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Engenharia da complacência

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de abril de 2012

Indignado ante o conformismo servil com que os americanos, outrora tão apegados às liberdades civis, vão aceitando as intrusões cada vez mais agressivas do governo nas suas vidas privadas, o economista Walter Williams finalmente se deu conta de que “o movimento antifumo explica parcialmente a atual complacência americana. Os zelotes do antitabagismo começaram com exigências ‘razoáveis’, como os avisos do Ministério da Saúde nos pacotes de cigarros. Depois exigiram áreas para não-fumantes nos aviões. Encorajados pelo sucesso, exigiram a proibição total do fumo nos aviões, e depois nos aeroportos, nos restaurantes e nos locais de trabalho. Tudo em nome da saúde. Percebendo a resposta complacente dos fumantes, passaram a banir o fumo das praias, nas praças e nas calçadas das grandes cidades. Agora estão clamando por prêmios de seguro-saúde mais caros para os fumantes. Se tivessem apresentado a lista inteira de suas exigências logo no começo, não teriam conseguido nada. Usando a cruzada antifumo como modelo e vendo os americanos tão complacentes, os zelotes e candidatos a tiranos estão ampliando mais e mais a sua agenda”. O artigo completo está em http://frontpagemag.com/2012/03/16/americans-have-become-compliant.

Meus leitores e ouvintes são testemunhas de que há uma década e meia, ou mais, venho lhes explicando o óbvio: a campanha antitabagista jamais teve nada a ver com a saúde. Como era de se prever desde o início, até hoje não se verificou em parte alguma, com a patente diminuição do número de fumantes, nenhuma, rigorosamente nenhuma redução proporcional da incidência das doenças alegadamente “causadas pelo fumo”. Mas a patente ausência dos resultados prometidos, em vez de colocar em questão as premissas iniciais da campanha e moderar a retórica antifumo, como se esperaria de mentalidades soi-disant científicas, é respondida com novas cargas de exigências cada vez mais prepotentes, mais histéricas, mais invasivas. O antitabagismo, como o socialismo, vive de redobrar o blefe após cada novo desmentido das suas pretensões, transfigurando em sucesso publicitário e político o fracasso crônico das metas nominais alardeadas. Não lhe falta, para isso, uma incansável e vociferante militância espalhada pela Europa e pelas Américas, composta de uma bem subsidiada elite ativista e uma massa idiota de “verdadeiros crentes” cada vez mais fanatizados. Tão fanatizados que nem mesmo o uso repetidamente comprovado de meios de propaganda fraudulentos (como as fotos forjadas que o nosso Ministério da Saúde estampou nos maços de cigarros) os leva a duvidar, por um momento sequer, da idoneidade da campanha.

Por trás do que imaginam os crentes, o antitabagismo militante jamais teve por meta proteger a saúde de ninguém. Foi apenas um primeiro e bem sucedido experimento de engenharia comportamental em escala planetária. Foi um balão-de-ensaio, preparatório à implantação de controles cada vez mais drásticos, cada vez mais intrusivos, destinados a reduzir a população de todo o Ocidente a uma massa amorfa incapaz de reagir a qualquer imposição, por mais arbitrária, lesiva e absurda, que venha da elite globalista autoconstituída em governo mundial.

A escolha do tema foi especialmente ardilosa, visando a seduzir conservadores, evangélicos e moralistas em geral, desarmando-os preventivamente ante quaisquer campanhas subseqüentes baseadas no mesmo modelo e usando a própria força deles para sufocar na “espiral do silêncio” as poucas vozes discordantes. Uma vez que você cedeu tudo à pretensa autoridade científica dos organismos internacionais em matéria de “saúde”, fica difícil reerguer a cabeça quando essa autoridade, em seguida, estende seus domínios para as áreas da alimentação, da educação escolar, da moral sexual, da vida familiar e assim por diante. A facilidade estonteante com que a elite revolucionária instrumentalizou os seus próprios adversários mais ardorosos aparece condensada simbolicamente num detalhe cômico, ou tragicômico, que denota a fragilidade estrutural da reação anti-estatista: o uso do tabaco é rigorosamente proibido nas sedes das organizações libertarians que defendem a liberação da maconha.

