, mas de qualquer atividade intelectual, mesmo rudimentar, que se pretenda honesta. Esse preceito está infinitamente acima da capacidade de Alain Badiou. Por isso mesmo é que entidades dedicadas à imbecilização universal, como o são hoje em dia os órgãos da grande mídia, o consagram como um eminente filósofo. Ele é o filósofo daqueles que, por inépcia congênita ou safadeza adquirida, estão condenados a jamais saber o que é filosofia.

 

Aritmética do engodo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de maio de 2008

Desde que o assassinato da menina Isabella apareceu na mídia, o comentário esquerdista do episódio tem sido invariavelmente o mesmo: é imoral fazer alarde em torno de uma só criança assassinada, num país onde os menores de idade vítimas de homicídio se contam aos milhares.

A nuance ideológica aí subentendida é que o individualismo burguês reserva sua compaixão para o caso singular para não ter de enxergar o problema social por trás dele.

Jamais ocorre a esses sapientíssimos denunciadores da alienação capitalista a hipótese de que o caso singular desperte a violenta emoção coletiva justamente por ser um símbolo condensado do problema social, a gritaria em torno dele expressando portanto um estado de consciência alerta e não de alienação.

Intelectuais de esquerda jamais hesitam em torcer a realidade como se fosse roupa no tanque, para extrair dela um pouco de água suja que possam mostrar ao mundo como prova da maldade burguesa e, en passant , da sua própria superioridade moral.

Por isso mesmo não me surpreendi nem um pouco ao ler, na Folha Online , que, segundo Jean Pierre Langellier, articulista de Le Monde , os brasileiros, um povo malvado que “bate os recordes de violência com 50 mil homicídios por ano”, derrama lágrimas de crocodilo por uma criança enquanto a cada dez minutos um menor de 14 anos é assassinado neste país. Fazendo as contas — seis crianças por hora, 144 por dia, 52.560 por ano – tínhamos aí um fenômeno aritmético assombroso: anualmente, morriam assassinados 50.000 brasileiros, dos quais 52.560 eram crianças. Diante disso, pensei seriamente em voltar atrás nas críticas que um dia fizera à teoria do matemático alemão Georg Cantor segundo a qual existem infinitos maiores e menores. Pelo menos no Brasil, segundo a Folha Online , um subconjunto podia ser maior do que o conjunto que o abrange. Com o detalhe especialmente notável de que adultos, velhos e adolescentes maiores de 14 anos jamais eram assassinados nesta parte do universo. Todos escapavam ilesos à violência geral, e as criancinhas ainda tinham um superavit de 2.560 cadáveres.

Horas depois, veio o desmentido: a Folha confessava o erro, admitindo que o pobre Langellier não dissera “a cada dez minutos”, mas “a cada dez horas”. O número de crianças assassinadas por ano baixava drasticamente de 52.560 para 876.

Isso era certamente um alívio para o leitor, mas não melhorava em nada a situação do articulista do Monde nem da Folha Online . O sentido geral do artigo seguia a linha oficial do argumento esquerdista: enfatizar a “violência doméstica”, minimizando o papel dos quadrilheiros armados na produção nacional de cadáveres. Esse mote foi posto em circulação pela campanha do desarmamento civil, mas, falhado o seu objetivo originário, tem servido para uma infinidade de objetivos suplementares, entre os quais abortar preventivamente a possibilidade de uma revolta popular contra o banditismo e os agentes do Foro de São Paulo que o acobertam. Lançando as culpas da violência na “elite branca racista” e na maldita instituição da família, esse discurso prepara o terreno para a implantação de leis raciais e do casamento gay , sugerindo implicitamente – e às vezes explicitamente – que entre outros inumeráveis benefícios essas medidas trarão a paz a um país atormentado pela violência e pelo crime. Tão natural esse modo de pensar pareceu ao redator da Folha Online , que um automatismo inconsciente o levou a multiplicar por sessenta o número de crianças assassinadas, enfatizando o caráter eminentemente homicida da instituição familiar, mesmo ao preço de estourar as leis da aritmética.

