Posts Tagged Época

Hitlers em penca

Olavo de Carvalho


Época, 5 de novembro de 2000

Para milhões de brasileiros, o irracional tornou-se um direito e um motivo de orgulho

Numa carta recém-publicada em ÉPOCA, o remetente, após admitir que não compreendia nem meu vocabulário, nem meus argumentos, passava, com a mais cândida naturalidade, a opinar sobre minhas idéias num tom de absoluta segurança.

Eu gostaria de poder dizer que esse homem é um louco, um anormal. Não posso. No padrão atual de nossas classes alfabetizadas, sua conduta se tornou não apenas normal, mas obrigatória. Não é sintoma de maluquice individual: é sinal dos tempos. A total ignorância, a radical desorientação já não constituem, para o brasileiro legente, motivo razoável para refrear a volúpia de opinar, de julgar, de condenar ou aplaudir. A exigência de compreender é que se tornou abusiva, suspeita, intolerável.

Mas não é só isso. Quanto menos um brasileiro conhece um assunto, quanto menos tem a condição de pensar com independência, quanto mais, portanto, está reduzido a confiar cegamente em frases feitas, tanto mais se sente livre e senhor de si ao repeti-las e ao impugnar com veemência feroz o que lhe pareça contradizê-las.

E se, com a maior paciência, o interlocutor lhe demonstra ponto por ponto que tem razão, o ouvinte, ao ver-se compelido pelo peso das provas a admitir a conclusão que não deseja, se julga oprimido por uma imposição tirânica, injusta, arbitrária. Expulsa da alma, a razão é vivenciada como força externa hostil, inimiga do eu e da liberdade. Chegamos, pois, à completa inversão: a obediência automática a um ídolo amado tornou-se liberdade racional, a argumentação e a prova tornaram-se repressão autoritária. Autoridade é razão, razão é autoridade.

Eu gostaria de poder atribuir esse estado de coisas à pouca instrução. Não posso. Só as pessoas muito pobres, analfabetas ou quase, conservam o senso natural da diferença entre saber e não saber, entre anuência racional e crença cega. Nas classes média e alta esse senso foi desativado, precisamente, pela instrução: o tipo de instrução que não visa fazer do homem um sábio, um técnico, um trabalhador qualificado, mas um militante. Aquele que a recebe sente orgulho: imagina-se um “deserdado da terra” que ergueu a cabeça. Mas essa auto-explicação é pura fantasia. Um universitário não é um “deserdado da terra”. Seu orgulho, sua obscena alegria têm outra fonte. Sua vitória não foi sobre os privilegiados (pois ele próprio é um deles): foi sobre a insegurança que advém da consciência de não saber. Ressentindo-a como humilhação insuportável, ele aprendeu a vencê-la – mas não por uma longa e árdua busca de conhecimento. Aprendeu a sufocá-la pelo meio mais fácil: a repressão da consciência, substituída pelo embriagante sentimento de pertencer à multidão dos que “fazem História”. Estes não precisam “saber”. São superiores ao conhecimento. Não querem compreender, mas “transformar”. Por isso se sentem livres quando marcham ao som de slogans e palavras de ordem, escravos quando intimados a parar para pensar. Por isso seu discurso contra a opressão do mundo soa tão falso: é racionalização política de uma auto-exaltação vaidosa, é pretexto edificante de uma sórdida farsa interior.

Eu gostaria de poder resumir esse fenômeno sob o nome de “fanatismo”. Não posso. Nem todo fanatismo destrói a consciência. Esse é algo mais: é um fanatismo de sociopatas. E é a essa multidão de pequenos Hitlers que estamos confiando os destinos morais do país.

Tolerância zero

Olavo de Carvalho


Época, 28 de outubro de 2000

Quanto menos são os que falam contra o comunismo, menos têm o direito de falar

Em periódicos regionais, alguns jornalistas denunciam a opressiva hegemonia que os comunistas conquistaram em nossa imprensa e nos meios acadêmicos. Em publicações de alcance nacional, tenho sido o único a tocar no assunto proibido. A extensão e o rigor da proibição podem ser medidos pela virulência insana de certas reações que suscito. Nada de argumentos, é claro. São insultos, intrigas, inculpações projetivas, apelos sumários a minha demissão. Deixam claro que, contra a ascensão esquerdista, nem uma única voz, por fraca e isolada que seja, pode ser tolerada. A concordância deve ser unânime, o silêncio da oposição, total. Precioso silêncio: Gramsci ensina que, na hora H, ele acabará valendo como aprovação popular da tomada do poder pelos comunistas. É preciso, portanto, produzi-lo, antes que a revolução possa tirar a máscara democrática e mostrar sua face hedionda, quando as fronteiras estiverem fechadas e for tarde para fugir. No Rio Grande do Sul, imagem e projeto do futuro Brasil petista, os principais jornalistas de oposição já foram calados por pressão do governo estadual.

Tal é a diferença entre o mero autoritarismo e o totalitarismo. O primeiro contentava-se em calar a maioria, deixando abertas umas válvulas de escape. O segundo exige a plenitude do silêncio, expressa na fórmula sinistra: para a minoria de um, tolerância zero.

O mais extraordinário é que muitos artífices desse estado de coisas proclamam que não são comunistas. Se não são, por que não suportam que alguém fale contra o comunismo?

