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Uma lição tardia – III: Um exemplo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de novembro de 2011

Quem presenciou o assassinato moral do Cabo Anselmo no “Roda Viva” sabe do que eu estava falando nos artigos I e II desta série. Chamar aquilo de entrevista seria eufemismo. Não cabe sequer evocar o tribunal da Inquisição, onde a intolerância dogmática vinha ao menos compensada pela boa-fé de um interrogatório que nada prejulgava. No programa da TV Cultura não se ouviu uma só pergunta que não fosse acusação direta, crua, brutal, formulada com astúcias de linguagem de modo a bloquear de antemão quaisquer respostas que não a confirmassem e a usar como munição de recarga as que parecessem confirmá-la, mesmo enganosamente. Ao longo de duas horas uma dúzia de cães latiu e rosnou contra um homem praticamente indefeso, um homem sem direitos, uma não-pessoa a quem até um documento de identidade é negado, e que aos setenta e tantos anos tem de viver de serviços informais, quase um mendicante, porque não pode ter um emprego. Numa época em que tanto se gargarejam os “direitos das minorias”, ninguém está mais exposto a agressões do que a minoria absoluta, a minoria de um só. Basta a gangue unida enxergar um de seus desafetos andando sozinho, sem amigos, sem recursos, sem guarda-costas, e pronto: todos se atiram sobre o infeliz, deliciando-se no antegosto da vitória fácil – e depois ainda contam o que fizeram, ostentando a covardia como se fosse um mérito. Isso não é humano. É instinto animal. Se você fere um tubarão, um leão, um porco selvagem, os outros esquecem você e saltam em cima dele, fazendo-o em pedaços. Se uma das maiores conquistas da civilização foi refrear esse impulso, instilando no ser humano a vergonha da luta desigual, nossa Nova República suprimiu essa inibição, liberando, incentivando e premiando a investida de todos contra um (v. http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/12518-a-alma-militante-todos-contra-um.html). Lembro-me de que, logo nos primeiros passos da vida adulta, adotei como divisa o conselho dado por José Ortega y Gasset à juventude espanhola: “Prestad noblemente vuestro auxilio a los que son los menos contra los que son los más.” Aos sessenta e cinco anos de idade, tenho de assistir, inerme e enojado, ao espetáculo das novas gerações que se entregam, com deleites, ao reconforto de fazer exatamente o contrario, de apoiar-se na força do número para esmagar o oponente solitário, seja ele o Cabo Anselmo, o Padre Lodi, o deputado Bolsonaro ou o Sr. Julio Severo. Só nisso já se vê um sinal eloqüente da degradação moral que o império do “partido ético” impôs a todo um pais.

E que crime, ó raios, se imputa ao Cabo Anselmo? O crime de “traição”. Militante de esquerda no início dos anos 60, José Anselmo dos Santos, preso, mudou de lado: decidiu colaborar com o governo no intuito de impedir que se instalasse no Brasil um regime de tipo cubano. No meu modesto entender, foi um objetivo perfeitamente meritório, no mínimo racionalmente defensável, mesmo que obtido ao preço de uma ditadura militar, módico em comparação com o panorama de crueldade e miséria que a alternativa oposta oferecia. Ninguém, em sã consciência, pode negar que as quatrocentas vítimas do regime militar, quase todas elas terroristas ou colaboradoras de organizações terroristas, são uma quota de sangue humano bem menor que os cem mil mortos da ditadura cubana (v. http://cubaarchive.org/home/), diferença ainda acentuada pela desproporção demográfica entre as duas nações. Também não pode negar que os militares, malgrado as violências que cometeram, levantaram economicamente o país como nunca antes ou depois, enquanto o governo Castro reduzia os cubanos à penúria mais desolada e abjeta, baixando a sua ilha-prisão do quarto para o vigésimo-quarto lugar na escala das economias latino-americanas. Um simples cálculo de custo/benefício mostra que o Cabo Anselmo, decididamente, não escolheu o lado pior. Dirigida desde Cuba, a guerrilha já atuava no Brasil desde 1961, em pleno regime democrático, com a conivência ao menos passiva do próprio presidente de República, e esteve entre as causas, jamais entre as conseqüências como tão levianamente se alega, do golpe de 1964 (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/semfim.htm). Que pode haver de tão essencialmente errado, de tão pecaminoso, de tão hediondo, de tão absolutamente imperdoável em tomar posição contra esse empreendimento macabro após haver colaborado com ele durante algum tempo?

Que é, afinal, um “traidor”? O ex-capitão Carlos Lamarca, que devia ao Exército Brasileiro a educação que recebeu, as amizades que fez na corporação e os meios de sustento da sua família, não hesitou em roubar armas da instituição para matar com elas os seus antigos companheiros, chegando mesmo a esmagar a coronhadas a cabeça de um prisioneiro amarrado.

O sr. José Dirceu, preso por atividades terroristas e trocado por um embaixador, tão logo desembarcou em Havana se integrou no serviço secreto militar cubano mediante favores de Raúl Castro, fazendo-se cúmplice ativo do assassinato de milhares de civis desarmados, e ao voltar ao Brasil se tornou deputado, ministro, presidente de partido e por fim lobista milionário, sem jamais ter provado seu desligamento daquela entidade estrangeira.

