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Dormindo profundamente

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 19 de junho de 2006

Alguns leitores reclamam que descrevo o problema mas não indico solução. Sabem por que faço isso? É que as únicas soluções possíveis são tão difíceis e remotas que só de pensar nelas a visão do problema se torna ainda mais insuportável. Cada vez que volto ao assunto ecoa na minha memória o verso de Manuel Bandeira, o mais triste da literatura universal, que resume a história do Brasil nas últimas décadas: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi.”

Em 2002, numa reunião internacional (v. http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=4960), os estrategistas da revolução latino-americana já haviam chegado à conclusão de que nenhuma força de direita tinha condições de erguer-se para enfrentá-los. Desde então o poder da esquerda veio crescendo formidavelmente, especialmente no Brasil, e seus eventuais adversários não fizeram senão ceder terreno, acomodar seu discurso ao do inimigo, abdicar de toda identidade ideológica e gastar energias preciosas em alianças debilitantes, em campanhas de bom-mocismo sem teor ideológico e em esforços eleitorais perfeitamente fúteis.

É claro que antevejo soluções. Mas tenho a quase certeza de que ninguém vai colocá-las em prática. Todos os que poderiam fazê-lo estão demasiado fracos, demasiado sonsos para poder reagir. Oito, dez anos atrás andei sugerindo soluções. Falei a empresários, políticos, religiosos, intelectuais, militares. Em geral não consegui persuadi-los nem mesmo de que havia um problema – o mesmo problema sob cujo peso agora estão gemendo. Todos, sem exceção, avaliavam a situação baseados somente no que liam na mídia, prescindindo solenemente de qualquer conhecimento das fontes diretas, da bibliografia especializada ou mesmo dos clássicos do marxismo. E julgavam com uma segurança, com uma pose! Uns confiavam nos seus galões, outros no seu saldo bancário, outros nos seus diplominhas da USP como se fossem garantias de infalibilidade, incomparavelmente superiores a décadas de estudo e montanhas de documentos. Uns diziam que eu estava açoitando cavalos mortos, outros estavam tão despreocupados que tinham tempo para criticar detalhes de estilo que os incomodavam nos meus artigos, outros, ainda, davam-me conselhos jornalísticos, recomendando-me temas mais agradáveis para conquistar os coraçõezinhos das leitoras em vez de assustá-las com advertências apocalípticas. Assim o tempo passou. Acabei-me recolhendo à minha insignificância, e hoje me dedico à função que me resta: analisar o mais objetivamente possível a agonia do Brasil, para uso dos futuros historiadores. Larguei a prática da medicina de urgência para dedicar-me ao estudo das patologias terminais. É um assunto inesgotável e, para quem observa o moribundo de longe, interessantíssimo. Se eu estivesse no Brasil, morreria de depressão. À distância em que estou, a melancolia do declínio se torna quase uma experiência estética.

Vou lhes dar só um exemplo de como a esquerda está adiantada na conquista de seus objetivos e a direita, ou o que resta dela, ainda nem começou a se dar conta do estado de coisas.

No fim dos anos 70, o presidente Jimmy Carter, fiel às diretrizes do CFR, decretou que a melhor maneira de combater o avanço do comunismo na América Latina era apoiar a “esquerda moderada”. Quem conhece a figura sabe precisamente o que ele queria dizer com isso: tratava-se de fomentar o comunismo alegando combatê-lo. Os brasileiros estão (até hoje) tão por fora do que acontece nos EUA, que a simples hipótese de um presidente americano pró-comunista ainda lhes parece absurda e fantasiosa. Falta-lhes o conhecimento de pelo menos setenta anos de história. Ainda nem se tocaram de que o braço-direito de Franklin D. Roosevelt em Yalta era um espião soviético, de que na gestão Truman o Departamento de Estado foi entregue a um advogado chiquíssimo cujo escritório representava oficialmente o governo da URSS nos EUA, de que todas as acusações de espionagem nos altos círculos lançadas pelo senador Joe McCarthy acabaram sendo confirmadas (com uma única exceção) e de que, enfim, o lugar mais seguro para os comunistas, depois da redação do New York Times, é o governo americano. É horrível conversar com pessoas que, precisamente por não saber nada, acreditam saber tudo. Principalmente quando elas têm dinheiro bastante para pagar consultores que as conservam na ilusão.

