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Difamação pura

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de novembro de 2013

          

Meu artigo “Nem um pouquinho” veio com um erro: o colunista Rodrigo Constantino não entrou na Folha, mas no Globo e na Veja. Quem foi para a Folha junto com o Reinaldo Azevedo foi o Demétrio Magnoli. Qualquer que seja o caso, a observação que fiz sobre as reações indignadas dos mandarins da esquerda foi exata, apenas incompleta. Esqueci de enfatizar que essas reações não se voltavam contra isto ou aquilo que os articulistas tivessem escrito, mas contra a sua simples presença na mídia. Não se tratava de refutar opiniões, mas de cortar cabeças.
Também deixei de observar que os apelos à guilhotina não vieram todos de fora, mas alguns apareceram nos próprios jornais onde os novos colunistas estreavam. Nunca, nunca, em toda a história da mídia brasileira, se viu uma pressão coletiva de jornalistas pela expulsão de algum colega socialista ou comunista da redação de qualquer jornal, estação de rádio ou canal de TV.
A solidariedade de classe entre os jornalistas brasileiros é só para os comunistas e seus companheiros de viagem. Até os direitistas correm para protegê-los, como se viu tantas vezes no tempo dos militares. Mas o infeliz liberal ou conservador, pego em flagrante delito de escrever artigos para a grande mídia, não tem perdão. É abandonado até pelos seus correligionários.
É verdade que os jornalistas da direita vêm ganhando algum espaço, mas no Brasil a esquerda está tão acostumada a mandar sozinha na mídia, que se escandaliza e espuma de raiva com isso. Em qualquer país decente, a direita e a esquerda repartem mais ou menos equitativamente os meios de difusão. No Brasil, quando a direita salta dos dois por cento para os cinco por cento, já é o alarma geral, em tons sinistros de quem anuncia um golpe de Estado. Um dos indignados, o indefectível Paulo Moreira Leite, mente como um vendedor de terrenos submarinos ao dizer: “Quem estava no centro foi para a direita. Quem estava à direita foi para a extrema-direita.” Constantino, Azevedo e Magnoli, desde que estrearam como colunistas, não mudaram de convicções em absolutamente nada. Foram os censores esquerdistas, como o próprio Moreira Leite, que, estreitando cada vez mais a área do direitismo permitido na mídia, passaram a rotular simples liberais de “extremistas de direita”, tentando criminalizá-los. Moreira Leite confunde maquiavelicamente a régua com o objeto medido.
Mais obsceno ainda é Antonio Prata, da própria Folha, que, imaginando fazer sátira, escreve: “Como todos sabem, vivemos num totalitarismo de esquerda. A rubra súcia domina o governo, as universidades, a mídia, a cúpula da CBF e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, na Câmara” – uma descrição bem exata e literal do estado de coisas. Tanto que vários leitores levaram a afirmativa a sério e a aplaudiram. O autor teve de avisar, “ex post facto”, que pretendera fazer piada. No meu tempo de ginásio, quem quer que ignorasse que não se satiriza a verdade tiraria zero de redação. Mas, para expulsar os liberais e conservadores da mídia, vale até um colunista se expor ao ridículo. Tudo pela causa.
Voltando ao sr. Moreira Leite, sei que é inútil tentar levar alguém como ele a um debate sério, mas, para dar aos leitores uma idéia de quanto o uso atual do rótulo de “extrema direita” na mídia é abusivo, notem esta distinção, que toda a ciência política do mundo confirma: a diferença de esquerda e extrema esquerda é de graus e de meios, a de direita e extrema direita é de natureza, de fins e de valores.
O esquerdista torna-se extremista quando quer realizar, por meios revolucionários e violentos, o mesmo que a esquerda moderada busca fazer devagar e pacificamente: a expansão do controle estatal na economia, visando à debilitação e, no fim, à extinção da propriedade privada dos meios de produção.
Totalmente diversa é a relação entre direita e extrema direita. Ser de direita, ou liberal, é ser a favor da economia de mercado, das liberdades civis e da democracia constitucional (a versão conservadora defende essas mesmísimas políticas, mas o faz em nome da tradição judaico-cristã, que para o liberal não significa grande coisa). Se por extrema direita se entende aquilo que o vocabulário corrente e a esquerda em especial designam por esse nome, isto é, o fascismo e o nazismo, o fato que estou assinalando salta aos olhos da maneira mais clara e inequívoca: ser de extrema direita não é querer mais economia de mercado, mais liberdades civis, mais democracia constitucional  — é querer acabar com essas três coisas em nome da ordem, da disciplina, da autoridade do Estado, às vezes em nome do anticomunismo, do combate à criminalidade ou de qualquer outro motivo. Não houve um só governo conhecido como de extrema direita que não fizesse exatamente isso. A conclusão é óbvia: passar da esquerda à extrema esquerda é somente uma intensificação de grau na busca de fins e valores que permanecem idênticos em essência. Passar da direita à “extrema direita” é mudar de fins e valores, é renegar o que se acreditava e, em nome de alguma urgência real ou fictícia, empunhar a bandeira do que se odiava, se desprezava e se temia. Constantino, Azevedo, Magnoli não fizeram isso. São odiados precisamente porque defendem o que sempre defenderam. Por isso o único meio de difamá-los é trocá-los de classificação, alistá-los à força no exército dos seus inimigos, identificá-los com tudo o que abominam e combatem.
Eis aí por que uma frase como a do sr. Paulo Moreira Leite – “passaram da direita à extrema direita” – é um expediente difamatório apenas, não uma afirmação séria, pensada, digna de um intelecto respeitável.

