Posts Tagged Diário do Comércio

A América brasilianizada

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 4 de janeiro de 2006

Nos EUA, os imigrantes brasileiros são conhecidos como eméritos falsificadores de documentos. Achando muito natural e sempre justo resolver qualquer dificuldadezinha mediante a alteração de datas, nomes, números e fatos, eles têm sido um poderoso estimulante à corrosão da velha “sociedade de confiança” americana e à sua substituição por um sistema rígido de controles estatais e burocráticos. Esse sistema quadra bem com a mentalidade do nosso povo, que prefere ser controlado de fora para não ter de assumir as responsabilidades da vida adulta. Mas, para o americano, que vê sua orgulhosa autonomia individual dissolver-se numa sopa de regulamentos e proibições, ele é a morte. A “democracia na América”, como bem viu Tocqueville, fundava-se na síntese indissolúvel de liberdade externa e self control moral e religioso. O burocratismo socializante inverte a fórmula, fomentando a irresponsabilidade pueril que suscita a proliferação de bedéis, fiscais e sargentos de polícia. O americano tradicional sabia que podia haver governo limitado e liberdade para todos se cada um se governasse a si próprio, lesse a Bíblia e abdicasse de cobiçar a mulher ou os bens do próximo. O estatismo cresce estimulando a inveja e a cobiça generalizadas, adornando de pretextos sofisticados a recusa do autocontrole e a proclamação arrogante do primado do prazer sobre o dever. Por toda parte, aqui, observa-se o avanço implacável do infantilismo socialista sobre a antiga liberdade americana, cujos defensores se batem contra a aliança quase onipotente da burocracia estatal com as fundações bilionárias e a multidão dos ativistas enragés .

Não resta dúvida: os EUA brasilianizam-se.

Os avanços do controle estatal, não é preciso dizer, vêm sempre por iniciativa da esquerda, mas por duas vias opostas, uma positiva, outra negativa, operando segundo o consagrado esquema de uma “pressão de cima” que se opõe dialeticamente a uma “pressão de baixo” para produzir o desejado efeito de conjunto (a estratégia é descrita num famoso documento do Partido Comunista da Tchecoslováquia, escrito por Jan Kozak e divulgado no Ocidente sob o título And Not a Shot Is Fired). Positivamente e “desde cima”, os esquerdistas tornam o aumento do controle estatal sobre a sociedade uma idéia aceitável em nome de programas sociais soi disant beneméritos. Negativamente, “desde baixo”, estimulam o ódio, a revolta e exigências anarquizantes que começam nas puerilidades do “sex’ lib” e culminam na defesa aberta da espionagem e do terrorismo, criando a permanente ameaça do caos que, naturalmente, só pode ser enfrentada por meio de novos acréscimos do poder estatal. A dupla estratégia articula-se, por sua vez, com a duplicidade de discursos. Quando o acréscimo do poder estatal vem pelas mãos da própria esquerda, é utilizado como símbolo de “moderação” e “equilíbrio” para seduzir a parte não-esquerdista do eleitorado. Quando, ao contrário, é a direita que está no poder e se vê obrigada a lançar mão do mesmo mecanismo para deter o avanço do caos alimentado “em baixo” pela esquerda, isso é explicado como sintoma do “totalitarismo” do governo conservador. Bill Clinton era louvado por defender o direito presidencial de mandar espionar terroristas sem ordem judicial, enquanto George W. Bush é chamado de fascista por fazer exatamente a mesma coisa. Num caso, a pretensão presidencial funcionava como prova de que a esquerda não era tão amiga de terroristas quanto se dizia; no outro, como prova de que os conservadores se utilizam do pretexto do terrorismo para ampliar os mecanismos repressivos sobre a sociedade inteira.