Graças à ação conjugada da ignorância e dos consultores, até hoje o empresariado brasileiro acredita piamente na lenda esquerdista de que os americanos deram o golpe de 64 e não sabem que a verdade é precisamente o contrário, que o governo de Washington não ajudou em nada a criar o regime militar mas sim foi o principal responsável pela sua destruição. “Fortalecer a esquerda moderada” significava, desde logo, eliminar a direita, radical ou moderada, como alternativa válida ao esquerdismo. A morte da direita nacional foi decretada por Jimmy Carter, pelo CFR e pelas fundações Ford e Rockefeller (peço que consultem os meus artigos http://www.olavodecarvalho.org/semana/060611zh.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/060605dc.html para esclarecimentos de ordem teórica). O programa foi cumprido à risca, com sucesso total. Como a política de Washington para com a América Latina não mudou substancialmente desde então (exceto parcialmente e por breve tempo na gestão Reagan), e como a atuação das fundações bilionárias em prol da esquerda continental se intensificou enormemente nas últimas décadas, a direita brasileira não só perdeu qualquer apoio americano residual mas ainda nem sequer se deu conta do tamanho dos inimigos que a cercam e estrangulam hoje em dia. 

A esquerda encobriu tão bem essas informações elementares, essenciais para a compreensão do que se passa no Brasil, que até agora elas são radicalmente ignoradas por quem mais precisaria delas. Refiro-me especialmente ao empresariado. Os militares, por sua vez, não desconhecem os fatos, mas, bem trabalhados por agentes de desinformação, interpretam tudo às avessas: enxergam os Carters e os Clintons como agentes do “imperialismo americano” (e não do globalismo anti-americano) e acabam sendo levados pela tentação de se aliar à esquerda para se vingar das humilhações sofridas pelas forças armadas nas últimas décadas. Os aplausos dos homens de farda à recem-constituída “Comissão de Defesa das Forças Armadas” – mais um ardil da esquerda inventado para integrar as nossas tropas na revolução chavista – mostra que o horizonte de consciência dos nossos militares, pelo menos os de comando, é tão estreito quanto o do empresariado.

Entre a esquerda e a direita, no Brasil, não há só uma monstruosa desproporção de forças: há um desnível de consciência imensurável. De um lado, informação abundante e integrada, intercâmbio constante, flexibilidade estratégica, conhecimento e domínio dos meios de ação. Do outro, fragmentos soltos mal compreendidos, amadorismo bem pago, opiniões arbitrárias e bobas voando para todo lado, desperdício das últimas energias em esperanças eleitorais insensatas e projetos “anti-corrupção” ideologicamente inócuos, facilmente absorvidos e instrumentalizados pela própria esquerda. Os esquerdistas absorveram profundamente o preceito de Sun-Tzu: conhecer o inimigo melhor do que ele conhece você. A esta altura, o general chinês, se consultado por algum direitista brasileiro interessado em “soluções”, responderia: “Não converso com defuntos.” Por que eu deveria ser menos realista que Sun-Tzu?

A direita não está somente esmagada politicamente sob as patas da esquerda. Está dominada psicologicamente por ela, ao ponto de repelir com ojeriza a simples hipótese de fazer algo de efetivo contra a adversária. Exemplo? Façam a lista de todas as ONGs, departamentos do governo, cátedras universitárias, empresas de produções artísticas e órgãos de mídia empenhados, há trinta anos, em investigar, divulgar e ampliar até dimensões extraplanetárias os crimes reais e imaginários da “direita”. A quantidade de dinheiro e mão-de-obra envolvida nisso é incalculável. Agora experimentem ir falar com algum empresário soi disant liberal ou conservador, e sugiram ao desgraçado fundar uma ONG, mesmo pequenininha, para informar o público sobre torturas e assassinatos de prisioneiros políticos em Cuba, sobre os feitos macabros das Farc e do MIR, sobre as conexões entre esquerdismo e narcotráfico. A resposta é infalível: ou o sujeito rotula você de extremista, de louco, de fanático, ou desconversa dizendo que não se deve tocar em assuntos indigestos, que é mais bonito circunscrever-nos a assuntos inofensivos de economia e administração. Se um dos lados tem o monopólio do direito de fazer a caveira do outro, e o outro ainda reconhece esse monopólio como legítimo e inquestionável, a briga já está decidida. A própria direita concede à esquerda o direito de matar, torturar, ludibriar, e ainda posar de detentora exclusiva das mais altas qualidades morais. Depois disso, que alternativa resta aos partidos direitistas, senão tornar-se subseções dos de esquerda? Vejam o PFL. Esse partido, que um dia chegou a ter alguma perspectiva de futuro, se autodestruiu mediante sucessivas alianças com a “esquerda moderada” tucana. Em vez de afirmar sua independência, de reforçar sua ideologia, de criar e expandir a militância, preferiu dissolver-se em troca de carguinhos que só lhe davam o poder de fazer o que o sócio mandasse. A experiência de mais de uma década não lhe ensinou nada. Continua ingerindo doses cada vez maiores do remédio suicida.

