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Traição anunciada

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 8 de maio de 2006

Pela primeira vez na História humana, animal, vegetal ou mineral, um presidente, vendo as propriedades nacionais no exterior invadidas e confiscadas manu militari pelo governo local, se abstém por completo de defender os interesses e a honra da nação e, bem ao contrário, sai elogiando os autores da brutalidade. E o detalhe mais extravagante no caso é que o homem tenta dar a impressão de que, ao fazer isso, age como um cristão exemplar, voltando humildemente a outra face em vez de revidar o insulto. Seria assim, de fato, se não houvesse alguma diferença entre oferecer a própria face e a face dos outros – a face de um povo inteiro. A resposta do sr. Luís Ignácio Lula da Silva à agressão boliviana não é nenhuma efusão de bons sentimentos. É o ato de entreguismo mais explícito, mais descarado, mais cínico e mais subserviente que já se viu neste país ou em qualquer outro.

Se causas faltassem para um impeachment, só essa conduta, isolada, já bastaria para justificá-lo com sobra de fundamento e razão. Nunca a traição foi tão clara, nunca tão patente a redução do patrimônio comum dos brasileiros a instrumento dócil de objetivos transnacionais sobre os quais os eleitores não foram consultados, aliás nem informados.

Não seria certo, porém, dizer que foi acontecimento desprovido de conseqüências pedagógicas úteis. Numa só alocução, com breves palavras, o sr. presidente rasgou de uma vez a fachada de “nacionalismo” com que a esquerda brasileira vinha enganando aqueles que não conhecem a sua história ou que não conseguem lembrá-la no momento apropriado. Espero que agora pelo menos alguns dos militares com que andei discutindo aqui semanas atrás, tão propensos a acreditar nas afeições patrióticas de quem quer que as proclame do alto de um palanque, entendam onde foi que se meteram ao buscar uma aproximação com a esquerda com base na confusão entre patriotismo e anti-americanismo.

Também seria injusto dizer, no entanto, que foi ato inesperado, de improviso, surgido do nada.

Num texto publicado em 2003, bem lembrado pelo articulista Cristiano Romero no jornal Valor, o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, expunha o que tem sido a diretriz básica da política externa do governo Lula. Diz Romero:

“‘Generosidade’ nas relações com os vizinhos sul-americanos é um conceito caro a Samuel Pinheiro Guimarães. Num texto intitulado ‘O Gato e a Onça: ameaças e estratégia’, ele defende, como ‘objetivo fundamental’ da política externa, a construção do que chama de espaço econômico e político sul-americano. Diz que o Brasil deve fazer isso sem qualquer pretensão hegemônica e com base na generosidade ‘decorrente das extraordinárias assimetrias entre o Brasil e cada um de seus vizinhos’. ‘É necessário praticar o princípio do tratamento especial e diferenciado quase que na proporção das assimetrias reais’.

Isso já era, antecipadamente, o nosso presidente defendendo o direito que “um povo sofrido” tem de romper contratos e assaltar seus parceiros de negócios.

Vendo a teoria de Guimarães ser levada à prática de maneira tão literal, o embaixador Rubens Barbosa, lembrando uma frase do ex-secretário de Estado americano John Foster Dulles, declarou que “essa é uma visão ingênua, porque países não têm amigos; têm interesses”. Mas o que é ingenuidade à luz dos interesses nacionais manifestos pode ser esperteza desde o ponto de vista de interesses supranacionais ocultos. Quem leu o meu artigo no Diário do Comércio de 26 de setembro de 2005 (http://www.olavodecarvalho.org/semana/050926dc.htm) já sabia, desde então, que o sr. presidente, eleito em nome da “transparência”, tomava decisões de governo em reuniões secretas com ditadores e criminosos estrangeiros, longe dos olhos do povo, do parlamento, da mídia e da justiça. Ele próprio, de porre ou sóbrio, tinha confessado isso no seu discurso de 2 de julho de 2005, pronunciado na celebração dos quinze anos de existência do Foro de São Paulo. Nesse documento fundamental, cujo significado a grande mídia nacional em peso fez questão de amortecer ou omitir completamente, Lula admitia que o Foro de São Paulo, fundado por ele e Fidel Castro, era uma entidade secreta ou pelo menos camuflada (“construída… para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que as pessoas entendessem qualquer interferência política“), criada para imiscuir-se ativamente na política interna de várias nações latino-americanas, tomando decisões e determinando o rumo dos acontecimentos, à margem de toda fiscalização de governos, parlamentos, justiça e opinião pública. Ele admitia também haver decidido pontos fundamentais da política externa brasileira não enquanto presidente da República em reunião com seu ministério, mas enquanto participante e orientador de reuniões clandestinas com agentes políticos estrangeiros (“foi uma ação política de companheiros,  não uma ação política de um Estado com outro Estado, ou de um presidente com outro presidente“). Não seria possível uma confissão mais explícita de que, para esse homem, os interesses nacionais que nominalmente ele estava incumbido de representar deviam submeter-se a considerações mais altas, isto é, à estratégia de dominação continental comunista delineada pelo Foro de São Paulo. O compromisso dele não era para com seus eleitores brasileiros: era para com seus “companheiros” da Venezuela e de Cuba.

Meses depois, em 12 de dezembro de 2005, mais explicitamente ainda, oPlano de Trabalho da Secretaria de Relações Internacionais do PT informava a “linha justa” a ser seguida pelo Partido:  “Aprofundar a prática internacionalista do Partido, nos vários sentidos desta palavra: a solidariedade, as relações com organizações comprometidas com o socialismo e com outra ordem internacional, a mobilização interna e externa em torno de temas de nosso interesse, a ação parlamentar e de governos no plano internacional.” Para que não pairassem dúvidas quanto ao tipo de ligações aí aludidas, o documento esclarecia: “Este é o motivo principal pelo qual o PT seguirá investindo suas energias na existência e consolidação do Foro de São Paulo, organização criada em 1990.”