O efeito de conjunto dessa quádruplo ataque é devastador, e pode ser explorado ainda, secundariamente, como alimento da propaganda anti-americana nos países periféricos. Observando por alto os avanços do controle estatal nos EUA sem saber como foram produzidos, a platéia do Terceiro Mundo pode ser facilmente persuadida a enxergá-los como provas do “fascismo conservador”.

Muito do que no Brasil se chama de “análise política” consiste somente na repetição desesperadoramente mecânica desse engodo. Carreiras universitárias inteiras constroem-se em cima disso. Os brasileiros, que nos EUA ajudam a fomentar a intromissão da autoridade governamental em tudo, em casa se autolisonjeiam falando mal do governo americano por meter-se em tudo. Não falsificam só documentos, para tirar proveito ilícito do país hospitaleiro que odeiam. Falsificam a imagem inteira desse país, para sentir-se mais honestos que a vítima da fraude que praticam.

Autoridade moral da mentira

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 2 de janeiro de 2006

Durante décadas os regimes comunistas e islâmicos praticaram a tortura em massa de prisioneiros políticos, usando métodos que iam das camisas-de-força e choques elétricos até à mutilação e à morte. A quase totalidade dos intelectuais esquerdistas e a mídia chique (a começar, entre nós, pela Folha de S. Paulo , nos EUA pelo New York Times , na Inglaterra pela BBC) não apenas se omitiram de denunciar esses crimes, ao menos com alguma ênfase, mas na maioria dos casos se esforçaram para minimizá-los e até para ocultá-los por completo.

Bastou, porém, a notícia de que os militares americanos gritavam com terroristas iraquianos presos, vestiam calcinhas nas cabeças deles para humilhá-los ou os obrigavam a ouvir CDs de heavy metal, para que uma onda gigante de protestos varresse o planeta, gritando contra a “tortura” e apresentando-se com ares de nobilíssimo apelo aos mais altos sentimentos da humanidade.

São justamente os mais cínicos e brutais que com maior facilidade envergam o manto da autoridade moral, impressionando pelas caretas de compunção e dignidade em que só a parte sonsa da platéia não reconhece o fingimento, a macaqueação histriônica, as lágrimas de crocodilo.

Não espanta que o modelo supremo de virtudes cultuado por essa gente seja Noam Chomsky, um monstro de mendacidade capaz de fazer a apologia do regime Pol-Pot no auge da matança sistemática de dois milhões de civis e logo em seguida acusar de genocídio nazista o seu próprio país por conta de feitos macabros incomparavelmente mais modestos praticados, aliás, nem mesmo pelos EUA, mas por um seu aliado remoto, a Indonésia (ele insiste nisso num recente artigo da revista inglesa Prospect).

Os critérios perversos instituídos pelos Chomskys na mídia internacional, onde pelo menos encontram alguma oposição, são copiados servilmente pelos jornais brasileiros, onde praticamente ninguém os contesta. Com exceções que se tornam tanto mais honrosas porque se contam nos dedos, jornalismo, no Brasil, é militância esquerdista e nada mais. Militância esquerdista subsidiada por empresários covardes, irresponsáveis, oportunistas. Sobretudo incultos, incapazes de informar-se por si próprios e por isto dependentes dos gurus esquerdistas a quem entregam o poder total sobre suas redações, tratam com devoção subserviente e pagam salários indecentemente elevados.

Nessas condições, não há critério de honestidade jornalística que sobreviva.

Argemiro Ferreira, o correspondente da Globonews em Nova York, tem a imensurável cara de pau de negar que haja um esforço organizado para erradicar o cristianismo da cultura americana, e atribui a inocentes considerações mercadológicas a substituição do tradicional “Merry Christmas” por “Happy Holidays” nos cartazes do Walmart, do Target etc., substituição que na verdade atendeu a pressões crescentes exercidas pela ACLU e por outras organizações anti-religiosas desde há mais de cinco décadas. Ele está tão satisfeito com a própria ignorância que chega a escrever que os evolucionistas “não vetam a teoria bíblica ou intelligent design , mas acham que deve ser ensinada na aula de religião, não de ciências”. Bem pago para viver nos EUA e informar-se do que aí se passa, não sabe sequer que aulas de religião não existem no ensino público americano. E depois disso ainda se sente à vontade para chamar de “semi-analfabeto” o comentarista da Fox News, John Gibson, que comparado a ele é Isaac Newton.

