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Experimento sociológico

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de maio de 2006

A maioria dos cientistas sociais não se dedica a outra coisa senão a explicar os acontecimentos como efeitos de “causas” impessoais e anônimas, como por exemplo a “luta de classes” (com todas as variações aí introduzidas pela moda e pelas conveniências táticas), escamoteando a ação concreta dos indivíduos e grupos que dirigem o processo. Tudo aí parece derivar de estruturas, de leis, de estatísticas, reduzindo-se os agentes reais a meros instrumentos, quase sempre inconscientes, de forças coletivas que os transcendem imensuravelmente. A principal utilidade dessa construção fantasiosa é encobrir sob um manto de invisibilidade a força dos próprios cientistas sociais enquanto “agentes de transformação”, bem como a dos grupos e entidades que lhes dão sustentação editorial e financeira.

Os exemplos sucedem-se a cada semana, mas tornam-se mais enfáticos nos momentos de confusão e pânico, quando essas criaturas das trevas emergem de seus sepulcros acadêmicos para vir explicar ao mundo que não há nada de novo sob o Sol, que está tudo sob o controle infalível da ciência que professam. Assim, diante do estado insurrecional triunfante produzido em São Paulo por uma iniciativa estratégica bem articulada entre o governo brasileiro e três organizações milionárias, PCC, MST e FARC, o sociólogo francês Loïc Wacquant, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, foi convocado às pressas pela Folha de S. Paulo do dia 15 para acusar os culpados de sempre e ajudar as vítimas a não enxergar os agentes efetivos por trás do processo.

A principal glória curricular do prof. Wacquant é ser autor de dois livros que explicam a criminalidade como efeito da guerra dos ricos contra os pobrezinhos e ter recebido, em função de suas obras, um prêmio da paupérrima John D. & Catherine T. MacArthur Foundation, badalado como “o prêmio dos gênios”.

Felizmente, a ciência social às vezes nos fornece o antídoto à sua própria vigarice. No caso, o antídoto é o “experimento imaginário” sugerido por Max Weber para comparar a importância relativa de vários fatores causais numa dada situação. Trata-se de fazer abstração mental de determinado fator e averiguar se, sem ele, os acontecimentos teriam sido possíveis. Suponhamos a miséria e a desigualdade. Elas estão presentes por igual em sociedades assoladas pela violência criminosa e entre povos mais pacíficos como os indianos e os romenos. Mutatis mutandis, a criminalidade no Brasil não se expandiu nas áreas mais pobres, mas justamente naquelas que, ao longo das últimas décadas, passaram da miséria absoluta a um padrão de vida que, na Índia, seria considerado de classe média, como por exemplo as favelas cariocas. Omitida a comparação, porém, restam dentro de cada área isolada sinais aparentes em quantidade bastante para manter viva a impressão de que o crime é efeito da miséria. Acoplada a outro topos da retórica esquerdista, o de que a miséria é causada pelo imperialismo americano, essa crença tem por efeito despertar o ódio aos EUA e fomentar esperanças messiânicas numa nova ordem internacional paradisíaca, a ser instaurada sob os auspícios da ONU, da China e da Rússia. Para a realização desse objetivo trabalham incansavelmente várias fundações bilionárias, entre as quais Rockefeller, Carnegie, Soros e, é claro, MacArthur. Seus esforços nesse sentido já foram bem documentados meio século atrás por uma comissão do Congresso americano (v. René A. Wormser, Foundations: Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958) e desde então não fizeram senão multiplicar-se em abrangência e quantidade de recursos, incluindo dotações de dinheiro do próprio governo de Washington, que essas entidades sugam e utilizam para seus próprios fins (de modo que esse governo acaba aparecendo como o culpado do que fazem contra ele). Premiar uns quantos “gênios” que ajudem a revestir de honorabilidade científica a trapaça essencial em que se assenta a operação é a parte menos dispendiosa do orçamento. O grosso do dinheiro vai para fomentar diretamente movimentos subversivos e organizações pró-terroristas (v. a estrutura da rede em www.discoverthenetwork.com).

