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Tinha de acontecer

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 6 de junho de 2013

          

A maior, a mais profunda e aparentemente a mais irrevogável consequência da dissolução do Império Soviético foi esta: como agora o comunismo não existe mais, qualquer um está livre para defender as mesmas políticas que os comunistas defendiam, impor os mesmos controles sociais que os comunistas impunham, atacar e denegrir as mesmas pessoas e valores que os comunistas atacavam e denegriam, cultuar e enaltecer os mesmos ídolos que os comunistas cultuavam e enalteciam, tudo isso sem jamais poder ser chamado de comunista.
Os comunistas, é claro, sempre gostaram de camuflar-se, de agir sob mil máscaras irreconhecíveis. Mas agora já não precisam disso: são os seus inimigos que os camuflam, que os escondem, por medo, por terror pânico de parecer saudosistas da Guerra Fria ou “extremistas de direita” (sabendo-se que hoje em dia tudo o que esteja à direita do centro-esquerda é extremismo).
Em vez de um comunismo que não ousa dizer seu nome, temos agora um comunismo do qual os adversários não ousam dizer o nome.
Tão intenso é entre liberais e conservadores o temor de pronunciar a palavra proibida, que qualquer semi-analfabeto de plantão numa cátedra universitária, com um retrato de Che Guevara na camiseta e o livrinho dos pensamentos do presidente Mao no bolso, estourando de orgulho por ter ajudado a matar cem milhões de pessoas, pode se alardear comunista no horário nobre e em cadeia nacional, seguro de que todo mundo verá nisso nada mais que um modo de dizer, uma graciosa hipérbole usada pour épater le bourgeois por um bom menino que, no fundo do seu coraçãozinho, não é comunista de maneira alguma (ver, como exemplo, o site http://www.cdc.ufop.br/).
Foi assim que, sob a proteção de uma densa e bem articulada rede de proibições linguísticas e inibições mentais, o movimento comunista chegou a dominar quase todo o cenário político latino-americano, a controlar todos os países da Europa Ocidental por meio de um grupo de burocratas jamais eleitos, a retomar o poder em várias nações recém egressas do comunismo e até a colocar um dos seus mais devotos servidores na presidência dos EUA – enquanto todos os que viam isso acontecer temiam que, se dissessem que estava acontecendo, soariam tão antiquados quanto um deputado da UDN, tão malvados quanto um torturador fascista ou tão loucos quanto o mais inventivo “teórico da conspiração”.
Como foi possível que transformação tão vasta, tão rápida e – em aparência – tão paradoxal viesse a suceder? Como foi possível que, à queda fragorosa de um regime falido e reconhecidamente criminoso se seguisse, não o debilitamento ou extinção da corrente política que por toda parte o sustentava, mas sim, ao contrário, a sua ascensão espetacular à posição de ideologia mundial dominante e, graças à proibição de nomeá-la, inatacável?
Só faço essa pergunta por caridade para com a burrice alheia, para com a indolência mental e a covardia moral daqueles que hoje, somente hoje, começam a suspeitar de algo que já estava óbvio e patente nos primeiros anos da década de 1990. Óbvio e patente, é claro, para quem observa, estuda, investiga e busca a verdade no meio da confusão; não para aqueles que se sentem tranquilos e seguros de si porque assistiram ao Jornal Nacional ou leram a Folha de S. Paulo.
Hoje, aos 66 anos de idade, faltando apenas dois para completar meio século de jornalismo, estou definitivamente persuadido de que qualquer cidadão que tenha sua principal ou única fonte de informações na mídia popular –  chamada “grande”, talvez, apenas  pela dimensão das suas dívidas ou das suas negociatas com o governo –, é um bocó de mola incurável, um cretino desprezível cuja opinião não vale o bafo que a expele.
Vendo o sucesso mundial do comunismo sem rosto, não cabe perguntar: “Como isso aconteceu?” e sim: “Como poderia não ter acontecido?” Imaginem se, finda a 2ª Guerra, derrubado o governo do Führer, ninguém movesse uma palha para punir os crimes do regime extinto e expor ao mundo o horror da ideologia que os produzira, mas, ao contrário, todo mundo tratasse de silenciar a respeito “para não reabrir velhas feridas” e deixasse os altos funcionários nazistas nos seus lugares, enriquecidos pelo rateio dos bens do Estado e livres para circular pelo mundo como honestos e bem-vindos investidores? Quem não vê que em dez anos o nazismo estaria de volta sob outro nome, talvez   “Poderíamos ter vencido o comunismo em 1991”, disse Vladimir Bukovski, “mas para isso precisaríamos de um novo Tribunal de Nuremberg”.
Não houve tribunal nenhum. Mutatis mutandis, de que serviu abortar em 1964 o golpe comunista que se preparava no Brasil, se em seguida o novo regime, em vez de educar a população contra o comunismo, preferiu se embelezar com as pompas da “neutralidade ideológica” e do “pragmatismo” e só combater os comunistas seletivamente e na sombra, como que envergonhado de antemão pelos crimes que essa escolha imbecil o levaria quase que inevitavelmente a cometer?
Pior ainda, de que adiantou bloquear o avanço dos comunistas se em seu lugar se instalou no governo um autoritarismo tão centralizador quanto o deles, substituindo a elite iluminada vermelha por uma elite iluminada verde-oliva, tão ciumenta das suas prerrogativas ao ponto de excluir da política os líderes conservadores mais populares, preenchendo os seus espaços com os mais medíocres e subservientes, para os quais o posto de meros carimbadores de decretos era até uma honra insigne?
Como seria possível, aqui e no resto do mundo, que o que aconteceu não acontecesse?