Se um sujeito diz que não é comunista, mas vê a sociedade com olhos marxistas, prega a luta de classes e admite chegar ao poder pelo uso das armas, o que se pode concluir senão que ele é – ou sonha ser quando crescer – um fac-símile de Fidel Castro? Não obstante, o senhor João Pedro Stedile, por exemplo, entre uma inspeção e outra em seus campos de treinamento de guerrilheiros, assegura, com ar de inocência, que não é sequer esquerdista no sentido mais genérico da palavra.

O mais velho ardil do diabo é dizer que não existe; o do comunismo, jurar que é outra coisa. Em plena revolução chinesa, intelectuais pontificavam que Mao Tsé-tung nada tinha de comunista. Franklin Roosevelt declarou que o próprio Stálin não era comunista. E a imprensa chique de Nova York impôs ao mundo a imagem de um Fidel democrata e anticomunista.

Não há limites para a volúpia comunista de mentir. Comparável a ela, só sua volúpia de matar. Fidel, por exemplo, é um assassino vocacional que começou a carreira matando um político que mal conhecia, contra o qual não tinha nada, só para cortejar um inimigo da vítima, de quem esperava obter favores. E não faltam padres para nos assegurar, com a conveniente unção e o indefectível trémolo sacerdotal na voz, que se trata de um santo homem, que o regime do qual um sexto da população cubana fugiu não é o comunismo, mas o catolicismo. Deve ser mesmo, a julgar pelo rigor dos anátemas que lança sobre os hereges.

PS.: Decidido a guardar este espaço para coisas mais importantes, coloquei em meu website, www.olavodecarvalho.org, uma resposta ao blefe pueril com que em Época de 23 de outubro o senhor Luca Borroni-Biancastelli fingiu refutar minhas críticas a Lord Keynes.

Trágica leviandade

Olavo de Carvalho

Época, 21 de outubro de 2000

Incapazes de transformar a si mesmos, os esquerdistas buscam transformar o mundo

Jamais conheci um esquerdista que chegasse a sê-lo por etapas, por experiência acumulada e avaliação ponderada dos fatos. Todos tomam posição logo de cara na entrada da adolescência, antes de saber coisa alguma do mundo, e passam o resto da vida julgando tudo à luz dessa opção inicial. Nada lhes parece mais normal, portanto, que presumir que as opiniões contrárias às suas tenham se originado de escolhas igualmente irracionais, apenas com signo invertido.

Acontece que a quase totalidade dos pensadores anticomunistas é constituída de indivíduos que um dia foram comunistas e depois mudaram de idéia por um lento, difícil e doloroso processo de autodesmascaramento. As obras de Arthur Koestler, Irving Kristol, David Horowitz, Whittaker Chambers, Milovan Djilas, Daniel Bell e tantos outros – hoje excluídas do mercado livreiro – não são apenas “argumentações” em favor de uma “posição”: são expressões de uma experiência longamente amadurecida no isolamento e na árdua conquista de si. Cada um desses homens pagou um alto preço moral por suas idéias, enquanto as dos comunistas foram recebidas, prontas e gratuitas, de um ambiente juvenil onde circulavam como frases feitas.

É verdade que, para muitos comunistas, sua escolha ideológica trouxe provações e riscos. Mas justamente isso lhes deu um pretexto edificante para que se dispensassem de questionar as doutrinas às quais tinham oferecido a vida. Quem, depois de passar por perseguições, prisão, tortura, há de querer reconhecer que sofreu tudo isso por uma mentira? Assim, o heroísmo esquerdista é de ordem apenas física e social, sem profundidade interior: quanto mais o militante tem a coragem de padecer por suas crenças, mais covardemente foge do risco de se decepcionar com elas. Ademais, seu sofrimento tem sempre o reconforto da solidariedade coletiva, organizada, mundial. Sozinho, no cárcere, ele tem a certeza de que milhões lutam a seu lado. Quem haverá de querer, no fundo do poço, abdicar desse último consolo?

Mas é precisamente esse heroísmo em dose dupla que se encontra nos homens que, após sofrer perseguição de seus adversários políticos, consentiram em suportar, solitários, o ódio de seus antigos companheiros. Heroísmo, na verdade, triplo, pois entre a primeira e a segunda provação vem o mais difícil: a travessia do deserto, a luta para vencer a si mesmo. Por isso os clássicos do anticomunismo têm aquela tensão moral, aquele peso das decisões plenamente responsáveis e aquela high seriousness que faltam por completo às obras de seus adversários. Se as biografias pessoais de Marx, Lênin, Mao, Stálin e Fidel são uma galeria de baixezas (envolvem desde rituais satanistas e crueldade para com os familiares até pedofilia), não são menos deprimentes os perfis intelectuais de um cínico imoralista como Brecht (o homem que disse dos acusados no Processo de Moscou: “Se eles são inocentes, merecem ser fuzilados precisamente por isso”), de um sabujo profissional como Lukács, sempre pronto a mudar de opinião sob comando, ou de um palhaço verboso como Jean-Paul Sartre, sem falar nas dúzias de vigaristas acadêmicos que o famoso experimento Sokal desmascarou definitivamente.

Há uma trágica leviandade em homens que, incapazes de transformar a si mesmos, se dispõem a “transformar o mundo”. Que mundo pode nascer daí senão uma pantomima sangrenta?

Veja todos os arquivos por ano