Se, de acordo com o experimento weberiano, abstrairmos do quadro presente a atuação dessas fundações, o resultado será simplesmente que a esquerda revolucionária do Terceiro Mundo não teria podido continuar a existir e prosperar depois da queda da URSS e, portanto, a utilização do crime como instrumento da subversão organizada, que é o seu principal modus operandi na última década, se tornaria inviável.

O banditismo, assim, cresceu junto com o prestígio oficial da tese mesma que o explica pela luta de classes. Alegando razões fundadas nessa teoria, o prof. Wacquant prevê um aumento da violência no Brasil. Mas essas razões são desnecessárias. A violência crescerá junto com o número de idiotas que acreditam no prof. Wacquant.

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Se os praticantes da ciência wacquântica fossem sérios, estudariam um pouco de lógica da investigação científica e saberiam que nenhuma correlação causal (entre pobreza e crime ou entre qualquer coisa e qualquer outra) pode ser generalizada para um grupo abrangente de casos sem que esteja muito bem provada ao menos em alguns deles individualmente. Ora, na escala individual a pobreza só pode ser justificação direta e determinante do crime em exemplos excepcionais e raros – tão excepcionais e raros, na verdade, que em todo país civilizado a lei os isenta da qualificação mesma de crimes. São os chamados “crimes famélicos” – o desnutrido que rouba um frango, ou o pai sem tostão que furta um remédio para dar ao filho doente. Em todos os demais casos, a pobreza, se está presente, é um elemento motivacional que, para produzir o crime, tem de se combinar com uma multidão de outros, de ordem cultural e psicológica, entre os quais, é claro, a persuasão pessoal de que delinqüir é a coisa mais vantajosa a fazer nas circunstâncias dadas. Quando o hábito da delinqüência se espalha rapidamente numa ampla faixa populacional, é claro que, antes dele, essa persuasão se tornou crença geral nesse meio, reforçando-se à medida que as vantagens esperadas eram confirmadas pela experiência e pelo falatório. Ora, é de conhecimento público que, entre a mesma população pobre, por exemplo das favelas cariocas ou da periferia paulistana, duas crenças opostas se disseminaram concorrentemente nas últimas três décadas: de um lado, o apelo do crime; de outro, a fé evangélica. Numa população uniformemente pobre, o número de evangélicos praticantes que delinqüem é irrisório. Basta esse fato para provar que a correlação entre pobreza e crime é uma fraude, um sofisma estatístico da espécie mais intoleravelmente suína que se pode imaginar. Nenhuma ação humana é determinada diretamente pela situação econômica, mas pela interpretação que o agente faz dela, interpretação que depende de crenças e valores. Estes, por sua vez, vêm da cultura em torno, cujos agentes criadores pertencem maciçamente à camada letrada, como por exemplo os bispos evangélicos e os cientistas sociais. Os bispos ensinam que, mesmo para o pobre, o crime é um pecado. Os cientistas sociais, que os criminosos, agindo em razão da pobreza, são sempre menos condenáveis do que os ricos e capitalistas que (também por uma correlação geral mágica) criaram a pobreza e são por isso os verdadeiros culpados de todos os crimes. Essas duas crenças disputam a alma da população pobre. Não é preciso dizer qual delas estimula à vida honesta, qual à prática do crime. Nos bairros mais miseráveis e desassistidos, qualquer um pode fazer esta observação direta e simples: as pessoas de bem repetem o discurso dos bispos, os meliantes o dos cientistas sociais (do sr. Marcola nem preciso dizer nada, já que ele próprio é meio cientista social). Quando, do alto das cátedras, esses senhores pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, não estão cometendo um inocente erro de diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por meio dessa mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade. E, quando são premiados por uma organização ostensivamente interessada em disseminar a subversão, como é o caso notório da Fundação MacArthur, eu seria o último a negar que mereceram o prêmio.