Mas, embora realizada com uma aritmética menos louca, a mesma intenção já estava no artigo original de Langellier. Ao confrontar o número de crianças assassinadas com o total dos homicídios brasileiros, ele enfatizava que a maior parte da primeira cifra era produzida pela “violência doméstica”, sugerindo que esta desempenhava um papel essencial, dramático, no quadro da criminalidade brasileira. Mas façam as contas. Dos 50 mil brasileiros assassinados anualmente, 876 são crianças. Segundo o Censo de 2000 (v. www.ibge.gov.br), os menores até 14 anos no Brasil são 50.266.123: um terço da população nacional. Ora, se o grupo etário que constitui um terço da população nacional fornece a quinquagésima-sétima parte do total de vítimas de homicídios, está claro que esse grupo não é, de maneira alguma, um alvo preferencial de violência no conjunto da criminalidade nacional, não é nem mesmo um alvo estatisticamente significativo. Mesmo se aquelas 876 vítimas tivessem sido todas assassinadas por seus pais – o que está longe de ser o caso –, seria ainda monstruosamente desproporcional atribuir à brutalidade da família contra as crianças um papel relevante no quadro da violência nacional. Ainda que o assassinato de uma só criança seja em si mais revoltante do que quaisquer crimes cometidos contra adultos – e o escândalo em torno do caso Isabela é expressão natural dessa revolta –, isso só torna ainda mais injusto e insultuoso retratar a família brasileira como um ambiente de terror assassino, como se o perigo maior viesse dela e não de bandidos treinados e armados pelas Farc.

Esse mesmo intuito de desviar para “a sociedade” as culpas que pertencem ao banditismo organizado e ao esquema revolucionário latino-americano que o protege apareceu, da maneira mais visível, onde, em condições normais, menos se esperaria encontrá-lo: no ato público promovido pela ONG “Comunidade Cidadã” no dia 16, nominalmente para homenagear as vítimas da onda de terror espalhada pelo PCC nas ruas de São Paulo em maio de 2006 (v. Carta aberta à sociedade paulistana).

Após um velório realizado ante 493 caixões de defunto, o ponto culminante do evento foi a entrega de um Manifesto da entidade aos representantes do poder público. Ao longo desse documento, altamente significativo da mentalidade ativista em nossos dias, não aparece nem uma única vez a expressão “PCC” nem se faz qualquer menção aos autores do crime. Em compensação, fala-se muito da “exclusão”, da “exploração dos negros pelos brancos” e da malvada sociedade adulta que “tem medo dos jovens” e se dedica a extingui-los, sobretudo, é claro, quando são de raça negra. Em seguida pede-se a punição “dos culpados”, sem distinguir nem de longe entre os culpados daquele crime em especial e os de tudo o mais que a “Comunidade Cidadã” detesta.

A conclusão, implícita mas altamente eloqüente, é que não houve nenhum massacre de brasileiros pelos bandidos do PCC: houve, sim, a matança de negros pelos brancos, de pobres pelos ricos e privilegiados, de jovens progressistas por adultos conservadores e reacionários.

Quando uma facção política tem a hegemonia cultural e ao mesmo tempo o domínio do Estado, isto é, o controle simultâneo da circulação de idéias e dos meios de ação política, ela pode fazer milagres, agindo unificadamente sobre toda a sociedade por meio de uma rede de conexões tão sólida quanto invisível, de modo que todas as correntes de causas, indo para qualquer lado que seja, levem sempre a água ao mesmo moinho, façam rodar sempre a mesma engrenagem, fortaleçam sempre quem já é o mais forte: um grupo de organizações esquerdistas promove a solidariedade continental às Farc, as Farc armam o PCC, o PCC mata 493 pessoas inocentes e, fechando o círculo, outras organizações esquerdistas íntimamente associadas às primeiras tiram proveito publicitário do massacre, debitando as culpas das ações da esquerda na conta de um bode expiatório atônito, que por medo e por humanitarismo sonso ainda consente em colaborar paternalmente com o empreendimento, como um Judas de sábado de aleluia que, para se fazer de simpático, se malhasse a si próprio.

A articulação da violência com a sua exploração ideológica em favor dos seus próprios mentores e controladores é prática usual no movimento revolucionário pelo menos desde o século XVIII. Sempre que a operação se repete, o fator decisivo para o seu sucesso é a credulidade sonsa de uma sociedade que se deixa passivamente inculpar pelo mal que o próprio acusador lhe faz.

Até quando os líderes políticos e empresariais nominalmente não esquerdistas ou até anti-esquerdistas consentirão em participar dessa farsa masoquista? Quando perceberão que estão sendo manipulados por indivíduos amorais, maquiavélicos, sem princípios nem o mais mínimo sentimento de honra?