Nem um pouquinho

Olavo de Carvalho

Diário do comércio, 5 de novembro de 2013


A reação geral da mídia impressa e bloguística à presença de Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino na equipe de articulistas da Folha de S. Paulo traz a prova definitiva de que o “establishment” comunopetista não está disposto a aceitar nem mesmo oposição jornalística, individual e apartidária.

Nem mesmo um pouquinho dela. Aqueles que ainda se recusam a crer que estamos sob um regime de controle totalitário da opinião pública são os melhores aliados desse sistema de dominação cínico e intolerante, que cresce e se alastra sob a proteção da invisibilidade postiça com que o encobrem, como ontem fizeram com o Foro de São Paulo.

Incluo nisso aqueles que, com ares de guardiães da pátria, continuam pontificando sobre uma iminente “ameaça de tomada do poder pelos comunistas”. Esses só ajudam a camuflar a realidade: os comunistas já estão no poder, já controlam   os canais de ação política e propaganda, e não existe nem mesmo quem possa tomar o lugar deles.

A passagem da “fase de transição” para a da “implantação do socialismo” não está lenta porque alguém, entre os líderes políticos, militares ou empresariais, lhe ofereça resistência. Está lenta porque, após a primeira tentativa forçada com o Movimento Passe Livre, a liderança comunista está em dúvida quanto ao próximo passo, natural num país com a extensão, a diversidade regional e a complexidade deste Brasil.A única oposição que essa gente enfrenta é a natureza das coisas, cuja resistência passiva às mudanças forçadas é o pesadelo mais antigo e permanente dos guias iluminados da espécie humana. Oposição deliberada, organizada, não há. E as poucas vozes isoladas, se depender da classe jornalística a que pertencem e que as odeia, serão caladas em nome da democracia e da liberdade de opinião.

Na nomenclatura política reinante, os liberais moderadíssimos Azevedo e Constantino já foram transferidos para a “extrema direita”, que está a um passo do “crime de ódio” e do “terrorismo”. Dizem que os dois só foram admitidos na Folha por exigência pessoal do sr. Otávio Frias Filho, contra o consenso da reda ção. Se isso é fato, fala alto em favor do sr. Frias, mas mais alto ainda, grita de cima dos telhados a realidade de uma situação em que os empregados da empresa, regiamente pagos e sem ter investido nela um tostão, agem como se fossem os donos e ditam regras que o dono, juntando todas as reservas de coragem que lhe restam após décadas de complacência gentil, ousa contrariar pela primeira vez na vida.