Lamarca não só jamais foi chamado de traidor por ninguém da mídia chique, muito menos pela matilha do “Roda Viva”, como foi proclamado herói e elevado post mortem ao posto de coronel. Dizer que lutou pela democracia é mentira sórdida já mil vezes desmoralizada. Toda a sua luta fez parte do esquema cubano de ocupação continental, sob a direção da famigerada OLAS, Organización Latinoamericana de Solidariedad, primeira versão do que viria a ser o Foro de São Paulo.

Quanto ao ex-ministro, nem mesmo depois de perder o mandato por conta das suas atividades de engenheiro-chefe do Mensalão chegou a ser incomodado por cobranças quanto ao seu comprometimento com interesses de um governo estrangeiro, diante do qual sua subserviência chega – literalmente – às lágrimas de devoção. Tudo quanto sofreu foi uma punição pro forma, com a qual nada perdeu do seu poder, bem como uma bengalada na cabeça, desferida por um cidadão que depois morreria na cadeia em circunstâncias misteriosas e jamais esclarecidas.

José Anselmo dos Santos nunca matou ninguém, nem enriqueceu com dinheiro público. Apenas passou informações à polícia. A miséria em que viveu por meio século com dignidade exemplar, sem queixas ou recriminações, prova que nunca “se vendeu”, que agiu por convicção e não por interesses vis. Por que é ele o “traidor” em vez de Lamarca ou José Dirceu? Por que a pecha infamante é aplicada não só seletivamente, mas com manifesta inversão do senso das proporções? É simples: porque no Brasil do PT a “traição” não consiste em atos objetivamente definíveis, imputáveis a qualquer um que os cometa, independentemente da bandeira ideológica sob a qual serviu ou desserviu. Nada disso: se a traição beneficia a esquerda, não é traição, é glória, ainda que venha acompanhada de homicídio, roubo e enriquecimento ilícito. O termo insultuoso é reservado para a conduta anti-esquerdista, ainda que fundada em razões morais elevadas e praticada sem qualquer proveito pessoal. “Traição”, na Novilíngua que o “Roda Viva” encarna com peculiar fidelidade, consiste em voltar-se contra a esquerda após ter sido ludibriado por ela na juventude. Eis aí o único compromisso sagrado, inviolável. Tudo no mundo pode ser abjurado, renegado, abandonado: a religião, a pátria, a igreja, a família, o casamento, a amizade. Tudo, menos a promessa de obediência eterna que um adolescente bocó, iludido por um comissário político bem falante, ofereceu ao movimento revolucionário mais assassino, mais ladrão, mais sanguessuga, mais destrutivo e mais mentiroso que já se conheceu na História.

A esse movimento, com maior ou menor consciência do que faziam, os cães de guarda que atacaram o Cabo Anselmo mostraram mais uma vez sua devota e inflexível lealdade, recusando-se, por princípio e por automatismo mental profundamente arraigado, a examinar mesmo de longe a hipótese de que o adversário pudesse ter alguma qualidade humana, alguma virtude moral, alguma razão plausível para agir como agiu, fora o interesse vil e a maldade explícita.

Inventando certezas: Brasil-Mentira V

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de abril de 2009

No mesmo Observatório, Luciano Martins Costa pontifica: “Ditaduras são ditaduras… Fazer a conta da ditadura pelo número de mortos nas masmorras oficiais é vilipendiar a história. É coisa de alienados.” Contestando as comparações usuais que contrastam as trezentas e poucas vítimas da polícia política brasileira com as cem mil da ditadura cubana, o Sr. Costa lança à conta do nosso regime militar dois delitos extras que, segundo ele, deveriam entrar no cálculo. De um lado, “a corrupção que se consolidou durante os vinte e poucos anos da ditadura militar”. De outro, “a violência policial não diretamente política” porque, diz ele, “a polícia brasileira, em todos os estados, foi transformada durante a ditadura militar num perverso e incontrolável instrumento de controle social, que foi treinado para ‘identificar’ e punir preventivamente os supostos objetores do regime e acabou produzindo uma lógica toda especial segundo a qual todo jovem de pele relativamente escura é um inimigo potencial da ordem pública”.

Textos como esse ou os dois de Alberto Dines já citados são até difíceis de analisar, tal a mixórdia psicótica de erros, confusões e impropriedades lógicas que neles se compacta. Normalmente serviriam apenas de amostras de como o fanatismo enlouquece. O significativo é que nenhum de seus autores é conhecido publicamente como um fanático. Ambos passam como profissionais equilibrados, idôneos, capacitados a julgar a qualidade do jornalismo alheio. E é justamente isso a prova de que não se trata de distúrbios pessoais, mas de um mal endêmico nas classes falantes do Brasil: a absoluta incapacidade ou recusa de julgar as coisas com um mínimo de equanimidade, o radicalismo cego de um parti pris que ao inflamar-se masturbatoriamente e apelar aos subterfúgios mais unilaterais e artificiosos, acredita piamente, tranquilamente, fazer justiça.