Sabendo-se que desde os tempos da sua campanha eleitoral o próprio sr. Evo Imorales anunciava seu propósito de estatizar todos os campos de petróleo da Bolívia, as fontes nacionais já forneciam material mais que suficiente para que, delas, qualquer pessoa medianamente acordada concluísse qual seria a reação do nosso governo quando o presidente boliviano transformasse suas palavras em ações: afagar-lhe o ego paternalmente, como há décadas o partido dominante vem fazendo com todos os delinqüentes e transgressores, desculpando-os como vítimas da “desigualdade” e da “exclusão social”. O princípio que se aplica aos indivíduos serve, com muito mais razão, a povos inteiros: a “generosidade” do sr. Samuel Pinheiro Guimarães não é senão a “política de direitos humanos” do governo, transposta à escala internacional. A evolução da caridade petista, nesse sentido, é notavelmente coerente: começou defendendo o direito de os trombadinhas da praça da Sé meterem as mãos nos bolsos dos transeuntes, depois foi gradativamente ensinando à nação estupefata que os invasores de terras eram vítimas em vez de agressores, que os únicos grupos criminosos merecedores de punição eram os policiais, os empresários e os políticos ditos conservadores, que o Estado deve indenizar os seqüestradores em vez dos seqüestrados, que os traficantes de cocaína são heróis da liberdade e que o combate ao narcotráfico é terrorismo de Estado. Que mais faltava, senão oferecer as garantias da alta moralidade ao assalto entre nações?

Deixemo-nos, portanto, de nhem-nhem-nhem, como diria FHC. Ninguém foi surpreendido pelo imprevisível. Todo mundo sabia o que ia acontecer e como o sr. Lula ia reagir. O único aspecto surpreendente no episódio foi a falta completa do elemento surpresa.

Mas, se foi assim, por que ninguém alertou para o perigo nem fez algo para evitá-lo? E, uma vez consumado o delito, por que tantos ainda hesitam em condená-lo como tal, por que se sentem ainda entorpecidos por dúvidas insanáveis, por que relutam em admitir a evidência da escalada criminosa, protelando por meio de tergiversações sem fim a conclusão de um silogismo incontornável?

A resposta é simples: para apreender o sentido de uma sucessão de acontecimentos, não basta conhecer os fatos. É preciso ter os conceitos, os termos gerais capazes de iluminar o desenho exato dos detalhes e permitir unificá-los num quadro coerente. No caso, o termo geral era “estratégia revolucionária continental”, ou, mais sinteticamente, “Foro de São Paulo”. Só vista nessa perspectiva a multidão dos detalhes soltos adquiria uma forma, uma direção, um sentido. Ora, esse elemento articulador foi sistematicamente suprimido dos debates nacionais ao longo de dezesseis anos por um decreto unânime dos donos da opinião pública. Quem quer que ousasse falar disso, nos jornais, na TV ou no Parlamento, tornava-se primeiro alvo de chacota, depois era rotulado de louco, depois abertamente difamado, depois boicotado profissionalmente, por fim calado por meio da intimidação direta, como o sr. Lula fez no ar com o âncora da TV Record, Boris Casoy, ou da demissão pura e simples, como veio a acontecer comigo e com o próprio Boris.

Nunca, na história universal da manipulação de notícias, se viu um esforço tão vasto, tão geral, tão uniforme de ocultar o essencial, de desviar as atenções, de paralisar a inteligência da vítima para que não sentisse de onde vinha o ataque.

Todos os chefes de redação e donos de empresas jornalísticas deste país, com raríssimas e louváveis exceções que no conjunto acabaram não fazendo diferença prática, acumpliciaram-se ativamente, persistentemente ao projeto petista de anestesiar e estupidificar a opinião pública, preparando-a para aceitar com apatetada e ignóbil passividade o confisco progressivo dos seus direitos, da sua liberdade e do seu patrimônio.  

Sem o silêncio cúmplice da mídia, jamais o projeto continental de poder, urdido por Fidel Castro, Hugo Chávez e Luís Ignácio Lula da Silva em reuniões que não precisavam nem mesmo ser secretas, já que ninguém queria divulgá-las, poderia ter chegado ao ponto em que chegou.

Agora, é tarde para revertê-lo. Imaginar que resistências pontuais, que protestos avulsos contra abusos isolados possam deter a marcha do monstro ou aplacar sua voracidade é apegar-se a uma ilusão pateticamente impotente. Uma estratégia abrangente só pode ser combatida por outra estratégia abrangente, e a idéia mesma de conceber uma é coisa que ainda nem passa pela cabeça da maioria dos liberais e conservadores, persistentemente ocupados, depois de tudo o que aconteceu, em ater-se a elegantes declarações doutrinais genéricas e em evitar cuidadosamente o rótulo de “anticomunistas”.

Durante uma década e meia tentei fazer com que essa gente acordasse. Agora começo a achar que despertá-la seria uma crueldade, tão feio é o panorama que se abriria ante seus olhos quando isso acontecesse. O melhor mesmo é deixar que durma. O que a aguarda, em qualquer das hipóteses, é o sono eterno. Seu fim está decretado e é quase tão irreversível quanto o giro da Terra em torno do Sol. Uns vinte anos atrás, Roberto Campos perguntado sobre qual seria o destino do Brasil no caso de Lula ser eleito presidente, disse que haveria duas saídas: Galeão e Cumbica. Não sei se a vida imita a arte. Mas no Brasil ela imita cada vez mais o humorismo. Já começo a me abster de ouvir piadas, por medo de que se tornem realidade. Não me acusem, porém, de derrotismo, de matar as esperanças dos brasileiros. Ao contrário: o que tem matado os brasileiros é a esperança. Recusar-se a admitir uma situação desesperadora é recusar-se às ações desesperadas que poderiam, contra toda a esperança, reverter o quadro da tragédia. O Brasil não precisa de esperança. Precisa é de coragem inflexível e lucidez heróica. Não me chamem de derrotista por recusar-me a afagar cabeças moralmente covardes e intelectualmente indolentes.

Vejo-me no dever de dizer essas coisas principalmente porque se aproxima a data do Seminário “Democracia, Liberdade e o Império das Leis”, que a Associação Comercial de São Paulo vai promover no Hotel Cesar Business nos dias 15 e 16 de maio, e porque tenho a certeza de que ali, pela primeira vez, intelectuais liberais e conservadores vão olhar de frente a questão da estratégia comunista continental em vez de refugiar-se nas teorizações usuais, tão corretas no conteúdo geral quanto deslocadas da situação política especial.