Alberto Dines, como comentei na semana passada, proclama que a direita católica domina os jornais, mas desafiado por Diogo Mainardi a citar um potentado católico imperando sobre alguma redação, não consegue encontrar um só. Mainardi, em resposta, mencionou dúzias de comuno-petistas nos altos postos da mídia. Como reage Dines agora? Confessa a derrota? Nada. Acusa o adversário de fazer “perseguição macartista” aos senhores da mídia, como se a desproporção numérica entre um só Mainardi e a multidão dos que o odeiam já não bastasse para mostrar quem é o perseguidor, quem o perseguido.

A entrega das redações ao guiamento desses iluminados explica por que a circulação dos jornais diários continua mais ou menos a mesma dos anos 50, enquanto a população do país dobrou, o analfabetismo foi praticamente erradicado e o número de revistas empresariais e especializadas quase centuplicou. A TV, é claro, tem outros atrativos, inclusive a exploração sexual, e vive deles. Mas jornais não sobrevivem à ocultação ideologicamente seletiva das noticias.

Mundo maravilhoso

Duas dicas que você não encontrará em nenhum jornal brasileiro:

1) Ramsey Clark, o ex-procurador geral que está atuando voluntariamente na defesa de Saddam Hussein, foi advogado do governo comunista do Vietnã do Norte na época em que este torturava prisioneiros americanos a granel. Depois trabalhou também para a ditadura dos aiatolás do Irã, e organizou uma campanha em favor de Slobodan Milosevic. A revista Salon publicou sua biografia sob o título “Ramsey Clark, o melhor amigo dos criminosos de guerra”. A ONG que ele fundou, International Action Center, é constituída quase que inteiramente de membros do Workers World Party, marxista-leninista.

2) O Canadá acaba de se tornar o paraíso dos pedófilos. A idade mínima para o cidadãozinho poder ser convidado, sem crime, para participar de qualquer atividade sexual, incluindo sadomasoquismo, foi baixada para 14 anos. Prestem atenção: a liberação mundial da pedofilia está no programa das ONGs milionárias e se tornará realidade antes de transcorrida uma década. O filme em louvor de Alfred Kinsey, estrelado por Liam Neeson, já é pura preparação psicológica das massas para que aceitem isso sem reclamar. As pesquisas de Kinsey foram patrocinadas pela Fundação Rockefeller, que as impôs como verdade científica a todo o establishment universitário. Hoje sabe-se que Kinsey era pedófilo praticante, que abusou até de recém-nascidos e que subsidiou as “pesquisas de campo” feitas por um criminoso de guerra nazista, contratado por ele para ter relações sexuais com meninos e depois descrever suas reações. Descobriu-se também que suas descrições do comportamento sexual dos americanos não se basearam em pesquisas com pessoas comuns, mas com estupradores e molestadores de crianças, sendo depois falsamente apresentadas como retratos fiéis da média normal dos cidadãos. Em suma, Kinsey era um monstro, um psicopata perigoso. Depois de todas essas descobertas, jamais seriamente contestadas, fazer um filme glorificando o sujeito é, obviamente, estratégia de dessensibilização.

Presunção afirmativa

No jornal O Globo do último dia 24, Letícia Sardas, desembargadora no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, atribui aos juízes a função de “ transformar direitos” por meio de “ações afirmativas” e, assim, “reescrever a história do ser humano, colocando as novas questões de acordo com nossa experiência e sensibilidade”.

Essa senhora já está grandinha o bastante para saber que “transformar direitos”, assim como instituí-los e revogá-los, é função de legisladores eleitos pelo povo e não de qualquer funcionário público que se arrogue essa função.