Alguém duvida que, desde esse gesto, o sr. Frias é diariamente amaldiçoado no prédio inteiro da Alameda Barão de Limeira como “ditador” e “tirano”  por ter ousado mandar no que é seu, ainda que um tiquinho só? Não posso deixar de cumprimentá-lo pela iniciativa de inserir, na massa de duzentos esquerdistas que dominam as páginas da Folha dois articulistas liberais. Pelos critérios correntes, é um abuso, uma invasão, um golpe de extrema direita.

Entrei na imprensa em 1965. Estou nessa coisa há quase meio século, e nunca um dono de jornal veio me pressionar para que escrevesse o que não queria ou deixasse de escrever o que pensava. Otávio Frias pai, os Marinhos, Samuel Wainer, os Civitas, os Mesquitas e agora a Associação Comercial de São Paulo sempre respeitaram minha liberdade, mesmo quando eu pensava o contrário deles. Pressões, tentativas de intimidação,  difamação e toda sorte de cachorradas vieram sempre da redação, daqueles que eu considerava companheiros de trabalho, mas que se imaginavam meus patrões.

Lembro-me de um colega, militante comunista, que, tendo falhado à confiança do Partido nos anos 1960  foi excluído não só do emprego mas da profissão jornalística com a maior facilidade, mediante um simples zunzum passado de boca em boca nas redações pela liderança comunista, como se fosse um decreto: “Esse aí? Esse não. É mau caráter.” Mau caráter sou eu, que vi isso com meus próprios olhos e fiquei quieto, esperei vinte anos para denunciar a prepotência de jornalistas que assim agiam ao mesmo tempo que posavam de coitadinhos, de perseguidos e até de classe operária espoliada!

***

Um palhaço que se diz historiador assegurou, em debate pela internet, que a CIA havia fornecido aos golpistas de 1964 ajuda de US$ 12 bilhões, seis vezes o custo da fabricação da bomba atômica, numa época em que a totalidade dos investimentos estrangeiros no Brasil não passava de 86 milhões. Em valores de hoje, 12 bilhões equivalem a 90 bilhões: 45 vezes os gastos totais da eleição americana mais cara de todos os tempos.

Desafiado a provar a enormidade, apelou à autoridade de outro igual a ele, sem nenhum documento comprobatório.

Como eu citasse o livro do espião checo Ladislav Bittman, que confessava ter inventado a história da participação americana no golpe, o homenzinho respondeu: “Se foi assim, por que ele não escreveu um livro?” Tsk, tsk.

Feito isso, passou a me dar lições sobre o rigor científico que deve prevalecer no uso historiográfico de testemunhos, logo após ter repassado a seus leitores, como testemunho probante e fidedigno, a historinha do sr. Paulo Ghiraldelli, segundo a qual eu teria sido reprovado num vestibular da USP, o qual, aliás, jamais prestei. É esse tipo de gente que ensina História nas universidades do Brasil.

Os médicos e os beagles

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de outubro de 2013

          