Só o que me espanta é que mesmo uma inteligência privilegiada como a de Walter Williams tenha levado tanto tempo para notar que o antitabagismo, usando do ardil das exigências progressivamente ampliadas (a famosa técnica da rã na panela), impôs muito mais do que sua meta nominal de restringir o consumo de cigarros: impôs, junto com ela, uma nova autoridade, um novo esquema de poder, um novo procedimento legislativo, um novo sistema de comandos que pode ser acionado a qualquer momento, com garantias quase infalíveis de obediência automática, para espalhar entre as massas as reações padronizadas que a elite global bem deseje. O triunfo da prepotência antitabagista não trouxe nem trará jamais os anunciados efeitos benéficos para a saúde da população, mas, depois dele, a humanidade Ocidental já não será mais a mesma. A complacência ante o Estado intrusivo parece ter-se arraigado de uma vez por todas no espírito das massas, pondo um fim à era da livre discussão e inaugurando a da passividade servil e do ódio à divergência.

Um globalismo cristianizado?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de julho de 2009

Em qualquer texto doutrinário que vise a influenciar de algum modo a vida política, é preciso distinguir três níveis: (1) os princípios morais e políticos gerais proclamados ou implícitos; (2) a análise da situação concreta, e (3) as ações sugeridas ou apoiadas. No primeiro nível, a Encíclica Caritas in Veritate proclama a necessidade de fundar toda política social na caridade, e esta na verdade: “Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é a luz que dá sentido e valor à caridade.” No segundo nível, oferece um diagnóstico totalmente falso das causas da presente crise econômica. No terceiro, sugere como remédio aos males da economia atual a intensificação e ampliação das mesmas causas que os determinaram. Por mais que eu respeite a pessoa do Papa e a santidade do seu ofício, não posso ver aí verdade nenhuma, nem portanto caridade, exceto se por esta palavra entendermos as boas intenções ineficazes que a própria Encíclica condena.

Desde logo, Bento XVI apresenta como causa fundamental dos problemas atuais a desregulamentação da economia e a redução das redes de segurança social, que trazem “grave perigo para os direitos dos trabalhadores, os direitos fundamentais do homem e a solidariedade atuada nas formas tradicionais do Estado social.” Precisamente ao contrário, a ampliação desmesurada da previdência social – quase sempre forçada por meio dos mesmos argumentos agora usados por S. Santidade – foi que causou a falência do sistema bancário e, portanto, dos Estados que nele se apóiam. É verdade que “os sistemas de segurança social podem perder a capacidade de desempenhar a sua função”, mas não porque o mercado foi desregulamentado e sim porque lhes falta dinheiro para atender às exigências crescentes de ONGs ativistas, “movimentos sociais” e organismos internacionais, inclusive em favor da imigração ilegal. Quando Bento XVI oferece como solução para a crise econômica o aumento do poder regulador desses organismos, ele esquece que esse poder já veio crescendo, nas últimas décadas, ao ponto de impor a muitos países obrigações sociais que sua economia não suporta.

Por outro lado, é claro que muito do falatório liberal em favor da “abertura dos mercados” não veio de nenhum amor sincero ao liberalismo econômico, mas como expediente maquiavélico para debilitar os Estados nacionais e transferir sua soberania a organismos globais controladores, de modo que tanto as vantagens quanto as desvantagens daquela abertura concorressem igualmente para o acréscimo do poder da elite globalista.

Os beatos de sempre vão assegurar-nos, é claro, que a nova Encíclica não é um manifesto de apoio ao governo global. O texto mesmo dá-lhes o desmentido formal: “Para sanar as economias atingidas pela crise, … urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial” investida de “poder efetivo”. Como modelo dessa autoridade, S. Santidade sugere… o Estatuto das Nações Unidas! Publicada com poucos dias de antecedência da nova reunião dos líderes do G-8, que já proclamam a necessidade de adotar em escala mundial uma política de “estímulos” como a implantada pelo presidente Barack Obama nos EUA, qual outro efeito real pode ter essa Encíclica senão o de um incentivo legitimador a que esses indivíduos façam precisamente o que querem fazer? Se, enquanto isso, o desemprego que Obama prometia eliminar cresce a olhos vistos, levando o próprio vice-presidente Joe Biden a confessar que a política alegadamente salvadora se baseou numa interpretação errada da economia, isso não impede S. Santidade de endossar como certa essa mesma interpretação errada e de sugerir que a solução fracassada seja ampliada em escala mundial.