Ensaio de patifaria comparada

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 21 de agosto de 2006

A situação na terrinha anda tão deprimente que se tornou uma questão de auxílio humanitário lembrar aos brasileiros, de tempos em tempos, que o nosso país não tem o monopólio da patifaria universal. A propaganda anti-religiosa espalhada por ONGs milionárias, por intelectuais ativistas e pela mídia chique nos EUA tem apelado a expedientes tão mesquinhos, tão sórdidos, que às vezes chego a me perguntar se não fui demasiado impiedoso com os vigaristas nacionais em O Imbecil Coletivo.

O artigo que reproduzo abaixo foi escrito originariamente em inglês para um público americano, mas, tão logo botei nele um ponto final, achei que seria útil para os meus compatriotas, não só pelo que informa da guerra cultural nos EUA, mas por fornecer um exemplo de como as sociedades altamente desenvolvidas são também altamente desenvolvidas no que não presta. Espero que sirva de consolo aos leitores do noticiário nacional da semana.

O motivo que me levou a escrevê-lo foi um artigo cheio de golpes baixos publicado pelo prestigioso biólogo Jerry Coyne em The New Republic, uma revista esquerdista que, em geral, é anormalmente decente. O autor da coisa, irritado com a articulista conservadora Ann Coulter, tentava desmoralizá-la esfregando no nariz dela suas credenciais acadêmicas de professor da Universidade de Chicago; mas, levado pelo ódio emburrecedor, acabava apresentando argumentos que fariam corar de vergonha o próprio dr. Emir Sader, se não padecesse de icterícia mental.

A sra. Coulter disputa com Rush Limbaugh e Michael Savage o primeiro lugar na lista dos colunistas mais odiados pelo establishment de esquerda. O currículo que ela apresenta para isso constitui-se de uma língua ferina vitaminada por um senso de humor desconcertante e uma capacidade de pesquisa fora do comum. Além disso, como a mulher é bonitona, fica mais irritante ainda. Sua popularidade cresceu a tal ponto que uma fábrica de brinquedos fez dela o modelo para uma bonequinha da série Barbie: você aperta a barriguinha dela e ela diz coisas horríveis contra os esquerdistas.

O prof. Coyne ficou especialmente revoltado com o último livro da sra. Coulter, Godless: The Church of Liberalism, “Os Sem Deus: A Igreja do Esquerdismo” (Crown Forum, 2006), que submete a seita esquerdista-materialista-evolucionista a um tratamento tão sádico quanto merecido. Para insinuar que a dona estava enfeitiçada, o cientista de Chicago deu a seu artigo de protesto o título trocadilhesco de “Coultergeist” e anunciou solenemente sua intenção de exorcizar a sra. Coulter mediante a água benta da sua erudição biológica. Infelizmente, a raiva foi tanta que o capeta acabou se apossando é da mente do professor, induzindo-o a exibições de raivinha mais próprias da inveja feminina do que da investigação científica.

Mas não pensem que esse artigo constitui uma exceção aberrante. O que me chamou a atenção nele foi, ao contrário, a sua tipicidade: querendo contestar o retrato cruel que Ann Coulter fizera da tribo intelectual esquerdista, o prof Coyne o ilustra com exatidão milimétrica.

Esperei uns dias e, como ninguém respondesse ao professor, resolvi fazê-lo eu mesmo, escrevendo, a duras penas, em língua de gringo, que aqui retraduzo em português:

 

O modo de raciocinio do prof. Coyne

 

Ao comentar o artigo do prof. Jerry Coyne, “Coultergeist” (The New Republic, online, 31 july 2006) não tentarei defender Ann Coulter — eu poderia antes tomar lições dela sobre como defender-me a mim mesmo. Nem prodigalizarei aos gentis leitores as minhas eruditíssimas opiniões sobre evolução, design inteligente, etc., pela simples razão de que não tenho nenhuma. Concedendo à minha irresoluta pessoa o direito de permanecer em dúvida em questões nas quais as certezas absolutas são tão abundantes hoje em dia, deixarei de lado essas altas matérias, limitando-me a enfocar alguns dos argumentos do prof. Coyne, os quais ilustram de maneira muito didática como a profunda ignorância de um assunto não é jamais obstáculo a que alguém o discuta com elevada autoridade científica.

De modo geral, boa parte da atividade acadêmica hoje em dia consiste em delimitar com cuidadosa precisão as fronteiras de um campo especializado de pesquisas e, com base na autoridade adquirida no seu estudo, dar opiniões sobre tudo o mais.