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Se, deixando de lado as generalizações etéreas, nos atemos à seqüência real dos fatos, a ordem temporal de produção dos acontecimentos da semana passada aparece com o seguinte desenho:

1º. Desde a década de 30, atendendo a uma ordem de Stalin, a intelectualidade esquerdista mundial, onde há mais cientistas sociais per capita do que lobos numa alcatéia, se dedicou ativamente a infundir em todas as patologias sociais, como o crime e o racismo, a substância universalmente explicativa da luta de classes. O esforço dos teóricos foi aí secundado por uma multidão inumerável de romances, filmes, peças de teatro e canções populares que faziam a idéia penetrar profundamente no imaginário popular ao ponto de se tornar um dogma inabalável. Nos países do Terceiro Mundo, justamente graças à profusão de patologias sociais existentes, essa doutrina se impregnou com aderência maior ainda, tornando-se o tema dominante, senão único, de várias culturas nacionais, entre as quais a brasileira (dediquei a esse tema uma série de artigos publicados em 1994 sob o título “Bandidos e letrados”).

2º. Quando o ambiente cultural estava suficientemente preparado, a transformação do banditismo em instrumento da luta de classes revolucionária passou da teoria à prática. No Brasil, especialmente, o empenho organizado dos militantes de esquerda para arregimentar a serviço da subversão as gangues de delinqüentes já é um fato abundantemente documentado desde a década de 60. Da esquerda o banditismo absorveu não somente a doutrina e o discurso, mas também as técnicas de guerrilha urbana que empregou, por exemplo, no movimento insurrecional da semana passada. O contato entre as gangues e os grupos terroristas intensificou-se ao ponto de tornar-se institucional. A presença de técnicos das FARC e das organizações terroristas islâmicas em vários grupos criminosos do Brasil já se tornou tão freqüente que não suscita mais nenhuma reação de escândalo. Acostumamo-nos a isso como a um dado da natureza.

3º. Quando a esquerda latino-americana, em 1990, passou por um formidável upgrade com a fundação do Foro de São Paulo, as organizações de narcotraficantes, seqüestradores e assaltantes acompanharam-na na sua ascensão social, assentando-se ao lado de partidos legais como o PT e o PC do B nas assembléias do Foro, coordenação estratégica do movimento comunista latino-americano. Desde então, todo empreendimento subversivo de larga escala, no continente, é realizado sob a supervisão ao menos indireta do Foro de São Paulo. Não há mais iniciativas isoladas: o banditismo avulso vai sendo sepultado na memória coletiva como um resíduo de eras extintas. Por toda a parte o que se vê é integração, conexão, unidade ideológica e estratégica.    

4º. Como fundador e principal líder do Foro de São Paulo, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva sempre esteve muito bem informado do grau de organização que seus colegas de militância haviam conseguido transmitir aos grupos de delinqüentes, nas cadeias ou fora delas. Mais informado ainda encontrava-se esse cidadão pelo fato de ser presidente da República, tendo sob seu serviço direto os órgãos de inteligência e a Polícia Federal, além, é claro, da figura insubstituível do seu ministro da Justiça, cuja convivência íntima com os líderes maiores do banditismo nacional tem representado, para ele, mais que um estilo de vida, um meio de próspera subsistência.

5º. Em vista disso, é absolutamente impossível que essas duas excelências ignorassem a preparação do mais vasto movimento insurrecional já planejado neste país no último meio século, e que, portanto, fosse com cândida inocência e desconhecimento das conseqüências que a primeira autorizou e a segunda pôs em prática o indulto que colocou na rua, livres, armados e bem articulados, doze mil delinqüentes, entre os quais os autores da carnificina.