Do mesmo modo, “colocar as novas questões de acordo com a nossa experiência e sensibilidade”, na medida em que dessa discussão podem nascer ou perecer, ampliar-se ou restringir-se direitos, é também incumbência do Parlamento eleito. A tarefa dos juízes começa justamente quando essa discussão terminou.

Funcionários públicos que prometem eliminar as injustiças sociais foram Robespierre e Lênin, Stalin e Hitler, Mao e Pol-pot. O Brasil não chegou a tanto, mas já tem Letícia Sardas.

Não há desigualdade maior que a do funcionário que se investe da autoridade de definir a seu belprazer sua própria função, seus próprios poderes e seus próprios direitos, enquanto todos os demais funcionários e cidadãos devem ater-se ao que lhes prescreve a lei. Se, por exemplo, os jornalistas, num acesso de autoadoração grupal semelhante àquele em que se embriagam certos juízes, resolvessem decretar que a função do jornalismo não é contar o que se passou ontem, mas “reescrever a história de acordo com a nossa experiência e sensibilidade” (e não tenho dúvidas de que muitos fazem precisamente isso), a população perceberia imediatamente estar lidando com charlatães ambiciosos. Por que o critério deveria ser diferente com juízes que, de repente, decidem criar e revogar direitos como se fossem legisladores?

Guerras culturais

“O segredo é da natureza mesma do poder”, dizia René Guénon. Quem ignore essa regra hoje em dia está condenado a servir de instrumento cego e dócil para a realização de planos políticos de enorme envergadura que lhe permanecem totalmente invisíveis e inacessíveis. Isso é particularmente verdadeiro no caso das chamadas “guerras culturais”, cujos movimentos, sutis e de longuíssimo prazo, escapam à percepção não só das massas como da quase totalidade das elites políticas, econômicas e militares. Todos sofrem o seu impacto e são profundamente alterados no curso do processo, inclusive nas suas reações mais íntimas e pessoais, mas geralmente atribuem esse efeito à espontaneidade do processo histórico ou a uma fatalidade inerente à natureza das coisas, sem ter a menor idéia de que até mesmo essa reação foi calculada e produzida de antemão por planejadores estratégicos.

A idéia de ter sido usado inconscientemente por outro mais esperto é tão humilhante que cada um instintivamente a rejeita indignado, sem notar que a recusa de enxergar os fios que o movem o torna ainda mais facilmente manejável. O medo de ser ridicularizado como crédulo é um poderoso estimulante da ingenuidade política, e na guerra cultural a exploração desse medo se tornou um dos procedimentos retóricos mais disseminados, erguendo uma muralha de preconceitos e reflexos condicionados contra a percepção de realidades que de outro modo seriam óbvias e patentes.

Uma longa tradição de lendas urbanas em torno de “teorias da conspiração” também ajudou a sedimentar essa reação. A guerra cultural não é, evidentemente, uma “conspiração”, mas a sutileza das suas operações, raiando a invisibilidade, faz com que a impressão confusa suscitada pelo conceito em quem ouça falar dele pela primeira vez seja exatamente essa, produzindo quase infalivelmente aquele tipo de resposta que mereceria o nome de suspicácia ingênua, ou incredulidade caipira.