A obstinação dos altos círculos católicos na idolatria do “controle global” não vem de hoje. Como o próprio Bento XVI reconhece, “depois da queda dos sistemas econômicos e políticos dos países comunistas da Europa Oriental,… na seqüência dos acontecimentos do ano 1989, o Pontífice (João Paulo II) pediu que o fim dos ‘blocos’ fosse seguido por uma nova planificação global do desenvolvimento, não só em tais países, mas também no Ocidente.” Ou seja, do fracasso total do maior experimento de economia planificada já tentado neste mundo, João Paulo II concluía que era preciso mais planificação ainda, e de dimensões globais.

Não se trata, aqui, de fazer a apologia abstrata da liberdade de mercado. É verdade que a modéstia na intervenção estatal coincide universalmente com a prosperidade (o Índice de Liberdade Econômica do Hudson Institute prova isso ano após ano), mas, como já tenho explicado dezenas de vezes, em geral essa liberdade vem hoje articulada a um projeto político que só a expande em escala local para melhor estrangulá-la no plano mundial. Nenhuma referência a essa maliciosa articulação de estratégias se vê na Encíclica de Bento XVI. Reconhecendo embora o poder criativo do livre mercado, o Papa não só faz a apologia do maior controle burocrático, mas sugere que dele participem as entidades da “sociedade civil”, como se não tivesse sido justamente a pressão dessas entidades – quase sempre apoiadas num discurso enganosamente cristão e subsidiadas pela elite globalista – que levou à destruição do sistema bancário.

Se, em aparente compensação, Bento XVI exorta os planificadores globais a orientar suas ações num sentido cristão, ele não fornece nem a mais mínima sugestão prática de como realizar essa cristianização do globalismo. A proclamação dos valores cristãos paira no céu das generalidades abstratas, enquanto, no plano da ação prática, só o que se sugere é a ampliação dos controles globais. Sem conexão com as medidas efetivas sugeridas, o apelo à verdade e à caridade funciona, nesse documento, tão-somente como um adorno retórico, embelezando um programa político que não tem com ele a menor conexão lógica e que oferece, como solução do mal, a ampliação das causas que o geraram. Os líderes do G-8 estão livres para brandir a Encíclica Caritas in Veritatecomo um poderoso argumento em favor de políticas que já haviam escolhido de antemão.

Para piorar formidavelmente as coisas, é público e notório que o poder globalista em expansão, longe de se inspirar no que quer que seja de genuinamente cristão, tem como um de seus objetivos professos – intimamente associado às suas políticas econômicas – a implantação de uma religião universal biônica, na qual a Igreja Católica, expurgada de seus elementos tradicionalistas, se integre como um instrumento dócil da maior farsa espiritual já tentada no universo (v. documentação cabal em Lee Penn, False Dawn. The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004). Ao longo do texto, Bento XVI esperneia, aqui e ali, contra o relativismo e a descristianização, como se estes males viessem do ar e não do mesmo establishment globalista cujo poder ele procura expandir.

O dilema em que esse documento coloca os católicos é temível: deverão eles, por obediência ao Papa, colaborar com o fortalecimento do mesmo poder global que os estrangula e vai tornando inviável o exercício público da sua fé, ou, ao contrário, devem voltar-se contra o Sumo Pontífice, aprofundar ainda mais a divisão na Igreja e dar munição à campanha mundial anticatólica? Qualquer das duas alternativas é inaceitável. Enquanto os conservadores e cristãos não aprenderem que não é possível fazer face ao inimigo simplesmente “tomando posição” contra ou a favor disto ou daquilo, não haverá esperança para a humanidade senão a de adaptar-se servilmente a controles globais cada vez mais opressivos e anticristãos. A estratégia do inimigo não é linear: ela é dialética. Ela articula forças contrárias, fazendo-as trabalhar pelo sucesso da síntese global. O que é preciso não é combater propostas isoladas – favorecendo na esfera cultural o que se abomina na da política, ou cedendo na economia aquilo que se pretende defender na esfera cultural –, mas compreender a lógica total do “sistema do Anticristo” e oferecer-lhe resistência integral, tão articulada quanto a estratégia de que ele se serve.

A rejeição categórica do diagnóstico econômico e das soluções propostas pelo Papa Bento XVI deve, portanto, vir junto com o apoio mais decidido aos valores gerais que ele proclama. E a melhor maneira de fazer isto é mostrar que esses valores vão no sentido precisamente oposto ao dos remédios que ele propõe.

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