O Sr. Costa, indignado de que a truculência das ditaduras só se calcule pela violência política direta, pergunta: “Quem estabeleceu os critérios desse ranking? O departamento de infográficos da Folha?” Ele não pergunta se quem estabeleceu a diferença entre a proporção de negros e mulatos mortos antes e durante a ditadura foi o seu próprio departamento de infográficos mentais. Nenhuma pesquisa histórica ou estatística prova que antes de 1964 a polícia, composta ela própria de maciços contingentes de negros e mulatos, fosse mais bondosa para com os chamados afrodescendentes. Louco de ódio, ele inventa sem a mais mínima prova um racismo crescente, e julga baseado nisso.

Quanto à alegada corrupção da ditadura, é falso, em primeiro lugar, que ela não fosse denunciada na época. Na mesma medida em que reprimiam certo tipo de notícias políticas, os militares aceitavam e apreciavam denúncias de corrupção, que os ajudavam, segundo eles, a manter sob controle uma classe política viciada. Eu mesmo trabalhava num dos jornais mais visados pela censura – o Jornal da Tarde – e posso garantir que, se várias matérias minhas viraram receitas de bolo, o mesmo não aconteceu com nenhuma acusação feita a políticos corruptos. Que os próprios militares no alto comando da nação fossem ladrões, é algo de que o Sr. Costa não cita nem poderia citar um único exemplo, visto que nenhum desses homens, na presidência ou em ministérios, prosperou tanto quanto o Sr. Lula ou o Sr. José Dirceu, nem muito menos – para dar um exemplo característico do regime deposto em 1964 – tanto quanto o Sr. Tião Maia, o amigo do presidente Goulart, que saiu do Brasil com dinheiro suficiente para comprar a vigésima parte do território australiano e, interrogado sobre como conseguiu isso, respondeu singelamente: “O Banco do Brasil foi uma mãe para mim”.

Houve sim, casos de corrupção no governo militar. Nenhum deles maior que o das “polonetas”, o empréstimo ilícito feito ao governo comunista da Polônia pelos esquerdistas que então infestavam o Ministério de Relações Exteriores de Geisel, contra os quais nem o Sr. Costa nem qualquer de seus congêneres diz a mais mínima palavra. E, entre os feitos de violência do regime, nenhum se compara à ajuda fornecida pelo mesmo governo Geisel para a ditadura cubana invadir Angola e aí matar, em poucos meses, pelo menos quinze mil pessoas. Também disso o Sr. Costa não diz nada.

Não há sinal de que, na ditadura Vargas, a violência social da polícia fosse menor do que se tornou depois ou de que fosse menos racialmente orientada. Simplesmente não é possível estudar o fator racial na conduta da polícia sem estudá-lo simultaneamente no próprio fenômeno da criminalidade. Até hoje ninguém provou que o número de “afrodescendentes” oprimidos ou assassinados pela polícia seja maior, proporcionalmente, do que o número deles no contingente de criminosos ou, mais ainda, na própria composição racial das tropas policiais. Sem essa prova, falar em racismo policial é calúnia pura e simples. Abolir metade do fenômeno para usar a outra metade como prova de racismo e, sem o mais mínimo fundamento comparativo, proclamar que esse racismo aumentou durante a ditadura militar (como se a própria noção de “aumentar” não fosse comparativa) é simplesmente expelir ódio por meio de mentiras.

Mas o Sr. Costa, repito, não tem fama de fanático odiento. Se tivesse, estaria tudo normal. Ninguém diz que o Sr. Costa é um agitador de extrema-esquerda. Ao contrário, a linguagem dos agitadores de extrema-esquerda tornou-se normativa, obrigatória e mainstream na mídia brasileira e nas classes falantes em geral – de tal modo que basta você resmungar um pouquinho contra ela e você é que é instantaneamente apontado como um perigoso extremista de direita, sem precisar para isso ter advogado jamais qualquer medida extrema contra quem quer que fosse.

Mais ainda, o Sr. Costa, na mesma medida em que abomina comparações e as faz no mesmo instante, ressaltando unilateralmente o horror da ditadura brasileira para fazê-la parecer ainda pior do que a argentina ou a cubana, nos sonega, novamente, um dos termos da comparação. Quantos entre os prisioneiros políticos de Cuba eram e são negros e mulatos? Quantos no Brasil? Quantos o eram entre os 17 mil fuzilados do regime cubano? Quantos entre os trezentos terroristas mortos pela nossa ditadura? Condenar comparações e em seguida fazê-las da maneira mais parcial, sectária e deformada é coisa de uma vigarice tão flagrante que em outras épocas qualquer esquerdista normal se recusaria a uma trapaça desse calibre. Mas o Sr. Costa não é um esquerdista normal. Ele é um esquerdista do ano 2009 no Brasil. E isso é muito diferente de sê-lo em qualquer outra parte do mundo e em qualquer outra época. No mínimo, essa condição basta para apagar, na mente do sujeito, esta obviedade gritante: se não é lícito dizer que uma ditadura foi pior que outra, também não pode sê-lo dizer que ela foi pior que ela mesma.

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