O Seminário é uma antiga idéia minha que tive a sorte de soprar nos ouvidos certos e, sem grande ajuda da minha parte, frutificou graças à tenacidade do líder empresarial Guilherme Afif Domingos, do psiquiatra Heitor de Paola e dos combativos redatores do jornal eletrônico Mídia Sem Máscara (Paulo Diniz Zamboni, Edward Wolff, Graça Salgueiro e tantos outros), bem como da colaboração da Atlas Foundation for Economic Studies.

Voltarei a escrever sobre o assunto durante a semana, mas desde já asseguro que, pelo menos entre os participantes brasileiros do evento, todos estão muito conscientes da urgência desesperadora de uma rejeição firme e inflexível do comunismo continental, quaisquer que sejam as diferentes versões com que ele se apresente, todas forjadas e articuladas no Foro de São Paulo.

E não digo isso para criar esperanças, mas para lembrar que o dever está acima da diferença entre esperança e desesperança. Com enorme satisfação vejo que ainda há brasileiros capazes de cumprir o dever.

Os inventores do mundo futuro

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 1o de maio de 2006

Para aqueles que estão acostumados a desprezar como “teoria da conspiração” a hipótese de que o Council of Foreign Relations trama com o Grupo Bilderberg e outros círculos de milionários a implantação progressiva mas rápida de um governo mundial, o próprio CFR acaba de dar uma resposta definitiva, num documento oficial em que assume de vez o projeto e a parceria tão longamente descartados pelos onissapientes comentaristas da mídia. No relatório “Building a North American Community”, recentemente divulgado, o mais poderoso think tank globalista dos EUA propõe nada menos que a abolição das fronteiras entre Canadá, México e EUA e a transformação do continente numa “área onde o comércio, o capital e as pessoas circulem livremente”, a base para “o ingresso mais fácil no território americano”.

Num momento em que a população americana em peso clama por um controle mais rigoroso das fronteiras e os especialistas militares alertam para os perigos incalculáveis do fluxo contínuo de terroristas e narcotraficantes camuflados de imigrantes ilegais chicanos, a declaração mostra o total desprezo da elite globalista bilionária pela segurança nacional. Não resta a menor dúvida de que o CFR planeja sacrificar friamente a nação americana no altar da unificação administrativa do mundo, a ser atingida, segundo a idéia do velho Morgenthau, por meio de progressivas integrações regionais.

Porém o mais surpreendente no relatório é a admissão de que a fusão dos três países deve ser feita “segundo as linhas propostas pelas conferências de Bilderberg e Wehrkunde, organizadas para fomentar as relações transatlânticas”.

Até agora, esses nomes jamais tinham aparecido num documento oficial do CFR. Bilderberg e Wehrkunde são grupos altamente secretos de potentados da política e da economia que se reúnem periodicamente, sob precauções de segurança maiores que as de qualquer encontro de chefes de Estado, para planejar a implantação de um governo mundial e inaugurar uma nova civilização planetária, incluindo, segundo seus críticos, a fusão de todas as religiões num novo culto biônico inspirado no lixo teosófico de Madame Blavatsky e Alice Bailey. Na última reunião dos Bildergergers, em Sintra, Portugal, a cidade inteira foi bloqueada à entrada de repórteres, enquanto, fechados a sete chaves, longe de toda fiscalização crítica, tipos como os Rockefellers, Gorbachov, George Soros e, modéstia à parte, o nosso Fernando Henrique Cardoso, inventavam o mundo em que vão viver nossos netos.

Ao proclamar sua adesão aos objetivos das conferências Bilderberg e Wehrkunde, o CFR confirma ao menos uma parte do que foi denunciado em alguns clássicos da “teoria da conspiração”, como None Dare Call It Conspiracy, de Gary Allen e Larry Abraham (Sealbeach, California, Concord Press, 1972), e sobretudo o mais recente e informado The Brotherhood of Darkness, de Stanley Montieth (Oklahoma City, Hearthstone Publishing, 2000).

Essa confissão basta para explicar por que, arriscando atrair o ódio da base conservadora que o elegeu, o presidente George W. Bush, pertencente a uma família tradicionalmente ligada ao CFR, insiste em dar seu apoio ao projeto de anistia para doze milhões de imigrantes ilegais, elevando ao nível de uma ameaça apocalíptica os riscos de segurança que, por outro lado, ele anuncia querer controlar com mão de ferro. O projeto não só conta com a rejeição maciça do eleitorado americano, mas foi apresentado por dois políticos que Bush teria razões de sobra para considerar seus inimigos: Ted Kennedy, o mais devotado patrono de todas as causas esquerdistas, e John McCain, um republicano que mesmo examinado em microscópio não se distingue facilmente de um democrata.

Os interesses maiores do globalismo, evidentemente, transcendem as considerações eleitorais, o respeito pela vontade popular e a profunda inimizade política. Segundo o documento do CFR, George W. Bush, o presidente mexicano Vicente Fox e o primeiro-ministro canadense Paul Martin já se declararam “comprometidos” com a causa ali anunciada, quando do seu encontro no Texas em 23 de março de 2005.

No entanto, seria ingenuidade imaginar que o apoio da elite globalista ao estupro das fronteiras se limita a declarações de intenções. Ele inclui o planejamento e a sustentação financeira de ações políticas decisivas.

O relatório “Building a North American Community” foi publicado sob o patrocínio de um grupo de grandes empresas, entre as quais a Archer Daniels Midland Corp., ADM, o maior suporte financeiro do senador Sam Brownback. Logo após receber uma bolada de dinheiro da ADM, esse republicano do Kansas saiu alardeando apoio ao programa de anistia para os ilegais, anunciando que o fazia por piedade cristã.