Querem soluções? Elas existem, mas os homens influentes deste país, tão logo acabem de ler a lista, já vão querer atenuá-las, adaptá-las ao nível de covardia e preguiça requerido para ser direitistas “do bem” ou então diluí-las em objeções sem fim até que se transformem nos seus contrários, mui dialeticamente.

Se querem saber, essas soluções são as seguintes:

1. Aceitar a luta ideológica com toda a extensão das suas conseqüências. Não fazer campanhas genéricas “contra a corrupção”, salvando a cara do comunismo, mas mostrar que a corrupção vem diretamente da estratégia comunista continental voltada à demolição das instituições.

2. Criar uma rede de entidades para divulgar os crimes do comunismo e mostrar ao público o total comprometimento da esquerda atual com aqueles que os praticaram. A simples comparação quantitiva fará o general Pinochet parecer Madre Teresa.

3. Criar uma rede de ONGs tipo media watch para denunciar e criminalizar a desinformação esquerdista na mídia nacional, a supressão proposital de notícias, a propaganda camuflada em jornalismo.

4. Desmantelar o monopólio esquerdista do movimento editorial, colocando à disposição do público milhares de livros anticomunistas e conservadores que lhe têm sido sonegados há quatro décadas.

5. Formar uma geração de intelectuais liberais e conservadores habilitados a desmascarar impiedosamente os trapaceiros e usurpadores esquerdistas que dominaram a educação superior e os órgãos de cultura em geral.

6. Formar e adestrar militância para manifestações de rua.

7. Durante pelo menos dez anos enfatizar antes o fortalecimento interno do movimento do que a conquista de cargos eleitorais.

8. Criar um vasto sistema de informações sobre a estratégia continental esquerdista e suas conexões com os centros do poder globalista, de modo a esclarecer o empresariado, os intelectuais e as Forças Armadas.

Essas são as soluções. Tudo o mais é desconversa. Ou os brasileiros fazem o que tem de ser feito, ou, por favor, que parem de choradeira. Que aprendam a morrer com decência. Se o Brasil cessar de existir, ninguém no mundo vai sentir falta dele. E se todos os brasileiros não inscritos no PT, no PSOL, na CUT e similares entrarem na próxima lista de falecidos do Livro Negro do Comunismo, talvez só eu mesmo ache isso um pouco ruim. Em todo caso, o fim do Brasil não vai abalar as estruturas do cosmos. Os esforços da direita nacional para a conquista da perfeita inocuidade estão perto de alcançar o sucesso definitivo. Quem em vida se esforçou para não fazer diferença, não há de fazer muita depois de morto.