6º. Mais impossível ainda é que os excelentíssimos ignorassem o detalhe mais lindamente perverso da situação que geraram. Todo mundo sabe que, neste país, os policiais recebem uma quantidade irrisória de munições, tendo de dispender do próprio bolso para garantir-se em situações de risco de vida. Ao ver-se acossados, nas ruas, nos batalhões e nos postos, por inimigos decididos a tudo e incomparavelmente mais armados e municiados, os policiais paulistas, naturalmente, correram às lojas de armamentos para trocar o leite das crianças por meios elementares de defesa. Com enorme surpresa, descobriram que um determinado item da lei do desarmamento, que até então jazia inerte num papel, tinha acabado de entrar em vigor: não podiam comprar munição nenhuma sem autorização escrita da Polícia Federal. Comerciantes de armas relatam que viram policiais saírem de suas lojas chorando, conscientes de que estavam condenados à morte sem apelação. Se me disserem que o sr. ministro da Justiça ignorava essa armadilha, responderei então que ele é o mais estúpido incompetente que já passou pelo seu cargo, já que a entidade encarregada de fornecer as autorizações repentinamente exigidas e faltantes está sob o seu comando direto. Mas somente um país muito louco, muito alienado, mantém nesse cargo, numa hora dessas, o advogado pessoal do próprio chefe da inssurreição. Como defensor de Marcola, o sr. Márcio Thomaz Bastos tem confiabilidade zero até mesmo para dar uma opinião imparcial quanto aos acontecimentos da semana passada, quanto mais para reter em suas mãos, com avareza assassina, os meios de defesa que teriam podido salvar centenas de pessoas.

7º. Aqueles que acima da suspeita racional coloquem a crença dogmática na idoneidade do governo petista podem apostar numa conjunção fortuita de fatores, na santa e pura coincidência. Eu é que não.

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P.S.- A situação de total desamparo em que o governo brasileiro deixa os policiais, entregando-os à mercê dos criminosos, já é um fato oficialmente reconhecido pela justiça norte-americana. No fim de abril, um tribunal da Flórida concedeu asilo político a um policial de Minas Gerais por reconhecer que, após matar em tiroteio um importante líder do narcotráfico local, o infeliz estava tão desguarnecido quanto um pato de plástico num estande de tiro. Voltarei ao assunto num próximo artigo. Como a promotoria abdicou de recorrer da sentença, a decisão está incorporada à jurisprudência americana e valerá para os casos subseqüentes. Os policiais brasileiros propositadamente deixados sem munição na hora do aperto já não podem dizer que não têm a quem recorrer: esqueçam o sr. Márcio Thomaz Bastos, peçam socorro à justiça de um país onde existe justiça.

 

A eloqüência dos fatos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 17 de maio de 2006

Mesmo depois que a insurreição geral do crime organizado, com o apoio do MST e das Farc, subjugou e humilhou a maior capital latino-americana, ainda haverá quem negue o avanço da subversão comunista no continente e, desviando a atenção pública das verdadeiras forças ativas por trás desse descalabro, busque entorpecer as consciências com as explicações “sociológicas” de sempre.

Mas, apesar de todo o prestimoso diversionismo da mídia e dos bem-falantes, é muito difícil não enxergar, nos acontecimentos das últimas semanas, um complexo de ações coordenadas do Foro de São Paulo para quebrar a espinha da nação brasileira e entregar o nosso povo, de joelhos, aos agentes da revolução continental.

Se os líderes da insurreição criminosa que espalhou o terror na cidade de São Paulo admitem francamente ter sido treinados e ajudados pelo MST, e se o dirigente máximo deste movimento, ao mesmo tempo, oferece ostensivamente a ajuda da sua militância ao agressor estrangeiro que sob os olhos complacentes do nosso presidente invadiu os postos da Petrobrás, a mensagem dessa conjunção de fatores é bem nítida: não há autoridade, não há soberania, não há ordem nem lei acima do comando subversivo continental.

Pouco falta para que a Nação, atônita e amedrontada, aceite essa mensagem com a naturalidade de quem se curva a “um imperativo categórico, um mandamento divino”, para usar as palavras com que Antonio Gramsci definia a autoridade do partido revolucionário.

A articulação e o timing foram perfeitos: com poucos dias de distância, o governo da República ensina o país a curvar-se servilmente ao insulto que venha da fonte ideológica apropriada, o MST proclama orgulhosamente seu direito de lutar contra o país, o indulto presidencial solta 12 mil presos e a “democracia direta” dos homens armados impõe o toque de recolher a vinte milhões de brasileiros. Alguém ainda é idiota o bastante para achar que foi tudo uma coincidência fortuita, que ações enormemente complexas como essas que estamos vendo podem ser improvisadas do dia para a noite, sem nenhuma comunicação entre os vários focos geradores da revolução continental?