A luta dos globalistas pela causa mais impopular que já se apresentou na arena política dos EUA também não se contenta com subsidiar manobras parlamentares. Inclui a arregimentação das massas e a ajuda a protestos violentamente antiamericanos. O Boletim G-2, publicado pelo assombroso repórter Joseph Farah como apêndice de seu jornal eletrônico WorldNetDaily, revela na sua última edição os principais suportes financeiros por trás dos movimentos que, para muito além da anistia aos ilegais, visam a entregar ao México os territórios do Texas e da Califórnia. Os mais poderosos entre esses movimentos são “La Raza”, “Lulac” (League of United Latin American Citizens) “Maldef” (Mexican American Legal Defense and Educational Fund) e “Mecha” (Movimiento Estudiantil Chicano de Aztlan). Os quatro são financiados por fundações e corporações milionárias associadas ao CFR, como Rockefeller e Ford, Bristol-Meyers Squibb, Chemical Bank, Chevron, Chrysler, General Motors, General Electric, Lockheed, Rockwell, Southwestern Bell, Quaker Oats, Verizon Foundation, AT&T Foundation e o Open Society Institute de George Soros. “ La Raza” foi praticamente criada pela Fundação Ford.

Esses quatro movimentos organizaram os recentes protestos que hastearam bandeiras mexicanas pelas ruas dos EUA e anunciaram, nas palavras de Mario Obeldo, líder histórico da Mecha, condecorado em 1998 por Bill Clinton, que “a Califórnia vai ser um Estado hispânico: quem não gostar vai ter de sair”.

A alta elite financeira e a militância vociferante, que os iluminados comentaristas da nossa mídia apresentam como os dois pólos de um conflito de vida e morte causado pela “desigualdade” e pela “injustiça social”, são exatamente uma só e mesma força. E o que move o conjunto não é nenhuma das “causas sociais” impessoais e anônimas que a pseudociência ensina serem os motores da história humana: é o planejamento vindo de cima, acompanhado dos meios financeiros, publicitários e políticos de realizá-lo.

Espero que o leitor mais desperto compreenda, à primeira vista, o quanto esses fatos tornam inviável e suicida o empenho de continuar pensando o mundo segundo as linhas usuais propostas pela tagarelice intelectual dominante. A identificação de globalismo e americanismo, por exemplo, que a totalidade das nossas classes falantes dá por pressuposta como elemento básico para a compreensão da política internacional, é uma besteira sem mais tamanho, e quem quer que insista nela depois do documento do CFR deve ser considerado um desinformante profissional ou um idiota incurável.

O aspecto mais deplorável em tudo isso não é somente que a humanidade seja arrastada por elites ferozmente ambiciosas em direção a objetivos que não lhe são sequer informados. É que as próprias ciências sociais, intoxicadas de conceitos explicativos que não explicam nada, estejam tão desarmadas para dar conta dos fatos de magnitude incomparável que estão, neste momento, determinando os destinos do mundo. Quando os agentes maiores do processo histórico têm planos que vão além da compreensão da intelectualidade média – para não falar da opinião pública em geral –, é inevitável que esses planos sejam postos em prática sem qualquer possibilidade de discussão crítica. Da noite para o dia, a humanidade atônita despertará num mundo novo, sem saber como foi parar ali nem quais são precisamente as regras do jogo. A ignorância geral terá se tornado um dos pilares do poder constituído. E o grupo dominante estará separado do povo por uma distância similar à que existe entre os deuses do Olimpo e uma multidão de cupins no subsolo.

Meus alunos são testemunhas do esforço que tenho feito para substituir noções pré-históricas de sociologia e ciência política por ferramentas descritivas mais adequadas à presente situação do mundo. Esforços similares vêm-se desenvolvendo em vários centros, mas sempre à margem da corrente acadêmica principal, congelada num verbalismo obsoleto e presunçoso que, se serve de alguma coisa, é de instrumento publicitário para a implantação de políticas que os próprios porta-vozes desse discurso não enxergam nem compreendem.

Não é preciso dizer que, baixando do plano internacional ao nacional, nada dos acontecimentos políticos locais pode ser explicado sem referência ao novo esquema de poder que está se formando no planeta. O apoio descarado das fundações globais bilionárias a movimentos revolucionários como o MST é o fato fundamental que vai determinar o destino nacional nos próximos anos, e os poucos que costumam mencioná-lo, como o sr. Lyndon LaRouche, só o fazem pelo viés de seus próprios planos, que não têm nada a ver com um desejo sincero de compreensão do processo.

Se a esquerda continua obscurecendo suas próprias ações com o discurso padronizado que camufla as verdadeiras relações de poder, nos círculos liberais e conservadores a discussão atém-se obsessivamente a proclamações doutrinais gerais que não ajudam em nada a esclarecer o que está se passando.

Para mim já se tornou evidente, por exemplo, que o sucesso no plano do Foro de São Paulo, a implantação da URSAL, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, não somente não se opõe em nada aos objetivos do globalismo, mas contribui decisivamente para eles, fomentando uma integração regional que provocaria orgasmos em Hans Morgenthau e que, a longo prazo, só tornaria a América Latina ainda mais dependente dos bancos internacionais.

E não me venham com a ilusão risível de que o petróleo venezuelano é uma temível arma antiimperialista. Ninguém no CFR ou nos círculos governamentais americanos ignora que o Estado do Colorado tem reservas de petróleo jamais exploradas, equivalentes a vinte vezes o total das reservas da Arábia Saudita. No Brasil ninguém sabe disso, porque não saiu naquela porcaria do New York Times. Mas o pessoal que em Washington lê revistas especializadas sabe que, se existe um país imune a chantagens petrolíficas (e, de quebra totalmente desnecessitado do petróleo do Iraque, para não falar da Venezuela), são os EUA.

Isso não quer dizer, é claro, que os planejadores globalistas sejam mentes geniais capazes de acertar em tudo. O Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (North American Free Trade Agreement, Nafta), concebido pelo próprio CFR como um prefácio à integração total de EUA, Canadá e México, foi um fracasso sublime, e nem por isso os planejadores globalistas se deram por achados. Desde o Nafta, segundo dados da ONU, o número de lares mexicanos abaixo da linha de pobreza (menos de 60 dólares por mês) subiu de 60 para 76 por cento, enquanto o preço das tortillas, alimento básico da população, aumentou em 40 por cento. Os contribuintes americanos também não ganharam nada com isso, tendo hoje em dia de arcar com subsídios de 40 por cento para sua produção nacional de milho. E daí? Quando um sujeito acredita que tem na cabeça a solução para os males do mundo, nada detém sua volúpia de remexer os pilares do cosmos em nome de sua esplêndida utopia. Miséria e prejuízo são detalhes desprezíveis ante a grandiosidade épica dos planos globalistas.