Outra dificuldade é que as armas usadas na guerra cultural são, por definição, uma propriedade quase monopolística da classe dos intelectuais e estudiosos, escapando não só à compreensão como aos interesses do cidadão comum, mesmo de elite, não envolvido em complexos estudos de história literária e cultural, filosofia, lingüística, semiologia, arte retórica, psicologia e até mesmo sociologia da arte. Em todo o Congresso Nacional, na direção das grandes empresas e nos comandos militares não se encontrará meia dúzia de portadores dos conhecimentos requeridos para a compreensão do conceito, quanto mais para a percepção concreta das operações de guerra cultural. Sobretudo em países do Terceiro Mundo, a formação das elites governantes é maciçamente concentrada em estudos de economia, administração, direito, ciência política e diplomacia. Para esses indivíduos, as letras e artes são, na melhor das hipóteses, um adorno elegante, um complemento lúdico às atividades “peso-pesado” da política, da vida militar e da economia. Suas incursões de fim de semana em teatros e concertos podem alimentar conversas interessantes, mas jamais lhe darão aquela visão abrangente do universo cultural sem a qual a idéia mesma de uma ação organizada e controlada sobre o conjunto da cultura de um país (ou mais ainda de vários) seria impensável. De fato, para essas pessoas, ela é impensável. A cultura lhes aparece como o florescimento autônomo e incontrolável de “tendências”, de impulsos criativos, de inspirações multitudinárias que expressam o “senso comum”, o fundo de opiniões e sentimentos compartilhados por todos, a visão espontânea e “natural” da realidade. Que, para o estrategista da guerra cultural, o “senso comum” seja um produto social como qualquer outro, sujeito a ser moldado e alterado pela ação organizada de uma elite militante; que sentimentos e reações que para o cidadão comum constituem a expressão personalíssima da sua liberdade interior sejam para o planejador social apenas cópias mecânicas de moldes coletivos que ele mesmo fabricou; que a direção de conjunto das transformações culturais não seja a expressão dos desejos espontâneos da comunidade mas o efeito calculado de planos concebidos por uma elite intelectual desconhecida da maioria da população – tudo isso lhe parece ao mesmo tempo um insulto à sua liberdade de consciência e um atentado contra a ordem do mundo tal como ele a concebe. Mas essa reação está em profundo descompasso com o tempo histórico. A característica essencial da nossa época é justamente a transformação cultural planejada, e quem não seja capaz de percebê-la estará privado da possibilidade de lhe oferecer uma reação consciente: por mais dinheiro que tenha no bolso ou por mais alto cargo que ocupe na hierarquia política, jurídica ou militar, estará reduzido à condição de “massa de manobra” no sentido mais desprezível do termo. O sonho dos iluministas do século XVIII – uma sociedade inteira à mercê dos planos da elite “esclarecida” – tornou-se realizável dois séculos depois graças a três fatores: a expansão do ensino universitário, criando uma massa de intelectuais sem funções definidas na sociedade e prontos para ser arregimentados em tarefas militantes; o progresso dos meios de comunicação, que permite atingir populações inteiras a partir de uns poucos centros emissores; e a enorme concentração de riquezas nas mãos de alguns grupos oligárquicos imbuídos de ambições messiânicas. Explicarei mais sobre isso nos próximos artigos.

Feliz Ano Novo? Que cinismo!

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de dezembro de 2005

O Brasil entra em 2006 nas seguintes condições:

(1) O governo federal está nas mãos de um partido que, subindo ao poder sobre os cadáveres das reputações de seus adversários, usou de sua fama de restaurador da moralidade como camuflagem para poder criar o mais vasto e eficaz sistema de corrupção política já observado neste país.

(2) Ao longo de sua ascensão, apoiada na hegemonia previamente conquistada pela “revolução cultural” gramsciana, esse partido desarmou completamente seus possíveis adversários ideológicos, ao ponto de nas eleições presidenciais de 2002 seu candidato não ter de concorrer senão com imitadores do seu discurso, cada um tentando provar que era o mais esquerdista dos quatro. E tão completo era o domínio exercido pela esquerda sobre a mentalidade pública, que essa disputa em família, com total exclusão de discordância ideológica por mais mínima que fosse, foi celebrada por toda a mídia cúmplice como “a mais democrática de toda a nossa História”. Neurose, dizia um grande psicólogo que conheci, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita. O Brasil continuará doente enquanto não recordar e desmascarar a farsa com que aceitou alegremente colaborar em 2002.