Como tarimbado professor de ecologia e evolução da Universidade de Chicago, o prof. Coyne está habilitado a afirmar que faltam à sra. Coulter as habilidades acadêmicas requeridas para a discussão desses assuntos. Mas, das 2432 palavras do artigo que ele escreveu contra ela, só 179 são argumentos científicos especializados. Ao longo das restantes 2253, o prof. Coyne, que tão modestamente havia se furtou a nos oferecer uma exibição plena da sua alegada superioridade profissional, presenteia os leitores com suas idéias sobre história, filosofia, política e religiões comparadas, entre outros campos nos quais suas credenciais acadêmicas são tão minguadas quanto as da sra. Coulter em biologia.

A falta de educação acadêmica numa área especializada não é em si prova de ignorância total nessa área. O que distingue o prof. Coyne é que ele condensa na sua pessoa ambas essas carências ao mesmo tempo. Ele realmente não sabe nada de assuntos que não pertencem à sua esfera de competência universitária, e esta é precisamente a razão pela qual ele imagina que pertencem.

O seguinte parágrafo fornece um exemplo do que estou dizendo: “O erro de igualar o darwinismo a um código de conduta leva Coulter a formular a sua acusação mais idiota: a de que o Holocausto e os inumeráveis crimes de Stalin podem ser jogados na cara de Darwin. ‘De Marx a Hitler, os homens responsáveis pelos maiores morticínios em massa do século XX foram ávidos darwinistas.’ Quem quer que seja religioso deve tomar muito cuidado ao dizer uma coisa dessas, porque, ao longo da história, mais matanças foram feitas em nome da religião do que de qualquer outra coisa .”

Poucos autores poderiam superar o prof. Coyne em sua habilidade de comprimir tanta ignorância histórica em tão escasso número de linhas. É claro que a biologia evolucionária e a ideologia evolucionária podem ser distinguidas conceptualmente, e de fato o são para fins práticos e pedagógicos. É igualmente óbvio que a primeira pode ser defendida nos seus próprios termos, sem necessidade de recorrer a argumentos extraídos da segunda. Mas isso não significa que na sua origem elas fossem campos separados e irrelacionados, que só vieram a ser unidos por um artifício retórico concebido ex post facto pela malvada sra. Coulter. Nenhum historiador sério ignora que a ideologia evolucionária, tal como concebida por Herbert Spencer, precedeu e inspirou Charles Darwin (1). Nem ignora que Darwin, como biólogo, aceitava de bom grado a conseqüência prática mais terrível daquela ideologia, isto é, a necessidade de exterminar raças e povos inteiros em proveito da “evolução” (2); nem que, imediatamente após ter sido formulado como teoria biológica, o evolucionismo foi posto de novo a serviço da ideologia, e isto por obra de biólogos evolucionistas eminentes e não de algum doutrinário alheio aos estudos científicos. (3)

Historicamente, a evolução como ideologia e a evolução como teoria biológica estão tão entrelaçadas que só puderam ser separadas por uma distinção abstrativa posterior e pela conseqüente decisão administrativa de enviar uma delas ao departamento de História e a outra ao departamento de Ciências Naturais. Como o prof. Coyne é demasiado preguiçoso para atravessar a distância entre esses dois edifícios universitários, ele termina por tomar uma abstração mental como realidade histórica, e depois inverte os termos da sua própria confusão para debitá-la na conta da sra. Coulter.

Fortalecido pelo sucesso imaginário do seu argumento ginasiano, o prof. Coyne rapidamente descarta a afirmativa da sra. Coulter de que “os maiores assassinos em massa do século XX foram ávidos darwinistas”, como se fosse demasiado estúpida para ser discutida, quando, na verdade, ela é um fato histórico bem estabelecido. Entre os muitos livros que eliminam toda dúvida razoável quanto às crenças evolucionistas de Marx, Lenin, Stalin, Hitler e Mao Tse Tung, o prof. Coyne poderia ao menos ter checado alguns poucos (4), se ele não fosse antes inclinado a respaldar-se na sua própria imaginação como fonte historicamente confiável.