***

Um artigo do sr. Arnaldo Jabor publicado no Caderno 2 do Estadão do dia 25 está, segundo me informam, obtendo grande repercussão em São Paulo. Nele o comentarista do Jornal Nacional queixa-se de que a superabundância de provas e documentos da criminalidade petista não é suficiente para tirar o judiciário da sua renitente indiferença. Todos “riem da verdade, viram-lhe as costas, passam-lhe a mão na bunda”. Tão profundo é o contraste entre os fatos conhecidos e o cinismo da sua negação oficial, que isso, diz o cronista, está resultando até numa “desmoralização do pensamento”: “A existência desses tipos de mentirosos está dissolvendo a nossa mídia. Esse neo-cinismo está a desmoralizar as palavras, os raciocínios. A língua portuguesa, os textos nos jornais, nos blogs, na TV, rádio, tudo fica ridículo diante da ditadura do lulo-petismo … as palavras estão sendo esvaziadas de sentido … o Lula reeleito será a prova de que os delitos compensaram. A mentira será verdade e a novilíngua estará consagrada.”

Lembro-me claramente de ter escrito tudo isso, quase nos mesmos termos, numa época em que o sr. Jabor estava ocupadíssimo embelezando a imagem de São Lulinha e ajudando a preparar o advento do estado de coisas que agora ele mesmo deplora.

A dissolução do idioma, por exemplo, não é um efeito da ditadura petista, mas uma condição prévia, criada propositadamente por uma vasta ação cultural sem a qual ela jamais teria vindo poder a implantar-se. Uma coisa é diagnosticar o processo desde os indícios sociais que denotam o seu curso em formação, outra completamente diferente é constatar o fato consumado que, se discutido abertamente em tempo, teria podido ser evitado. Na época em que escrevi textos como “Língua petista” (Zero Hora, 20 de outubro de 2002),  “Língua dupla e estratégia”, O Globo, 2 fev. 2002), “Reclamação inútil” (Zero Hora, 14 de dezembro de 2003) ou “A clareza do processo” (Zero Hora, 15 de junho de 2003), para não falar do meu livro de 1993 (sim, 1993), “A Nova Era e a Revolução Cultural” ,  a irresponsabilidade geral das classes falantes, incluindo o sr. Jabor, me respondeu com a mesma indiferença cínica que agora elas se queixam de encontrar no judiciário.

Se o sr. Jabor quisesse mesmo saber como chegamos ao descalabro que hoje o escandaliza, bastaria que prestasse atenção aos programas da mesma TV onde trabalha, que ao longo dos anos prepararam a Nação para cair na fraude da superioridade moral da esquerda e para embriagar-se no mito da pureza lulista. A Rede Globo de Televisão foi a grande responsável pela implantação da novilíngua no país. E, se hoje o sr. João Roberto Marinho dá um discreto apoio a organizações conservadoras, seu jornal e sua TV continuam a serviço do mais descarado esquerdismo. Compreendo que o sr. Jabor não possa denunciar seus próprios patrões. Eu mesmo não podia fazê-lo quando escrevia para O Globo, limitando-me então a diagnósticos gerais na esperança de que o leitor, com base nas descrições suficientemente claras que eu lhe fornecia, desse nome aos bois. Mas o sr. Jabor, ao denunciar com atraso aquilo que um seu colega sacrificou o emprego (aliás dois) para denunciar em tempo, poderia, sem citar o antecessor, o que seria mesmo demasiado doloroso para sua vaidade, ao menos reconhecer genericamente que está chegando tarde, que está falando na condição de cúmplice moral arrependido e não na de vítima inocente escandalizada. Lembro-me de que tanto falei das coisas que agora ele proclama, que, na época (quer dizer, no tempo e na revista “Época”), cheguei a ser acusado de obsessivo e redundante.

A capacidade do sr. Jabor como diagnosticador de males nacionais consiste apenas no seu timing oportunista de só dizer as coisas quando todo mundo já sabe delas e posar, então, de profeta do acontecido. O sr. Jabor não é solução: é parte do problema. A frouxidão cômoda da sua consciência moral, no entanto, não é característica individual dele (se fosse, eu nem tocaria no assunto nesta coluna, que não tem nada a ver com a vida pessoal de quem quer que seja): é um vício geral da classe jornalística, empenhada em exigir dos políticos uma correção ética superior à que ela própria é capaz de manter.

Detalhe esclarecedor

Eu mal tinha enviado este artigo ao Diário do Comércio, quando chegou um despacho da Associated Press com a informação de que o parlamento mexicano acabava de aprovar a liberação do porte e uso de cocaína, maconha, heroína, LSD, anfetaminas, ecstasy e até 2,2 libras (sim, quase um quilo!) de peiote, o cacto alucinógeno que a empulhação literária de Carlos Castañeda celebrizou nos anos 70 como uma fonte de conhecimentos espirituais, porca miséria. A lei precisa ainda do aval do presidente Fox, mas, acrescenta a agência, “isso não parece ser um obstáculo”. Um porta-voz de Fox já demonstrou a satisfação do presidente com a medida, anunciando, com cinismo exemplar, que ela facilitará o combate ao narcotráfico.

A nova lei aumentará incalculavelmente o afluxo de jovens americanos viciados ao território mexicano, e é vista com maus olhos pelas autoridades políciais dos EUA, mas não resta dúvida de que ela dá um passo enorme em direção à supressão das fronteiras nacionais, pretendida pelo CFR e pelos Bilderbergers. Nos círculos globalistas, o maior financiador das campanhas pela liberação das drogas no mundo é George Soros — não por coincidência, também um dos mais generosos doadores de dinheiro para os movimentos de mexicanização da Califórnia e do Texas. Por enquanto, a multidão ainda não atinou com a unidade estratégica por trás de mutações catastróficas de escala global que aparecem na mídia idiota como frutos espontâneos da metafísica do progresso. Aos poucos, a identidade dos agentes por trás do processo vai aparecendo — e, no fim, como anuncia a Bíblia, “sua loucura se tornará visível aos olhos de todos”.