Pelo menos o líder dos criminosos rebelados, que confessa ter estudado muito Lênin, sabe que isso é impossível. Também o sabe o fundador e presidente crônico do Foro de São Paulo, temporariamente afastado para exercer o papel de presidente do Brasil.

Os fatos estão visíveis, mas muitos brasileiros ainda insistem em não tirar deles as conclusões mais óbvias e incontornáveis. É que, nessas criaturas, o medo da chacota cínica superou o instinto de sobrevivência. O cérebro delas está chegando àquele ponto de entorpecimento em que já não é possível distinguir o vivo do morto.

Psicologicamente, é esclarecedor que essa explosão de brutalidade e arrogância sobreviesse nos mesmos dias em que o seminário Democracia, Liberdade e o Império das Leis rompia um silêncio de décadas. A longa e sistemática supressão das idéias liberais e conservadoras criou o vazio no qual o establishment esquerdista plantou o complexo de preconceitos e inibições que desarma a sociedade e instila nos delinqüentes a confiança ilimitada – e, como bem se viu, justificada – no seu poder de ação.

Nós todos, participantes do seminário, estávamos conscientes de que é nosso dever tirar o País das mãos dos criminosos que o desgovernam e o atormentam. Cada palavra que ali se disse refletia um sentimento de urgência quase desesperada. Em torno de nós, os fatos, com a eloqüencia cruel dos tiros e do sangue, nos davam mais razão do que desejaríamos ter.

O dever que nos espera

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 15 de maio de 2006

Nos últimos anos chegaram ao meu conhecimento várias dúzias de projetos de Estado democrático liberal, de Constituição federalista, de reforma fiscal e judiciária, etc. etc. Por um vício herdado da tradição bacharelesca, os brasileiros adoram as definições doutrinais, sobretudo de coisas que não existem. Liberais e conservadores não escapam à regra. Quando sonham com um futuro melhor, buscam logo transmutá-lo num código e recheá-lo de comentários eruditos, esmiuçando-lhe as mais delicadas nuances conceptuais e fundamentando sua construção ideal em citações de John Locke, Friedrich Hayek, Hannah Arendt e não sei mais quantos luminares do pensamento democrático.

Tão intensamente se entregam a esses respeitáveis afazeres, que se esquecem de pensar em três detalhes. Primeiro: Como vamos tirar do caminho os malditos comunistas que ocuparam o espaço inteiro e nos separam do belo ideal a que aspiramos? Segundo: Supondo-se que esse obstáculo já tivesse sido removido, para que serviria ter uma concepção prontinha do Estado democrático, se o próprio exercício da liberdade haveria de produzir, na prática diária, soluções novas e mais apropriadas à situação? Terceiro: Os homens podem matar e morrer por um sonho, mas não o farão por um código. Reduzido à formulação racional de uma proposta jurídica explícita, o ideal já não impele à ação, mas à contradição e ao debate. Quanto mais detalhada a proposta, mais discussão e menos ação. Enquanto os liberais e conservadores brasileiros criam doutrinas, os comunistas dominam o país e aumentam dia a dia o seu poder. E fazem isso sem nenhuma unidade doutrinal, antes curtindo gostosamente a nebulosidade e a indefinição cuja fecundidade estratégica e tática aprenderam com Antonio Gramsci.

Por isso é que, se me pedem uma definição de democracia liberal, saco do meu revólver.