Se escrevo essas coisas no jornal da Associação Comercial, faço-o com dupla razão, porque vejo o esforço dessa entidade para fazer alguma coisa com bravura num país onde todo mundo está procurando um lugarzinho para se esconder em baixo da cama e até a mulher do presidente já tratou de se garantir com um passaporte italiano. Assisto aos vídeos daqueles combatentes reunidos no seminário “Liberdade, Democracia e o Império das Leis”, e me pergunto: Cadê o resto do país? Cadê os donos da mídia, que lambem os sapatos dos comunistas aos quais entregaram suas redações? Cadê os banqueiros, que têm um orgasmo a cada novo aumento dos impostos e sabem que lucram com a destruição da liberdade, da segurança, das leis? Imaginam por acaso que trogloditas capazes de depredar o Congresso vão, miraculosamente, respeitar amanhã as sedes dos bancos privados? Cadê os homens da indústria, que estão de quatro, sem fôlego, e ainda insistem em bajular seus algozes? Cadê a Igreja Católica – ou a entidade que ainda leva esse nome –, autotransfigurada em órgão auxiliar do Foro de São Paulo? Cadê a tal “classe dominante”, cuja única ocupação nas últimas décadas é deixar-se dominar? Cadê os militares, cujo mais alto sonho de glória parece ser a aposentadoria sob as asas do Estado previdenciário socialista? Pergunto isso ao vento, e a resposta vem em outro verso de Manuel Bandeira:

“Estão todos dormindo, dormindo profundamente.”

A fossa de Babel

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 12 de junho de 2006

Os dois heroizinhos da semana foram os srs. Fernando Gabeira e Antonio Carlos Magalhães – o primeiro, por ter cumprido o dever banal de ser gentil com os seguranças que, para defendê-lo, tiveram braços quebrados e cabeças rachadas na invasão da Câmara; o segundo, por ter clamado por uma intervenção necessária, tardia e mais que improvável das Forças Armadas no circo sangrento da realidade nacional.

“Pobre do país que precisa de heróis”, dizia Brecht. Mas Brecht era um mentiroso cínico. Todo país precisa de heróis. Tanto precisa que, quando na hora do aperto não encontra nenhum, inventa logo algum simulacro patético e se apega a ele com aquela esperança histérica que nasce do matrimônio da covardia com a estupidez.

Heróis genuínos fazem-se desde dentro, na luta da alma pela verdade da existência. Antes de brilhar em ações espetaculares, têm de vencer a mentira interior e pagar, com a solidão moral extrema, o preço da sinceridade.

Os que não podem fazer isso aproveitam os momentos de desespero geral para dizer umas palavinhas oportunas que os façam parecer o que não são.

Os srs. Gabeira e Magalhães, como pais fundadores do próprio estado de coisas que denunciam, deveriam limpar-se do seu passado antes de apresentar-se como salvadores do presente. A Igreja, inspirada na sabedoria eterna, instituiu a confissão antes da comunhão. Os dois heróis de chanchada da Atlântida querem subir aos céus da glória nacional antes de descer aos infernos da sua miséria interior. Querem ser exaltados sem precisar humilhar-se.

O sr. Gabeira classifica a atual prepotência petista como uma traição aos belos ideais da aurora da sua vida. Que ideais eram esses, que segundo o seqüestrador e terrorista aposentado os anos não trazem mais? Eram os dos socialismo continental de Fidel Castro, modelados pelo regime cubano e espalhados no continente, sob a forma de bombas e assassinatos, pela Organização Latino-Americana de Solidariedade, OLAS, a primeira edição do Foro de São Paulo. Ninguém metido nisso podia dizer honestamente que lutava pela liberdade de expressão. Agora o sr. Gabeira se queixa de que o partido lhe impõe decisões prontas, não o deixa votar como bem entende. Mas em Cuba, no tempo em que ele desfrutava da hospitalidade e proteção do regime castrista, alguém podia votar como bem lhe parecia? Sob esse aspecto, o PT de hoje (como aliás a Cuba de hoje) não é o avesso dos sonhos de juventude do sr. Gabeira: é a sua realização. Quanto à violência física, o deputado verde não há de querer nos persuadir de que os arruaceiros do MST sejam páreo para a polícia secreta cubana. Na ilha onde o sr. Gabeira encontrou abrigo contra uma ditadura que matara duas centenas de terroristas armados, outra ditadura já havia matado, até então, mais de dez mil civis desarmados, mas ele a achava linda. Não é possível que umas dúzias de policiais mortos pelo PCC sejam uma realidade demasiado chocante em comparação com o modelo que ele então cultuava. Ademais, foram os companheiros de ideal do sr. Gabeira que começaram a preparar a bandidagem vulgar, na Ilha Grande, para o upgrade ideologicamente adestrado que a transfigurou em guerrilha urbana. Ele nunca disse sequer: “Não deveríamos ter feito isso.” Ao contrário, ele se orgulha dos feitos da sua geração. Como pode então sentir-se escandalizado de que, no devido tempo, eles dêem frutos? Resta ainda o aspecto da honestidade, da lisura. Fidel Castro, nos anos 70, já começara a amealhar, mediante acordos com narcotraficantes para que seus aviões atravessassem impunemente o espaço aéreo cubano, a fortuna que o colocaria na lista da Forbes entre