Os mestres do fracasso

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 24 de abril de 2006

George F. Kennan e Hans J. Morgenthau nasceram ambos em 1904, o primeiro em Milwaukee, Wisconsin, o segundo em Coburg, Francônia, Alemanha, emigrando para a América em 1937. Kennan ultrapassou o centenário, vivendo até 2005; Morgenthau morreu em 1980. Alcançando sua maturidade intelectual nos anos 40, eles estavam destinados a criar então as duas teorias que, em essência, determinariam a política exterior americana ao longo da segunda metade do século XX: a doutrina da “contenção” e a do “realismo político” respectivamente. A primeira orientou continuamente as relações dos EUA com os países comunistas, só sendo abandonada, informal e temporariamente, durante o governo Reagan. A segunda, mais abrangente, forneceu os conceitos gerais com que o Departamento de Estado pensa o mundo. O governo Bush afastou-se dela em aspectos parciais, mas continua raciocinando dentro da moldura intelectual que ela criou.

Que aconteceria se essas duas doutrinas estivessem substancialmente erradas? Travada por uma política internacional imprópria, a América, a potência mais rica e poderosa do universo, com recursos naturais inesgotáveis e o povo mais patriota, devotado e criativo que o mundo já viu, desempenharia no espaço global um papel bem inferior àquele a que parecia destinada pelas circunstâncias da sua fundação e pelo sucesso absoluto do seu sistema econômico e político. Seus méritos mais óbvios, em vez de impor-se ao mundo com a autoridade do exemplo, seriam negados em favor do anti-exemplo de regimes tirânicos desumanos e economicamente fracassados. Seus inimigos, incapazes de vencê-la por engenho próprio, viveriam da exploração de suas fraquezas, conquistando no campo do maquiavelismo e do embuste as vantagens que lhes fossem negadas na concorrência econômica, militar, científica. Mesmo derrotados no campo político e militar, alcançariam vitórias ideológicas e publicitárias. Um fluxo contínuo de ajuda prestada a outros países — até mesmo hostis –, a mais formidável efusão de generosidade nacional que a humanidade já conheceu, exercida não raro contra os interesses materiais do próprio povo americano, não despertaria nenhuma simpatia pela América. Ao contrário: fomentaria entre os beneficiados um sentimento de inferioridade que eles buscariam compensar mediante uma noção grotescamente hipertrofiada dos seus próprios “direitos”. Por toda parte a ingratidão se transformaria em símbolo patriótico, a inveja em virtude e o ódio anti-americano em obrigação moral. Nações inteiras que tivessem devido sua sobrevivência à ajuda americana prefeririam antes aproximar-se de vizinhos agressores e exploradores – aos quais se sentiriam iguais e irmanados pela comunidade do mal – do que do benfeitor em cuja presença se sentiriam humilhadas, não só pela diferença de bens materiais mas pela própria inferioridade moral.

Pois bem, não são precisamente essas coisas que estão acontecendo? Não são elas a descrição exata da posição que os EUA ocupam no mundo? Não está portanto na hora de submeter as idéias de Kennan e Morgenthau a uma crítica radical?

A principal fraqueza delas vem da sua origem disciplinar. Não parece haver nada de anormal em que os teóricos de Relações Internacionais sejam, é claro, estudiosos de Relações Internacionais. Mas a abordagem que Kennan e Morgenthau fazem dos problemas da área reflete a tendência dominante do mundo acadêmico europeu e americano na época da sua formação universitária, as primeiras décadas do século XX. A moda então era cada disciplina científica buscar a independência, recortando seu território de acordo com a natureza autônoma, puríssima e incontaminada do seu objeto de estudos. Foi a época da “lógica pura” de Edmund Husserl, da “teoria pura do direito” de Hans Kelsen, da “economia política pura” de Léon Walras, da “política pura” de Carl Schmitt. Essa obsessão de pureza nasceu de um impulso saudável de respeitar os limites dos vários domínios da realidade (as “ontologias regionais” como as chamava Husserl), reagindo contra a mania oitocentista de fazer da ciência de maior sucesso no momento o modelo e padrão de todas as outras, mania que foi rotulada de “imperialismo cientifico” por José Ortega y Gasset (ele próprio um batalhador pela “sociologia pura”, embora sem esse nome explícito).

A reação diferenciadora era bastante sensata, mas gerou uma espécie de patriotada científica, um orgulho autonomista: cada ciência, uma vez constituída, permitia-se ignorar solenemente aquilo que as vizinhas tivessem a dizer sobre o seu campo ciumentamente recortado e guardado. Kelsen, por exemplo, era particularmente feroz na sua recusa de permitir que considerações sociológicas, psicológicas ou morais interviessem no “direito puro” (mais tarde ele teve de ceder). O resultado foi que muitas áreas de intersecção vieram a ser ignoradas por não se enquadrarem em nenhuma disciplina em particular. Somadas, elas formam continentes inteiros da realidade. O que quer que se passasse nessa zona era tido por irrelevante ou inexistente.

Na produção desse fenômeno houve também a interferência de um outro fator. Se os leitores se lembram do que escrevi sobre Kant aqui e em outras publicações (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060330jb.htm e http://www.olavodecarvalho.org/semana/060403dc.html), não terão dificuldade de perceber o quanto o primado kantiano do método pode ter contribuído para que voltar as costas aos fatos se tornasse então uma questão de honra para muitos cientistas.