Todo mundo tem alguma opinião sobre o caso do Instituto Royal. Eu não tenho nenhuma. Vejo nele, no entanto, uma amostra didaticamente clara do quanto os debates correntes na vida diária, hoje em dia, são ecos meio inconscientes de conflitos internos do movimento revolucionário mundial.
Entrar numa discussão sem saber qual a origem histórica das ideias que defendemos e atacamos é a melhor maneira de fortalecer ou debilitar correntes ideológico-políticas que desconhecemos. Assim ajudamos a produzir resultados  que, se deles tivéssemos antecipadamente alguma consciência, talvez nos parecessem horríveis.
Nesses confrontos de opinião, cada um acredita piamente falar em nome de puros valores universais, em si mesmos inquestionáveis. No caso em questão, é o  dever de piedade para com os animais contra o dever médico de salvar vidas humanas.
Acontece que, colocada assim, a questão só pode ser decidida pela adesão aos “direitos dos animais”, tal como formulados pelo filósofo Peter Singer, ou pela proclamação da prioridade absoluta da autoridade cient ífica.
Os valores que legitimam os argumentos são, em si mesmos, universais e abstratos, mas as escolhas práticas incumbidas de traduzi-los em ações no mundo real não são nem abstratas nem universais: são propostas ideológicas nascidas dentro do movimento revolucionário em duas épocas distintas do seu desenvolvimento.
 Você pode argumentar em nome de valores puros, mas, sem saber, está pondo lenha na fogueira em que a mentalidade revolucionária vem queimando o mundo há mais de dois séculos.
  Até os tempos de Luís XIV pelo menos, os médicos eram funcionários subalternos como os cozinheiros, os adestradores de cavalos e os pintores (mesmo ilustres como Velásquez ou Michelangelo).
Foi a Revolução Francesa que, na esteira do Iluminismo, fez deles uma classe de sábios e como que sacerdotes, investidos de um papel de relevo no guiamento moral da espécie humana.
O positivismo de Augusto Comte – cujos netos e bisnetos ainda andam pelo mundo, sob nomes diversos – completou o rito de sagração mediante a idéia da “política científica”, segundo a qual o mundo só teria paz quando as decisões políticas fossem tomadas racionalmente por uma elite científica, eliminado todo direito às divergências subjetivas e às “razões do coração” (o melhor livro que conheço a respeito é Régénérer l’Espèce Humaine. Utopie Médicale et Lumières, do historiador Xavier Martin, Paris, 2008).
 A partir de então, muitas questões de natureza filosófica e religiosa foram transferidas para a alçada da classe médico-científica, que, naturalmente, fazia abstração dos seus aspectos mais problemáticos e sutis, reduzindo tudo aos parâmetros do seu método especializado e, em última análise, à distinção do “normal” e do  “patológico”.
Até hoje, no entanto, essa dupla de conceitos é alvo de dissensões ferozes, contrastando com a nitidez pacífica da antiga distinção religiosa entre vícios e virtudes, que, nominalmente, ela veio substituir pela racionalidade de conceitos “claros e distintos”.
Por exemplo, o homossexualismo é normal ou é doença? O gayzismo tem hoje o prestígio de uma causa revolucionária, mas houve um tempo em que o profeta mesmo da “liberação sexual”, o psiquiatra alemão Wilhelm Reich, via nas práticas homossexuais uma perversão típica da sociedade capitalista, destinada a desaparecer da face da Terra tão logo a energia sexual fosse liberada da repressão burguesa e todos fossem felizes para sempre no paraíso heterossexual socialista.
A transferência da autoridade moral para a classe científica resultou na dissolução de inúmeros conceitos científicos na massa amorfa de infindáveis debates ideológicos mais confusos e mais insolúveis do que qualquer disputa  teológica do século13.
 O direito ao uso praticamente ilimitado de animais na experimentaçã  científica é algo que teria escandalizado um escolástico da Idade Média –  para não mencionar os franciscanos, que conversava m com passarinhos; mas, no século 19, isso pareceu inteiramente normal, porque era simplesmente um passo a mais na progressiva concentração revolucionária do poder nas mãos de uma elite iluminada, e incumbida de “regenerar a espécie humana”.
Não demorou muito para que, corroída pelo debate científico, a antiga noção bíblica do homem como imagem de Deus cedesse lugar à concepção da humanidade como uma simples espécie animal entre outras, tornando portanto aceitável a idéia de usar os próprios seres humanos como cobaias de laboratório ou de tratá-los com eletrochoques caso divergissem “patologicamente” da ideologia governamental.
O movimento revolucionário evolui, ao mesmo tempo, por expansão e por autonegação. O horror totalitário que ele próprio criou cedeu lugar, assim, ao discurso dos “direitos das minorias”. Mas foi daí mesmo que, na fase seguinte do debate revolucionário, o professor Peter Singer tirou a conclusão de que devia condenar como delito de “especismo” a prioridade dos direitos humanos sobre os “direitos dos animais” e proclamar que é mais justo, num experimento científico, sacrificar antes um bebê mongolóide do que um macaco-prego inteligente.
 Eis aí o pano-de-fundo ideológico sobre o qual se desenrola, sem esperança de solução, o debate entre os advogados dos Beagles e os defensores do Instituto Royal.
O mandamento cristão da piedade, aplicado com critério e inteligência, seria suficiente para dirimir todas as dúvidas e orientar o procedimento em cada caso concreto. Mas quem quer voltar a essas velharias em pleno século 21?

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