Debilidades

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de junho de 2013

          

Em artigo recente, expliquei que um dos mais velhos truques do movimento revolucionário é limpar-se na sua própria sujeira, cuja existência negava até a véspera.

Desde a queda da URSS, a maneira mais usual de aplicar esse truque consiste em jurar que tudo aquilo que durante setenta anos todos os comunistas do mundo chamaram de comunismo não foi comunismo de maneira alguma: foi capitalismo.

Mediante essa simples troca de palavras a ideia comunista sai limpa e inocente de todo o sangue que se derramou para realizá-la, e gentilmente solicita da plateia um novo crédito de confiança, isto é, mais sangue, jurando que desta vez vai ser um pouquinho só, um tiquinho de nada. Por exemplo, varrer Israel do mapa ou exterminar a raça branca.

O apresentador dessa modesta sugestão não explica nunca como bilhões de pessoas inspiradas na teoria histórica mais científica de todos os tempos – insuperável, no dizer de Jean-Paul Sartre –, puderam se enganar tão profundamente quanto àquilo que elas mesmas estavam fazendo, nem como foi que ele próprio, subindo acima de Lenin, de Stálin, de Mao Dzedong e de tantos luminares do marxismo, foi o primeirão a enxergar  a luz.

Nem muito menos explica como é possível, de uma teoria que ensina a unidade substancial de ideia e prática, se pode obter uma separação tão radical dessas duas coisas que uma delas saia inteiramente limpa e a outra inteiramente suja.

Mas esse pessoal é assim mesmo: quando chega na página seguinte, já esqueceu a anterior.

Dois exemplos recentes vêm-nos da Sra. Lúcia Guimarães, que é talvez o caso mais típico de ignorância elegante no jornalismo brasileiro, e da srta. Yoani Sanchez, uma abnegada que procura salvar a imagem do comunismo cubano isolando-a de um breve erro de percurso de apenas meio século.

O argumento das duas é substancialmente o mesmo: não se pode culpar o comunismo por nada do que aconteceu na URSS, na China, no Camboja ou em Cuba, porque o comunismo é a posse e domínio dos meios de produção pelos proletários, e não pelo Estado como se viu nesses lugares.

Dona Lúcia chega a passar pito no dramaturgo David Mamet porque este diz que a doce promessa de Karl Marx, “De cada um conforme suas possibilidades a cada um conforme suas necessidades” não passa de uma expressão cifrada para justificar a espoliação de todos pelo Estado.

Em todos os regimes comunistas foi isso o que se deu realmente, mas ainda assim Dona Lúcia assegura que Mamet “levaria nota baixa em marxismo, porque o espantalho invocado por Mamet estava pensando numa utopia do proletariado, não do Estado”.

No mesmo sentido pronuncia-se Yoani Sanchez para jurar que em Cuba nunca houve comunismo, apenas capitalismo de Estado.