Kennan e Morgenthau (este último, não por coincidência, discípulo de Kelsen e Schmitt) foram afetados profundamente por esse vício. Formalmente e por definição – portanto na perspectiva da pureza disciplinar –, as relações internacionais são relações entre Estados. Mas quem disse que na trama real da história do mundo os Estados são os agentes principais do processo? Estados formam-se e desfazem-se como nuvens. Guerras e acordos fazem-nos aparecer e desaparecer do mapa. Às vezes eles são meras ficções diplomáticas criadas por arranjos entre outros Estados. Ademais, Estados não agem: quem age, em nome deles, são os governos; e governos mudam de objetivos ao sabor de forças que não são de ordem estatal, freqüentemente nem nacional. Para agir, diziam os escolásticos, é preciso ser. E ser significa, entre outras coisas, ter unidade e conservá-la ao longo do tempo. Por trás dos Estados, há agentes muito mais coesos, duradouros e contínuos, como por exemplo a Igreja Católica, o Islam (por caridade, revisor, não troque para “Islã”, com til, o aportuguesamento mais errado que algum filólogo bêbado já inventou), a Maçonaria, o Partido Comunista ou certas famílias nobres e ricas. Essas entidades têm objetivos permanentes que ultrapassam a duração dos Estados e não raro o horizonte de visão dos agentes estatais. Sua ação se sobrepõe às divisões entre Estados e com freqüência as determina. Ao descrever o jogo de poder no mundo essencialmente como uma trama de relações entre Estados, tanto Kennan quanto Morgenthau acabam confundindo, kantianamente, a definição de uma disciplina científica com a ordem objetiva da realidade. Mal orientada por eles, a América cometeu erro em cima de erro, primeiro no confronto com o comunismo, e agora com o terrorismo internacional.

No célebre “longo telegrama” que enviou da Embaixada Americana em Moscou ao Departamento de Estado em 22 de fevereiro de 1946, George F. Kennan, reconhecendo a natureza imutavelmente agressiva do regime soviético, propunha uma “duradoura, paciente, firme e vigilante contenção das tendências expansivas da Rússia”. A “contenção” (containment) tornou-se a base permanente da estratégia americana na Guerra Fria.

Ora, no fim da II Guerra, a economia da URSS estava em frangalhos. Dependia inteiramente da ajuda americana, que lhe foi dada mais generosamente do que a qualquer outros país aliado. Os EUA, ao contrário, tinham saído do combate enriquecidos e estavam numa expansão industrial formidável. Tinham do seu lado o prestígio universal da democracia e ainda a vantagem da bomba atômica, um pesadelo que aterrorizava Stalin. Estavam em condições de quebrar a espinha do regime soviético, de reduzi-lo à completa impotência e docilidade, até mesmo sem pressão militar, mediante a simples recusa — ou ameaça de recusa — de ajuda econômica. Se há algo que está bem provado em História, é que a economia soviética sempre foi capenga, sempre dependeu do socorro americano e, depois da guerra, passou a depender mais ainda. A URSS só se tornou uma ameaça para os americanos porque eles mesmos a reergueram e a armaram contra si próprios (v. National Suicide. Military Aid to the Soviet Union, de Anthony Sutton, New Rochelle, N. Y., Arlington House, 1973 — um clássico). Além de arranjar assim “o melhor inimigo que o dinheiro podia comprar”, como o chamou Anthony Sutton, eles ainda fomentaram suas ambições mais paranóicas mediante as concessões excessivas feitas a Stalin por Franklin Roosevelt, nos acordos de Yalta, sob a direta influência de um assessor, Harry Dexter White, que mais tarde se descobriu ser um agente soviético.

A proposta de “contenção”, a essa altura, era de uma modéstia e de uma benevolência anormais. Serviu apenas para encorajar os soviéticos, que desencadearam contra ela uma de suas campanhas de propaganda mais virulentas e mentirosas. Em setembro, um telegrama de Nikolai Novikov, embaixador soviético em Washington, encomendado e ditado pelo próprio Stalin para ser usado nessa campanha, “informava” que “a política externa dos EUA reflete as tendências imperialistas do capitalismo monopolista e caracteriza-se por um esforço para obter a supremacia mundial”. Ora, a “contenção” americana não era um slogan publicitário, era a expressão literal do princípio adotado na prática, que reconhecia a legitimidade das fronteiras alcançadas até então pela brutal expansão soviética e se propunha apenas impedir que fossem mais além. A idéia refletia não só a sugestão de Kennan, mas também a influente doutrina do “equilíbrio de poderes” que Hans J. Morgenthau estava ensinando na Universidade de Chicago e que viria a compor o seu livro de 1948, Politics among Nations: The Struggle for Power and Peace. Habilitados a conquistar a hegemonia, os americanos queriam apenas “contenção” e “equilíbrio de poderes”. A maior prova disso foi que retiraram suas tropas da Europa no prazo prometido, enquanto a União Soviética tratava de manter as suas por lá indefinidamente. A modéstia das pretensões americanas e a ambição ilimitada dos soviéticos apareciam rigososamente invertidas no telegrama de Novikov e em toda a campanha de propaganda anti-americana que se seguiu.

Concentrados no esforço de deter a expansão territorial do Estado soviético, os serviços de segurança americanos descuidaram do movimento comunista enquanto tal, que enquanto isso infiltrou algumas centenas de agentes no governo dos EUA, dominou quase que por completo o establishment cultural e artístico, espalhou agentes de influência em toda a grande mídia ocidental e preparou a rebelião interna que, nos anos 60, levaria os EUA à derrota no Vietnã. Bem observou o general Giap, comandante das forças do Vietnã do Norte, que enquanto os americanos tratavam a guerra como assunto estritamente militar, eles, os comunistas, combatiam simultaneamente em todas as frentes: moral, cultural, jornalística etc. E foi justamente nessas frentes que venceram a última batalha, por meio da própria New Left americana, num momento em que o exército vietcongue já estava praticamente destruído após a famosa ofensiva do Tet.

Limitado pela obsessão estatal, o governo americano, durante muito tempo, seguiu a norma de só se preocupar com algum indivíduo ou grupo comunista quando ele tivesse ligação direta com a espionagem soviética. Fora disso, a militância comunista era considerada uma simples expressão de opiniões individuais, sem periculosidade maior. Na New Left dos anos 60 e 70, as ligações da militância com governos comunistas eram tênues demais para chamar a atenção. A explicação disso não era uma autêntica independência do esquerdismo em relação à estratégia soviética e chinesa. Era que o movimento comunista já começava então a evoluir da rígida estrutura hierárquica para a organização informal e flexível em “redes” multinacionais, que nas décadas seguintes viriam a acossar os EUA desde muitos lados simultaneamente com uma campanha de hostilidade global que o governo americano não estava e não está até agora preparado para enfrentar. Só a partir do governo Bush veio o reconhecimento tardio de que os EUA estavam agora lidando com um novo tipo de guerra, impossível de enquadrar nas doutrinas usuais.