No entanto, não seria justo dizer que o prof. Coyne nem mesmo tenta raciocinar contra a afirmativa da sra. Coulter. Ele chega a construir contra ela uma sentença inteira: “Não me lembro de qualquer menção ao darwinismo no julgamento dos Médicos de Moscou.” Infelizmente, a tentativa erra o alvo por muitas milhas. O fato de um determinado princípio geral não ser alegado em defesa de um certo argumento específico não prova que ele não seja uma das premissas em que esse argumento se baseia. Ao contrário, quanto mais um princípio é geralmente aceito como senso comum, menos necessidade há de apelar explicitamente a ele em qualquer discussão específica. Na circunstância precisa apontada pelo prof. Coyne, o recurso a argumentos evolucionistas estaria aliás bastante fora do lugar, de vez que os réus (acusados de tentar envenenar Stalin) não eram membros da classe burguesa “atrasada” mas traidores pertencentes à própria elite partidária “progressista”. Quem quer que tenha se beneficiado de uma formação científica deveria estar apto a distinguir entre o argumento pertinente e uma desconversa extravagante. O prof. Coyne não está.

Mas, antes de encerrar o seu parágrafo, o prof. Coyne ainda teve tempo para enriquecê-lo com um mantra que, embora ele não o saiba, foi originariamente concebido para ser repetido pelos iletrados do mundo: “Mais matanças foram feitas em nome da religião do que de qualquer outra coisa.” Tanto quanto a evolução animal, o fenômeno dos homicídios em massa é objeto de investigação científica que requer observação acurada e rigoroso método lógico, aos quais deve-se acrescentar o alto nível de seriedade moral comproporcionado à natureza do assunto. Nenhum historiador profissional ignora que os homicídios em massa devidos a conflitos religiosos, por mais horror que nos inspirem, jamais produziram um número de vítimas nem mesmo remotamente comparável ao dos modernos movimentos revolucionários inspirados em ideologias “científicas”. O mais completo estudo quantitativo do assunto foi feito por R. J. Rummel, professor emérito de ciência política na Universidade do Havaí. As conclusões de sua pesquisa de quatro décadas são apresentadas nos livros Understanding Conflict and War, 5 vols., Thousand Oaks (CA), Sage Publications, 1975-1981, e Death By Government, New Brunswick (NJ), Transaction Publications, 1994. Ampliando o conceito para além da nuance racial implícita na palavra “genocídio”, o prof. Rummel propõe o termo “democídio” para descrever de maneira mais genérica as matanças de povos inteiros. O desenho que ele obtem do estudo dos homicídios em massa ao redor do mundo não difere, em substância, do consenso usual dos historiadores, mas lhe acrescenta a precisão do método quantitativo e a nitidez das escalas comparativas. Em suma, o número de seres humanos mortos em menos de oito décadas pelas duas ideologias evolucionistas, nazismo e comunismo (140 milhões de pessoas), ultrapassa em dez milhões a taxa total de mortos dos homicídios em massa conhecidos no mundo desde 221 a.C. até o começo do século XX, dos quais os resultantes de motivos religiosos são apenas uma fração, e a parte devida aos cristãos uma fração da fração.

É absolutamente inútil alegar, como alguns inevitavelmente farão, que as ideologias evolucionistas não são pura ciência, na medida em que a mesma falta de pureza original pode ser legitimamente imputada às motivações religiosas dos cruzados ou dos inquisidores. Ademais, no que concerne ao cristianismo em especial, nenhum sinal de anuência à necessidade de homicídios em qualquer número que fosse está nem remotamente presente no Evangelho, ao passo que o pai fundador do evolucionismo científico foi suficientemente explícito ao declarar que as matanças em massa deveriam ser aceitas como um fenômeno evolutivo normal como qualquer outro. Mais significativo ainda é o fato de que a Igreja não apelou a nenhum tipo de brutalidade antes de decorridos muitos séculos da sua fundação, ao passo que o evolucionismo já serviu de estimulante a uma das ideologias revolucionárias logo após a publicação de A Origem das Espécies, e à outra umas décadas depois, graças sobretudo aos esforços do segundo-no-comando das hostes evolucionistas, Ernst Haeckel. A afirmação do prof. Coyne de que “Se Darwin é culpado de genocídio, Jesus Cristo também é” não passa de um aberrante jogo de palavras nascido de uma mistura de ignorância histórica e ódio anti-religioso vulgar.

