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Dialética da covardia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de agosto de 2014


Duas ou três concessõezinhas oferecidas pela candidata à economia liberal, que no fundo em nada diferem daquelas feitas pelo primeiro mandato do sr. Lula, pouco significam em comparação com o fato de que o partido de Marina pertence ao Foro de São Paulo e, como tal, tem compromissos estratégicos internacionais.

Toda decisão covarde, quer se expresse por ação ou omissão, deixa no fundo da alma uma vergonha que, quanto menos reconhecida e confessada, mais exige rituais histéricos de compensação. Posta vergonhosamente em fuga por um golpe militar que não disparou um só tiro, a esquerda brasileira exibe até hoje os sintomas residuais do vexame enterrado, mas jamais completamente esquecido: daí sua compulsão incurável de exagerar hiperbolicamente os sofrimentos padecidos e a força ameaçadora do adversário, pintado sempre como um dragão voraz mesmo quando obviamente não passa de um cãozinho doméstico.

Exemplo típico é o historiador comunista Nelson Werneck Sodré, do qual escrevi em 2008 (v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/080414dc.html) :

“Descrevendo no seu livro A Fúria de Calibã os horrores apocalípticos da perseguição a intelectuais logo após o golpe de 1964, que ele não hesita em nivelar ao que sucedeu na Alemanha de Hitler, acaba se traindo ao relatar que, naquele mesmo período, publicou não sei quantos livros, teve não sei quantas críticas favoráveis, algumas entusiásticas, foi brindado com alguns prêmios literários e no fim ainda recebeu uma homenagem no Instituto Brasileiro de História Militar, em cerimônia realizada na presença… do presidente da República, marechal Castelo Branco. Jamais um historiador consentiu em personificar tão escandalosamente um exemplum in contrarium da sua descrição geral dos fatos.”

Mas, evidentemente, Werneck não foi o único. A repressão foi tão violenta, tão avassaladora, que o período do governo militar (1964-1985) acabou sendo, segundo registros da Câmara Brasileira do Livro, o de maior prosperidade da indústria editorial esquerdista no país.

Paralelamente, jornalistas de esquerda dominavam as redações dos maiores jornais e eles próprios publicavam semanários “nanicos” nos quais falavam o diabo da “grande mídia burguesa”.

Intelectuais e artistas de esquerda imperavam também sobre as universidades e a indústria de espetáculos – tudo isso porque, coitadinhos, tinham sido banidos de toda atividade pública, como os dissidentes soviéticos ou cubanos. Nunca no mundo os perseguidos se refugiaram em catacumbas tão altas e vistosas.

Erik von Kuenhelt-Leddihn já ensinava que ninguém jamais entenderá a mentalidade esquerdista se não estudar muito bem o mecanismo do fingimento histérico.

Mas ninguém cairia vítima de uma neurose se dela não extraísse alguma vantagem secundária, algum lucro que pode ir muito além do mero reconforto psicológico postiço.

Exagerar o tamanho e a periculosidade do adversário dissemina entre os militantes um estado de alerta, instila neles um reflexo de autodefesa grupal que os predispõe a odiar o adversário mesmo e sobretudo quando nada sabem dele. Que partido revolucionário não precisa disso?

Quando uma compulsão neurótica se soma a um proveito objetivo, ficar cada vez mais neurótico se torna um modo de vida, uma “forma mentis” integral que acaba por absorver a personalidade inteira. Que mais pode desejar um revolucionário do que um uma engenharia cênica na qual fugir da realidade se transmuta num meio de agir sobre ela com alguma eficácia?

Dessa incongruência nasce uma segunda, também característica da mente revolucionária, que é o hábito de cantar vitória ao mesmo tempo que se imagina o adversário cada vez mais forte e indestrutível, principalmente quando este agoniza e esperneia no ar entre gemidos de impotência.

É assim que, no seu blog da “Carta Maior”, o indefectível dr. Emir Sader, mais conhecido nos círculos reacionários como Marquês de Sader, explica a adesão dos liberais Eduardo Gianetti da Fonseca e André Lara Rezende à candidatura Marina Silva como um truque maquiavélico da direita, prenúncio da restauração conservadora, quando ela é obviamente o oposto: a autodissolução de um corpo debilitado num corpo mais forte que, ao absorvê-lo, o extingue.

Duas ou três concessõezinhas oferecidas pela candidata à economia liberal, que no fundo em nada diferem daquelas feitas pelo primeiro mandato do sr. Lula, pouco significam em comparação com o fato de que o partido de Marina pertence ao Foro de São Paulo e, como tal, tem compromissos estratégicos internacionais que, no presente momento, seus aliados liberais não compreendem e nem sequer vislumbram, e que com toda a certeza prevalecerão, a longo prazo, sobre qualquer arranjo oportunista de campanha eleitoral.