Não é preciso observar que assim, com um estalar de dedos, a teoria que se apresentava como idêntica à sua encarnação histórica se torna uma ideia pura platônica, um ente metafísico separado, imune a toda contaminação deste baixo mundo.

Eu não seria cruel de esperar dessas duas criaturas a compreensão dessa sutileza, mas elas poderiam ao menos ter lido um dos mais célebres parágrafos de Karl Marx, no Manifesto Comunista:

“A última etapa da revolução proletária é a constituição do proletariado como classe dominante… O proletariado servir-se-á da sua dominação política para arrancar progressivamente todo o capital da burguesia, para centralizar todos os meios de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado…”

Aí não existe, no mais mínimo que seja, o antagonismo que aquelas duas inteligências iluminadas acreditaram enxergar entre o Estado e o proletariado: o Estado é o proletariado organizado, o proletariado organizado é o Estado. E o proletariado organizado não é outra coisa senão o Partido.

A profecia da “autodissolução do Estado” na apoteose dos tempos é somente uma figura de linguagem, um jogo de palavras, uma pegadinha infernal. Marx explica que, como tudo pertencerá ao Estado, este já não existirá como entidade distinta, mas a própria sociedade será o Estado.

 É uma curiosa inversão da regra biológica de que quando o coelho come alface não é o coelho que vira alface, mas a alface que vira coelho. Se o Estado engole a sociedade, não é o Estado que desaparece: é a sociedade. Que a sociedade dominada, esmagada e anulada não sinta mais o peso da dominação não quer dizer que esta não exista, mas que o dominado está exausto e estupidificado demais para tomar consciência dela. É o totalitarismo perfeito em que, nas palavras de Antonio Gramsci, o poder do Partido-Estado já não é percebido como tal, mas se torna “uma autoridade onipresente e invisível como a de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

Um exame atento dos textos de Karl Marx teria bastado, em plena metade do século 19, para perceber neles o Gulag, o Laogai e centenas de milhões de mortos, todo o terror e misérias dos regimes comunistas como consequências incontornáveis da própria lógica interna da teoria, caso tentasse sair do papel para encarnar-se na História.

Marx, Engels e Lenin em pessoa reconheceram isso inúmeras vezes, enaltecendo o genocídio e a tirania como “parteiros da História”. Que, decorridos cento e sessenta e tantos anos, ainda haja tantas pessoas que insistam em explicar como fruto de desagradáveis coincidências aquilo que a própria teoria exige como condição sine qua non da sua realização é, decerto, uma das provas mais contundentes de uma debilidade intelectual que não deixa de refletir, talvez, alguma debilidade de caráter.

Conforme o esperado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de maio de 2013

          