Não digo isso por ser um praticista avesso a teorias. Adoro teorias, mas não quando se transformam em fetiches. Teorias só são boas quando se contentam em ser expressões provisórias da realidade apreendida na experiência. E, como estudei um pouquinho de Hegel, sei que, no domínio das coisas humanas, o sentido real de um conceito não está no significado nominal da sua expressão verbal: está naquilo que se opõe a ele, não enquanto idéia, mas enquanto realidade. Para sabermos o que pode e deve ser a democracia liberal no Brasil, não temos de formulá-la doutrinalmente, mas de olhar em torno e entender as causas que levaram ao triunfo do seu oposto. Da própria dialética histórica que produziu a hegemonia esquerdista é que temos de obter o sentido e a direção dos nossos esforços.

Essa dialética mostra, desde logo, que a mixórdia doutrinal da esquerda foi, de maneira aparentemente paradoxal, um dos segredos da sua vitória. Diluindo numa pasta confusa a antiga ideologia monolítica dos partidos comunistas, a esquerda continental ampliou formidavelmente sua base de apoio e obteve os meios de sugar o prestígio dos ideais democráticos, dos valores morais e até do cristianismo. Esse inimigo informe e onipresente é o avesso daquilo que queremos. Invertê-lo não é fácil, mas é o único meio de vislumbrar um futuro democrático para o Brasil. E isso é uma questão de estratégia e tática, não de doutrina.

Não podemos esquecer, desde logo, que a base da hegemonia comunista neste país foi construída sobre o prestígio mágico de umas quantas dezenas de intelectuais de esquerda. Digo “mágico” porque há algo de feitiço no modo como tantos charlatães semicultos puderam adquirir a autoridade quase sacerdotal que os transformou em juízes supremos da moralidade pública. Sem destruir primeiro o encanto desses ídolos de papier mâché, nenhum futuro terá a democracia liberal no Brasil. Ele foi o cimento psicológico que deu solidez ao edifício do poder petista e tornou possível que um bando de delinqüentes dominasse o país em nome da moral. Mais urgente do que definir a democracia liberal é destruir um a um os falsos prestígios que bloqueiam o acesso da juventude universitária ao conhecimento dela. Não falo propriamente de “guerra cultural”. Guerra cultural é luta de idéias. Desmascarar vigaristas é algo ao mesmo tempo mais simples e mais dificultoso que uma luta de idéias. Trata-se de contestar, na base, qualquer pretensão de autoridade intelectual dos usurpadores e charlatães que dominaram o universo cultural brasileiro. Para isso não é preciso expor as nossas idéias nem discutir as deles. É preciso apenas demonstrar que não têm idéia nenhuma, apenas “ideologia” no sentido antigo e pejorativo do termo, isto é, um “vestido de idéias” (Ideenkleid) encobrindo o desejo de poder e os mais sórdidos interesses grupais. Desprovida de seus ídolos acadêmicos, a juventude sairá em busca de novos polos de orientação. Esse sim será o momento de expor e discutir doutrinas.

O segundo pilar de sustentação da hegemonia esquerdista é o controle da informação. O povo brasileiro pouco ou nada sabe do Foro de São Paulo, da estratégia criminosa continental, dos nexos secretos entre narcotráfico, seqüestros, assassinatos, revolução e petróleo, sem cujo conhecimento é impossível entender o que se passa hoje. Por exemplo, a recente denúncia dos crimes petistas pôde ser facilmente reaproveitada em prol do mito da superioridade moral esquerdista mediante o artifício de imputar as culpas a “um grupo”, encobrindo a articulação maior que o colocou no poder e que, expurgada de dois ou três ladrões de galinha mais notórios, continuará a operar com redobrado prestígio moral. Estudar, conhecer e divulgar o alcance e o funcionamento do esquema inteiro é muito mais urgente para os liberais e conservadores do que definir e expor suas doutrinas. A difusão de idéias pressupõe um ambiente de clareza e sinceridade, que não existe nas presentes condições de ocultação geral e mentiras cruzadas. É preciso antes limpar a atmosfera, diluir a névoa infernal que cega e estupidifica a audiência.