Nada mais característico da debilidade direitista no Brasil, aliás, do que a pseudo-esperteza de aderir ao que não se pode vencer, receita de Maquiavel que, praticada pelo próprio inventor, só o levou de derrota em derrota até a completa humilhação final de ter de viver, na velhice, de um empreguinho chinfrim arrumado, num gesto de caridade, por um de seus velhos inimigos.

Maquiavel é o guru dos derrotados, sempre um derrotado ele próprio. Talvez por isso exerça tanta atração sobre quem não tem a mínima vocação para a vitória nem, por isso mesmo, como diria o sr. Lula, “nenhuma perspectiva de poder”.

Interpretando a debilidade como sinal de força, o Marquês de Sader, por seu lado, foge da realidade ao mesmo tempo que age sobre a mente da sua platéia com realismo exemplar: instigando nos fortes o medo do fraco para impeli-los a torná-lo mais fraco ainda.

Entre a dialética revolucionária e as astúcias teatrais do fingidor histérico, a semelhança não é jamais mera coincidência.

É muita bondade

Olavo de Carvalho

Época, 19 de agosto de 2000

Nunca um presidente “de direita” foi tão generoso com a esquerda quanto FHC

Há duas maneiras de ajudar um amigo: removendo os obstáculos de seu caminho ou dando-lhe o que necessita. Só os grandes amigos excedem nos dois tipos de bondade. A esquerda, portanto, não deveria ter raiva de FHC. Ninguém fez tanto por ela quanto o atual presidente. Ele é bom para ela nos dois sentidos – indireto e direto – da máxima bondade.

No sentido indireto, havia dois obstáculos no caminho da esquerda: o sucesso da economia liberal no mundo e o ressentimento dos militares contra seus desafetos que, beneficiados pela anistia, nunca anistiaram quem os anistiou.

FHC removeu os dois. De um lado, vestindo a camiseta da economia liberal, jogou de modo a tornar o time o mais odioso possível aos olhos da torcida, privatizando sem critério, demolindo o capitalismo nacional, estrangulando nossas possibilidades de independência tecnológica, até extrair daí a conclusão de que o liberalismo é mau e de que é preciso voltar ao velho estatismo – conclusão que, num fiel discípulo de Alain Touraine, não tem como deixar de parecer desejada e forçada desde o início.

De outro lado, boicotou, rebaixou e irritou quanto pôde os militares, até que alguns deles começassem a conjeturar que o comunismo talvez não fosse o maior dos problemas: que o maior dos problemas talvez seja o imperialismo globalista, encarnado, segundo eles, em FHC. Se havia um canal por onde eles pudessem começar a dar ouvidos à conversa esquerdista, era esse – e o presidente o abriu.

No sentido direto, a esquerda precisava de duas coisas: dinheiro e canais de difusão. Por trás de uma briguinha de pantomima em que o MST bate e o governo finge que fica brabo, o dinheiro dos cofres públicos tem jorrado copiosamente no pote dessa organização ilegal empenhada em preparar uma guerra revolucionária. Quanto a canais de difusão – o requisito essencial para a consecução da estratégia gramsciana da “revolução cultural” –, um Ministério da Cultura em mãos petistas e um Ministério da Educação que distribui cartilhas de luta de classes já não seriam o bastante?

Não digo que FHC seja, com o perdão da palavra, criptocomunista. Não digo que, no fundo, ele continue o mesmo da Rua Maria Antônia. Detesto conjeturar intenções ocultas; prefiro ater-me àquilo que sei. E sei que os Estados Unidos, sempre que confiaram na esquerda moderada, na social-democracia, como meio de deter ou desviar a ascensão comunista, se deram mal. Nos anos 60, o Departamento de Estado fez essa aposta na América Latina, fortalecendo a Cepal e a Sudene, que se transformaram em focos da ação comunista, e investindo no método Paulo Freire de alfabetização, que se revelou pura doutrinação marxista. Na Europa, os americanos optaram por Willi Brandt, que, no auge de uma linda carreira glamourizada pelo Reader’s Digest, foi desmascarado como espião da Alemanha Oriental. Em Cuba, que coisa era Fidel Castro senão o esquerdista soft, o democrata, o confiabilíssimo inimigo de uma ditadura que já fora tão cortejada pelo Partido Comunista? Todas essas coisas, há quem saiba. O que não me parece seguro é se alguém, daí, já concluiu que seguir conselhos de americanos talvez não seja a maneira mais prudente de se precaver contra o comunismo.

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