Se, com os escândalos de Benghazi, do grampo na Associated Press e da instrumentalização partidária do Imposto de Renda, pela primeira vez um pouco do verdadeiro rosto de Barack Hussein Obama está aparecendo na grande mídia, onde por anos a fio só se via a sua imagem embelezada até o limite do culto idolátrico, isso ilustra, uma vez mais, a lição dos estratagemas chineses: para que esperar o fato consumado, em vez de tentar descobrir o mal em germe, para eliminá-lo antes que produza todo um caudal de consequências nefastas?
Em 2008 o homem apresentou-se candidato à presidência sem ter uma só realização em seu currículo, sem mostrar um único documento de identidade válido e trazendo uma história de vida mais que nebulosa, repleta de ligações íntimas com agentes soviéticos, radicais islâmicos, terroristas e gangsters.
Não havia rigorosamente nenhum motivo para que alguém em seu juízo perfeito confiasse nessa criatura. Muito menos para supor que um aluno fiel e devoto de Saul Alinsky e Frank Marshall Davis fosse fazer na presidência algo de muito diferente daquilo que eles lhe haviam ensinado: corromper o Estado democrático para destrui-lo por dentro, substituindo-o pouco a pouco pelo governo tirânico de uma elite descarada, voraz e infinitamente presunçosa.
Naquele mesmo ano a colunista americana Debbie Schussel divulgou o alistamento militar grosseiramente falsificado, prova cabal de que o candidato era um criminoso chinfrim, sem qualificações para obter uma licença de porte de arma ou mesmo um emprego de balconista do Walmart. O tipo ideal, enfim, para tornar-se a gazua com que as forças inimigas planejavam arrombar as portas do sistema.
Também logo se tornou público que ele gastava rios de dinheiro para manter ocultos os seus documentos, exatamente aqueles que, ao mesmo tempo, o Congresso, Obama incluso, exigia do seu concorrente. Em 2008 já era possível perceber claramente que, quando esse indivíduo proclamava “Só quem não quer exibir a verdade é quem tem algo a esconder”, ele falava dele mesmo.
É inteiramente irracional aceitar e confirmar um sujeito desses na presidência da república, aplaudi-lo, paparicá-lo e protegê-lo por cinco anos, brandindo todas as armas da intimidação e da chacota contra os que ousem pretender investigá-lo, e depois, de repente, mostrar uma indignada surpresa ante a revelação de que durante esse tempo ele agiu precisamente de acordo com o que sua personalidade e suas origens ideológicas deixavam antever.
Afolha de serviços ostensivamente prestados por Obama à Rússia, à China, à Arábia Saudita e aos terroristas islâmicos só se compara à lista de seus erros alegadamente acidentais cometidos sempre em favor desses mesmos beneficiários. Juntas, formam uma enciclopédia da mendacidade, da traição e da indiferença psicopática aos valores morais e patrióticos proclamados de boca cheia, na voz empostada de um ator bem ensaiado.
Tudo isso é, de fato, muito impressionante. Mas, para quem quer que em 2008 conhecesse a biografia do tipo, nada disso foi surpresa. Só o foi para os que se deixaram hipnotizar, seja pelo maior blefe propagandístico de todos os tempos, seja pela ilusão da imunidade do sistema a qualquer tentativa de subvertê-lo por dentro – ilusão sem a qual o blefe jamais pegaria.
Tanto pela amplitude hiperbólica das suas promessas quanto pela ambiguidade da retórica entre sedutora e ameaçadora com que as anunciava, Obama, de fato, não deixava ao eleitor nenhuma terceira alternativa entre o fascínio embriagador e a suspeita de um projeto criminoso que soava, ao mesmo tempo, artificioso demais e torpe demais para que alguém ousasse tentar realizá-lo.
Pois bem: está realizado. O “sistema” americano não existe mais. O que hoje ocupa seu lugar é um esquema de poder centralizado que, usando os órgãos de governo como instrumentos de ataque e a mídia cúmplice como escudo defensivo, imuniza o presidente contra qualquer tentativa de obrigá-lo a cumprir as leis e a Constituição.
Nos cinco anos que se passaram desde sua primeira eleição, Obama declarou guerras sem consulta ao Congresso, duplicou a dívida americana, distribuiu dinheiro a rodo entre as empresas falidas de seus amigos, espalhou agentes islâmicos nos altos postos do governo federal, deu armas e dinheiro aos mais violentos inimigos do país, protegeu e adulou o Islã por todos os meios ao mesmo tempo que tentava expurgar os cristãos das Forças Armadas, derrubou dois governos no Oriente Médio para entregá-los ao poder da Al-Qaeda e da  Fraternidade Muçulmana e transformou o Homeland Security numa polícia armada tão assustadora que hoje os americanos, segundo as estatísticas, têm mais medo do governo que dos terroristas.
Em todos esses episódios, a simples insinuação de que ele procedia antes como um agente inimigo do que como um americano era repelida com tal violência pelos bem-pensantes, que acabava por morrer como um sussurro inaudível, abafado no fundo da internet.
Quando o ator Chris Rock exclamou do alto do palco: “Palmas para nosso Senhor e Salvador Barack Obama!”, ele expressou bem a atmosfera de adoração histérica com que uma nação, de joelhos, implorava ao governante que a ludibriasse, maltratasse e oprimisse, e jurava jamais desconfiar dele, fizesse o que fizesse.
O que pode haver de tão inesperado no fato de que, com tão excelsas garantias de impunidade, Obama  se sentisse livre para usar o Imposto de Renda como um porrete, grampear os telefones de meio mundo e jogar com as vidas de soldados e funcionários americanos como se estes  fossem peças descartáveis de um jogo banal?

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