(3) O deslocamento do fiel da balança para a esquerda falseou todo o quadro das opções políticas, ao ponto de que hoje a hipótese mesma de um discurso de direita, na linha do Partido Republicano americano ou do Partido Conservador inglês, se tornou inviável e inconcebível no Brasil. O máximo de direitismo admitido é o do PSDB, partido pertencente à Internacional Socialista e comprometido a implantar no Brasil todas as mutações sociais e culturais defendidas pela esquerda mundial, como o abortismo, o casamento gay, o “direito alternativo” etc. Eliminada a possibilidade de divergências de fundo, sobraram apenas a disputa de cargos e o bombardeio mútuo de acusações de corrupção: a política reduziu-se a um bate-boca entre quadrilhas de ladrões. O PFL, que poderia ter representado a alternativa ideológica ao consenso socialista, abdicou de seu dever e acomodou-se à função de tropa auxiliar de uma das quadrilhas.

(4) Como nem a esquerda petista nem seus adversários tucanos conseguiram conceber nenhuma alternativa viável à política econômica “ortodoxa” do FMI, esta se mantém como orientação dominante desde o governo FHC, sem perspectiva de ser abandonada por qualquer das facções que suba ao poder. À sombra da estabilidade econômica, erigida em único bem digno de ser preservado, a máquina de subversão instalada no governo está livre para transformar o sistema judiciário em instrumento da luta de classes, o ensino público em pregação do ódio anticapitalista, as instituições de cultura em megafones do discurso comunista mais estúpido e grosseiro que o mundo já ouviu. Ninguém liga. A lepra socialista pode se alastrar por todo o corpo da sociedade, dominar as consciências, perverter todas as relações humanas. Enquanto não mexer diretamente nas contas bancárias dos senhores barões, estes continuarão achando tudo lindo. A classe chamada dominante já não domina nada há muito tempo, está cercada e acuada, reduzida a viver de favores mendigados à elite comunista, mas como ainda tem dinheiro para gastar em Londres e Nova York, mantém a pose. E se tentamos lhe explicar o perigo que corre, responde com a clássica reação do covarde orgulhoso: estrangula o mensageiro das más notícias.

(5) A criminalidade triunfante já ultrapassou de há muito os limites dentro dos quais podia ainda se considerar um problema corrigível. Tornou-se um fato consumado, uma constante da natureza, um modo de ser, uma instituição. Segundo dados oficiais da ONU, são 50 mil homicídios por ano. Segundo pesquisas locais do jornalista espanhol Luís Mir, 150 mil. A polícia, intimidada pela superioridade bélica dos narcotraficantes e sobretudo pelo temor que lhe inspira o olhar malicioso da classe jornalística, se ocupa apenas de sobreviver e mostrar-se o mais inofensiva possível. Enquanto isso, o governo continua de namoro com as FARC e a intelectualidade esquerdista clama pela libertação de qualquer agente da narcoguerrilha colombiana que por acaso vá parar na cadeia, onde aliás é poupado de qualquer pergunta comprometedora.

(6) As Forças Armadas, enfraquecidas por sucessivos cortes de verbas, humilhadas e aviltadas por mentiras escabrosas alardeadas na mídia, começam a reagir como vítimas da síndrome de Estocolmo: distribuem condecorações a seus acusadores e buscam lisonjeá-los mediante efusões de anti-americanismo pseudopatriótico (o brigadeiro Ferola e a ESG em geral são ótimos nisso), na esperança de desviar contra um inimigo comum a hostilidade do establishment esquerdista ante o qual generais de inumeráveis estrelas tremem como dozelas assustadas.

(7) Os tribunais são dominados por juízes semi-analfabetos que abertamente desprezam a lei em nome de suas convicções políticas improvisadas, achando que a mais alta missão da Justiça é punir os capitalistas como exploradores do proletariado e libertar os assassinos e narcotraficantes como vítimas da sociedade malvada.