Essa mesma mistura leva o prof. Coyne a ostentar, como prova de que a religião é a causa universal das violências, a afirmação ridícula de que “a razão pela qual Hitler escolheu os judeus (como alvos de perseguição) foi que os cristãos os encaravam como assassinos de Cristo”. Bem, como Hitler, segundo declarou a Hermann Rauschning,   estava abertamente interessado em “esmagar a Igreja como quem pisa num sapo”, é difícil acreditar que estivesse também ansioso por vingar-se do assassinato de Cristo, já que isso implicaria logicamente que além dos judeus ele atacasse também os herdeiros professos do Império Romano, isto é, os fascistas italianos, que no entanto ele escolheu como seus mais queridos aliados. Nenhum historiador especializado do período tendo jamais sustentado a idéia de que o Evangelho fosse uma influência importante na formação da mente de Hitler, a maioria deles reconhece no entanto que autores evolucionistas como Houston Stewart Chamberlain, Edgar Dacqué, Ernst Haeckel e Fritz Lenz tiveram um papel essencial na origem da futura ideologia nazista. Chamberlain apela explicitamente a motivos darwinianos como argumentos contra os judeus. Mais significativamente ainda, a maior parte das doutrinas racistas alemãs já estava pronta para uso antes mesmo de que Hitler estreasse na política. Elas foram criadas por importantes biólogos evolucionistas da Liga Monista Alemã, cujas doutrinas foram subseqüentemente incorporadas pelo Partido Nazista. O fundador da Liga, Hawckel, fazia pregação anti-semita desde pelo menos 1893. Ele era um materialista que via o cristianismo como “o principal obstáculo à vitória da ciência”. (5) Obviamente o prof. Coyne não tem a capacidade (ou a vontade) de distinguir entre uma crença doutrinal genuína e uma frase-de-efeito adotada hipocritamente muito depois como incidental e secundário artifício de propaganda, usado, aliás, menos como um meio de seduzir a platéia religiosa séria (Hitler não tinha ilusões quanto a isso), do que como camuflagem para desviar a atenção popular das perseguições em massa impostas aos cristãos.

Não comentarei as linhas que o prof. Coyne gasta em falsear as credenciais acadêmicas alheias para enaltecer as suas próprias, nem as insinuações mesquinhas com que ele tenta ferir a Sra. Coulter na sua dignidade feminina. O modo de raciocínio do prof. Coyne já fornece prova suficiente da sua baixeza de caráter e da sua total falta de integridade intelectual, de modo que posso me dispensar de sondar as camadas mais profundas de uma mentalidade fedorenta.

Notas

1.        O evolucionismo social de Spencer, que inclui rudimentos de uma teoria da evolução biológica semelhante à de Darwin, foi exposto no seu livro Social Statics, publicado em 1850, nove anos antes de The Origin of Species.  Foi Spencer, não Darwin, quem criou a expressão “sobrevivência do mais apto”. Darwin leu e elogiou o livro, e muito do seu trabalho posterior é uma longa discussão amigável com  Spencer. V. Robert J. Richards, “The Relation of Spencer’s Evolutionary Theory to Darwin’s”, em http://home.uchicago.edu/~rjr6/articles/Spencer-London.doc — um trabalho que o prof. Coyne deveria conhecer, já que o autor é seu colega na Universidade de Chicago.

2.        “Em algum período futuro, não muito distante se medido em séculos, as raças civilizadas do homem quase que com certeza exterminarão e substituirão as raças selvagens ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, os macacos antropomorfos serão sem dúvida exterminados. A distância entre o homem e seus parceiros mais próximos será então maior.” (Charles Darwin, The Descent of Man, 2nd  ed., New York,  A. L. Burt Co., 1874, p. 178).

3.        Por exemplo, Thomas Huxley, o mais importante evolucionista inglês depois de Darwin, escreve: “Nenhum homem racional, conhecendo os fatos, acredita que o negro médio seja igual, e muito menos superior, ao homem branco.” (Thomas H. Huxley, Lay Sermons, Addresses and Reviews, New York, Appleton, 1871, p. 20.)

4.        Sugiro: Daniel Gasman, The Scientific Origins of National-Socialism, New Brunswick (NJ), Transaction Publishers, 2004; James Reeeve Pusey, China and Charles Darwin, Harvard University Press, 1983; Richard Weikart, Socialist Darwinism. Evolution in German Socialist Thought From Marx to Bernstein, San Francisco (CA), International Scholars Publications, 1999; Richard Weikart, From Darwin to Hitler. Evolutionary Ethuics, Eugenics and Racism in Germany, New York, Palgrave, 2004.

5.        Gasman, p. 55.

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