O terceiro sustentáculo do império do crime é a rede de apoios que a ignomínia esquerdista conseguiu tecer entre banqueiros, empresários, investidores da bolsa e potentados da mídia, na base de interesses imediatistas em nome dos quais essa gente vende a honra que nunca teve e a pátria que ainda tem. A extensão dessa rede é quase impossível de calcular. Um indício eloqüente obtém-se pelas reações de algumas dessas criaturas ao ato de guerra empreendido pelo sr. Evo Imorales contra o patrimônio nacional. Desculpam-no e celebram-no sob os pretextos mais fúteis, postiços e absurdos. Querem até que tenhamos peninha de um “povo sofrido”, como se a massa de cocaleros não vivesse, há décadas, de espalhar o vício e a morte entre os jovens do continente. Um pai que, na miséria, prostitui suas filhas, merece mais respeito do que aquele que sobrevive de desgraçar os filhos dos outros. Cocaína é isso, não é outra coisa. Evo Imorales é isso, não é outra coisa. A economia boliviana é isso, não é outra coisa. E se precisam tanto de petróleo, não é para encher o tanque dos carros que não têm: é porque daí sai o único solvente para o processamento da cocaína. Os poços brasileiros vão servir é para fazer um upgrade na indústria boliviana da morte. Muita gente sabe disso. Mas, se pedimos o apoio de certos donos do capital financeiro à nossa luta contra o maior crime de que o Brasil foi vítima nas últimas décadas, eles nos respondem que estão contentinhos, que nunca ganharam tanto dinheiro, que o governo Lula tem um sex appeal irresistível. Isso é um bando de criminosos tão abominável quanto a turma do Mensalão. Identificá-los e desmascará-los é uma providência sem a qual nenhuma esperança sensata se pode depositar na futura democracia liberal brasileira. É, ademais, tarefa pedagógica, que nos esclarecerá, no curso da sua execução, sobre as estruturas de poder em que se assenta a pax luliana, o sorridente domínio do mal neste país. É derrubando os obstáculos que a democracia liberal irá tomando forma ante os nossos olhos.

Essas são as três primeiras etapas de uma autodefinição da democracia liberal no Brasil. Definição que não deve surgir de especulações teóricas prévias, mas da própria prática das virtudes essenciais do debate democrático: transparência, sinceridade e idoneidade. É preciso por em ação estas armas temíveis. Elas nos ensinarão – a nós e a nossos ouvintes — o que é a democracia liberal.

Cortar as línguas dos falsos profetas, dissipar a treva que espalharam com suas bocas mentirosas, destruir as muralhas da antidemocracia que nos oprime – estas são as tarefas primordiais da intelectualidade conservadora e liberal no Brasil. Para exercê-las, não é preciso ter nenhuma definição clara e final da fórmula democrática com que sonhamos. É preciso apenas ter vivo nos nossos corações o ideal da liberdade e do império das leis. Esse ideal pode continuar vago e impreciso durante todo o período inicial da luta, que equivale àquilo que os antigos retóricos chamavam a pars destruens, a parte destrutiva do serviço, o longo e dificultoso “trabalho do negativo”, como o chamava Hegel: os ideais se esclarecerão e se transformarão em fórmulas práticas no próprio curso do combate.

Raciocinar na pura atmosfera abstrata e rarefeita das formulações doutrinais é para acadêmicos e beletristas. Tanto o filósofo genuíno quanto o líder político sério raciocinam, isto sim, desde dentro do próprio fluxo da realidade, agindo e experimentando, aprendendo com a experiência e fazendo a cada momento os ajustes necessários a manter a intuição clara do rumo das coisas.

É este o apelo que, na auspiciosa abertura do nosso seminário “Democracia, Liberdade e o Império das Leis”, faço aos meus colegas de debate e a todos aqueles que ainda crêem na possibilidade de salvar o Brasil e o continente latino-americano da armadilha cruel e estúpida em que estamos caindo. Fujam das fórmulas, atenham-se aos fatos e às ações. Tentem compreender o que está acontecendo. Busquem informação. Não temam as hipóteses arrojadas. Testem-nas na experiência. Aprendam e lutem. O conhecimento que não vem de um “saber de experiência feito” é um luxo inútil, um fardo pesado que oprime a inteligência e debilita os ânimos.

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