(8) Curiosamente, a maioria da população permanece apegada aos ideais proibidos: moral judaico-cristã, propriedade privada, direito de portar armas etc. Mas já não há ninguém que fale em nome dessa maioria. Mesmo os que compartilham das crenças populares não ousam defendê-las abertamente. O imenso espaço que a decadência de tudo o mais abre para o ingresso de um autêntico partido conservador no cenário nacional não tem quem o preencha. Conservadorismo significa fidelidade, constância, firmeza. Não é coisa para homens de geléia.

(9) Culturalmente, o Brasil está morto e enterrado. Já não tem nada em comum com aquele país dos anos 30-60, que se espelhava numa geração de escritores, pensadores e artistas capazes de ombrear-se aos de qualquer nação do mundo. Na época, “cultura” significava Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Annibal M. Machado, José Guilherme Merquior, Nelson Rodrigues, Heitor Villa-Lobos, Herberto Sales, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva, Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux, Gustavo Corção. Álvaro Lins, Augusto Meyer. Hoje cultura é o sr. Gilberto Gil, um pseudo-intelectual de miolo mole segundo ele próprio admite, não sem certo orgulho. Os discípulos da grande geração – Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro – esgotam-se na indecisão entre a fidelidade à consciência literária, que requer a sinceridade das “impressões autênticas”, como as chamava Saul Bellow, e o desejo de agradar os amigos bem situados na vida. Escritores e poetas autênticos – Alberto da Cunha Melo, César Leal, Ângelo Monteiro — vegetam na província, mais ignorados nos grandes centros do que o seriam nos tempos da Colônia. E o gênio fulgurante de Bruno Tolentino, sumido dos debates públicos, desprezado por suplementeiros literários que não seriam dignos de lhe amarrar os sapatos, vai se conformando com um papel obscuro, esquecido da missão de educador literário do Brasil, que um dia lhe coube por natureza e direito.

(10) Espiritualmente, a alma nacional oscila entre o oportunismo sociopático transformado em Ersatz do senso prático e o ódio político transfigurado em sucedâneo da moralidade. Ensinado nas escolas a papaguear slogans politicamente corretos, obrigado por lei a considerar que o canibalismo, os sacrifícios humanos ou rituais para tornar os inimigos sexualmente impotentes são expressões religiosas tão respeitáveis quanto a fidelidade judaica e a piedade cristã, o povo ainda não abdicou de seus velhos sentimentos morais, mas só os vive na esfera dos sonhos, incapaz de lhes dar a menor expressão concreta na vida real. O Papa João Paulo II acertou na mosca quando disse que “os brasileiros são cristãos na emoção, mas não na fé”. Quando querem expressar sua emoção religiosa em atos e palavras, a única linguagem que lhes resta é a da teologia da libertação ou a daquela velha mistura, tipicamente brasileira, de mística positivista-evolucionista, ocultismo vulgar e pseudomessianismo nacionalisteiro.

O mais impressionante de tudo é que a chamada elite, diante dessa destruição completa das bases civilizacionais do país, se recusa a tomar consciência da gravidade da situação e se apega desesperadamente à ilusão de que tudo se resolverá por si, sem nenhuma ação da parte dela.

O cinismo brutal de um lado, a irresponsabilidade covarde de outro – eis os dois pilares da sociedade brasileira do futuro, na qual só mesmo os cínicos e os irresponsáveis podem esperar sentir-se bem.

Votos de Ano Novo? Ora, façam-me um favor! Quem pode fazer votos de que tudo o que está acontecendo pare de acontecer, de que tudo o que não acontece, mas deveria, comece a acontecer? O Brasil não precisa de um milagre. Precisa da mais extraordinária conjunção de milagres que se poderia imaginar. E milagres, mesmo individualmente, jamais acontecem quando os possíveis interessados estão pedindo exatamente o contrário.

Tarados

Um sintoma miúdo, mas revelador, pode ilustrar o estado presente da alma nacional, tal como descrito acima.