Tudo isso poderia ter sido evitado se os EUA não tivessem concentrado sua política exterior no esforço de conter a expansão das fronteiras territoriais soviéticas, em vez de combater o movimento comunista internacional em todas as frentes. Para fazer uma idéia de quanto os EUA foram passados para trás, basta comparar a amplitude do esforço que os soviéticos fizeram para dominar o ambiente intelectual e artístico da Europa e dos EUA desde a década de 20 (v. Frederick C. Barghoorn, The Soviet Cultural Offensive, Princeton Univ. Press,. 1960, e sobretudo Stephen Koch, Double Lives. Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West, New York, Free Press, 1994), com a modéstia reação americana, vinda só nos anos 50 e praticamente limitada ao Congresso pela Liberdade da Cultura realizado em Berlim Ocidental em 1956. Não deixa de ser interessante observar que, graças à hegemonia cultural comunista dentro do próprio ambiente acadêmico americano, até mesmo essa singela e módica resposta não deixou de ser condenada, dentro dos EUA, como uma ação imperialista moralmente repugnante (v. por exemplo Frances Stonor Saunders, The Cultural Cold War. The CIA and the World of Arts and Letters, New York, The New Press, 1999).

Quanto à doutrina Morgenthau, sua autodenominação de “realismo político” parece quase um lance de humorismo involuntário. Definindo as relações internacionais como um campo constituído essencialmente da concorrência entre interesses nacionais e enfatizando o nacionalismo como força ideológica predominante, o morgenthauísmo serviu para obscurecer os três principais fatores em ação no panorama histórico do último meio século: a unidade estratégica do esquerdismo internacional, sua reorganização em redes informais para o esforço de guerra cultural e sua atuação simultânea numa multiplicidade inabarcável de fronts – precisamente os três fatores que foram acumulando força desde os anos 50 para hoje colocar os EUA sob assédio multilateral permanente.

Morgenthau subestimava a unidade da estratégia comunista ao ponto de propor que os EUA tentassem fazer alianças com países comunistas contra a URSS e a China, um plano do qual, obviamente, os soviéticos e chineses tiraram proveito quase ilimitado

Estes dois parágrafos que ele publicou no New York Times Magazine em 18 de abril de 1965 dão uma idéia de até onde iam o irrealismo e a imprevidência de Morgenthau:

“Estamos sob uma compulsão psicológica de dar continuidade à nossa presença militar no Vietnam do Sul como parte da contenção militar periférica da China. Fomos estimulados nesse curso de ação pela identificação do inimigo como ‘comunista’, vendo em cada partido comunista uma extensão do poder hostil soviético ou chinês. Essa identificação era justificada quinze ou vinte anos atrás, quando o comunismo ainda tinha um caráter monolítico, Aqui, como em outros campos, nossos modos de pensamento e ação foram tornados obsoletos pelos novos desenvolvimentos. É irônico que a simples justaposição de ‘comunismo’ e ‘mundo livre’ tenha sido erigida pela cruzada moralista de John Foster Dulles em princípio guiador da política externa americana numa época em que o comunismo nacional da Iugoslávia, o neutralismo do Terceiro Mundo e incipiente ruptura entre a URSS e a China estavam tornando essa justaposição inválida.”

Ora, hoje sabemos que: Primeiro, o movimento “neutralista” do Terceiro Mundo foi todo ele articulado pela KGB, com o intuito bastante razoável de criar frentes anti-americanas que não pudessem ser facilmente identificadas como comunistas (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World, New York, Basic Books, 2005). Segundo, que a pretensa independência do comunismo iugoslavo fez dele um instrumento maravilhosamente eficaz que os soviéticos usaram para criar esse engodo “neutralista”. Terceiro, que o chamado conflito sino-soviético nunca foi para valer, foi apenas uma encenação montada para camuflar a unidade global da estratégia comunista e levar os americanos a pensar exatamente o que Morgenthau pensou. (Sobre esses dois últimos pontos, v. Anatoliy Golitsyn, New Lies for Old. The Communist Strategy of Deception and Disinformation, Atlanta, GA, Clarion House, 1990.)

A ineficiência do morgenthauismo tem, no entanto, raízes mais profundas e obscuras do que o mero irrealismo. Ela nasce de uma contradição interna insanável. De um lado, toda a descrição que Morgenthau oferece do mundo político é baseada nas idéias de Estado-Nação, interesse nacional e nacionalismo. Por outro lado, ele acreditava na viabilidade de um governo mundial e trabalhava por essa idéia. Foi justamente isso que o tornou tão querido nos círculos globalistas do CFR, Council on Foreign Relations. Esses círculos eram e são dominados por grupos de bilionários metacapitalistas, cujos planos, globais e de escala mais civilizacional do que político-militar, vão muito além do horizonte de qualquer Nação-Estado, para não dizer de qualquer governo. Vivendo e pensando dentro dessa atmosfera, Morgenthau tinha ali mesmo a prova inequívoca de que as Nações-Estados não são o sujeito agente principal da História, mas com freqüência o objeto inerme nas mãos de agentes mais unitários e coerentes. Escamoteando a atuação desses agentes, dos quais ele próprio era um colaborador intelectual de grande valia, o morgenthauismo é um caso extremo de “paralaxe cognitiva”, no qual as próprias condições existenciais nas quais a teoria brotou e se desenvolveu trazem o desmentido completo do conteúdo da teoria.

O velho John Foster Dulles não estava errado ao desejar que a luta dos americanos não fosse contra Estados em particular, mas contra o movimento comunista enquanto tal. Apenas, limitado pela perspectiva de Kennan, ele ainda enxergava essa luta em termos de contenção e não de guerra cultural global, numa época em que os comunistas já estavam empenhados nessa guerra fazia muito tempo. Se errou, foi por modéstia e não por pretensão excessiva da sua “cruzada moralista” – hoje mais necessária do que nunca.

O efeito conjugado das teorias de Kenan e Morgenthau sobre a política exterior americana pode ser medido pela formidável ampliação do anti-americanismo depois da queda da URSS e pelo presente estado de cerco moral em que os EUA se encontram, incapazes de defender até mesmo os direitos mais elementares da sua soberania sem suscitar imediatamente uma onda mundial de revolta contra isso.

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