Há um grupo de tarados na comunidade Orkut, da internet , que já escreveram mais de trinta mil páginas contra mim e, para cúmulo, esperam que eu leia tudo — como se eu me achasse tão interessante quanto eles me imaginam. Não criticam propriamente minhas opiniões, pois não chegam a apreendê-las com clareza bastante para isso. Fixam-se em detalhes que, por motivos ignorados, os irritam e desconcertam, entre os quais o meu penteado, não sei se demasiado provocante ou inócuo, a minha idade, que consideram um vício moral revoltante, e o fato insólito de eu ter filhas bonitas sem preencher as condições ideológicas requeridas para isso. Descritos com abundância de minúcias, meus defeitos ali apontados abrangem aparentemente toda a gama das possibilidades humanas, pois apareço ao mesmo tempo como gay e homofóbico, anti-semita e fanático sionista, moralista auto-reprimido e putanheiro assanhado etc. etc. Tendo-me colocado assim no centro da coincidentia oppositorum , os redatores do site chegaram a um ponto em que já nada podiam dizer contra mim que não fosse desmentido por alguma acusação anterior. A solução encontrada para essa dificuldade foi inventar-me de novo, moldando a minha figura segundo os requisitos apropriados para uma esculhambação em regra, sem contradições ou ambigüidades. Criaram então uma página especial do Orkut, usando o meu nome e fotografia e fazendo-se passar por mim. Preencheram a página com uma confissão de nazismo e espalharam convites para que os trouxas a freqüentassem, constatando com seus próprios olhos e até cérebros, caso os tivessem, a minha militância nazista em ação. Ficou assim provado ser eu um completo F. D. P., quod erat demonstrandum . Com base em evidências tão sólidas, tornou-se mesmo imperativo reeditar ali uns velhos e já quases esquecidos apelos à supressão física da minha execrável pessoa, acompanhados de indicações, infelizmente um tanto desatualizadas, dos lugares onde os interessados na minha execução sumária podem mais facilmente me encontrar e me pegar de jeito.

Há mais de mil pessoas envolvidas nesse empreendimento, a maioria delas portadora de diplomas universitários e pertencente, destarte, à parcela mais esclarecida da população, pela qual não se chega sequer a formar uma vaga idéia do que poderiam ser as menos esclarecidas.

Nenhuma dá sinal de perceber algo de criminoso nas ações do grupo, e suspeito que muitas, ou quase todas, se informadas de que estão sujeitas às leis brasileiras como quaisquer outras criaturas residentes no país, se mostrariam sinceramente indignadas ante essa pretensão intolerável.

Bem ao contrário, todas se acreditam movidas pelos mais altos sentimentos humanos, pairando angelicamente acima de mesquinharias penais que só um grosseirão inconveniente como eu seria capaz de querer introduzir numa conversação tão sublime.

Somente umas duas ou três vezes examinei o material ali publicado, comentando-o da maneira que me pareceu esteticamente mais adequada ao ambiente, isto é, mediante qualquer gozação sarcástica e cabeluda que me ocorresse no momento.

Eu queria só que vocês vissem a expressão de susto e revolta com que aquelas almas delicadas reagiram às minhas vulgaridades! Nunca vi tanta dignidade ofendida, tanta santidade aviltada, tantas lágrimas de autopiedade coletiva, tantas efusões de consolação mútua, carinho reparador e juras de vingança acompanhadas de menções pejorativas aos membros da minha família. Uma coisa comovente mesmo.

Se eu quisesse inventar essa situação, não conseguiria. Não sou nenhum Franz Kafka, nenhum Karl Kraus, nenhum Eugène Ionesco para conceber personagens como esses. Só a realidade brasileira do momento, moldada por quatro décadas de “revolução cultural”, pode criá-los. E até a capacidade de descrevê-los me falta, como faltaria talvez até àqueles três autores, cuja imaginação do absurdo tinha limites.

Veja todos os arquivos por ano