os homens mais ricos do mundo. Se Gabeira nunca se arrependeu de ter servido ao gangster máximo da América Latina, não é verossímil que se sinta tão envergonhado de haver contribuído para a ascensão de bandidinhos chinfrins como Delúbio e Valério.

Não, não há um pingo de sinceridade nas críticas do sr. Gabeira, como não há nas suas autocríticas. Há apenas o desejo de explorar a debilidade da memória popular, para espalhar a impressão de que a causa foi mais nobre que o efeito, de que os construtores da desgraça presente são, na verdade, suas pobres vítimas desiludidas ou seus denunciadores heróicos.

Isso não é, decerto, grande novidade. Desde a decapitação de Luís XVI o movimento revolucionário mundial vive de proxenetar seus próprios crimes e vexames, atribuindo-os às suas vítimas, a circunstâncias fortuitas ou à ação de traidores. Tantas confissões repetidas da incapacidade de governar o curso das coisas já bastam, é claro para impugnar a presunção do poder absoluto e infalível de forjar um futuro melhor. Mas o público que as ouve não parece relacionar umas com as outras: toma cada uma isoladamente, como se fosse a primeira, e investe de novo e de novo na serpente do Éden.

Quanto ao sr. Magalhães, o sentimento que inspira sua explosão de cólera não é o zelo do patriota: é o ressentimento do bajulador rejeitado. Em 2002, acossado pela hostilidade esquerdista, esmagado sob denúncias sem fim, antevendo o fim próximo dos seus dias de glória, o senador baiano, in extremis, apostou tudo na cartada do adesismo e da lisonja. Apostou e perdeu. De nada lhe adiantou lamber as botas daqueles que ainda na véspera o chamavam dos piores nomes. Desprezado e humilhado pelo objeto de suas afeições repentinas, recolheu-se a um silêncio rancoroso, preparando a vingancinha.

Quatro anos atrás, a denúncia da máquina de corrupção petista já era velha de mais de uma década, o MST já incendiava fazendas, as ligações entre a elite esquerdista nacional, a espionagem cubana, os narcotraficantes das Farc e o crime organizado local já eram uma tradição consolidada, meia dúzia de testemunhas do processo Celso Daniel já tinham sido providencialmente assassinadas e o sr. Luís Inácio Lula da Silva, como oficiante-mor dos ritos macabros do Foro de São Paulo, já era o coveiro da dignidade e da soberania nacionais. Por que achar tudo isso merecedor de aplauso na ocasião, e agora subir à tribuna do Senado, com ares de escândalo no rosto, para denunciar algo que então já era sabido e mais que provado?

A mudança de atitude do sr. Magalhães para com Lula não veio de repente, sob o impacto de uns socos e pontapés desferidos nos seguranças do Congresso. Veio logo depois das eleições, quando, frustrado seu intento de vencer por meio da adesão, o ex-governador da Bahia teve de descer do seu pedestal de árbitro supremo da política brasileira e, exatamente como eu previra num artigo publicado mais de um ano antes, recolher-se à modesta posição de líder provinciano, de onde nunca deveria ter saído.

Descendentes de Macunaíma e Tartufo, Magalhães e Gabeira são o Gordo e o Magro do grande épico do anti-heroísmo nacional.

Mas o que me irrita e deprime não é que tipos como esses brotem, como cogumelos, da decomposição geral. É a pressa obscena com que são aplaudidos por gente letrada, que deveria ao menos ter um pouco de memória, e se tornam modelos de conduta patriótica. Notem bem: eu disse que isso me irrita e deprime, não que me espanta. Há décadas venho observando a progressiva, firme e aparentemente irreversível descida de nível dos padrões de julgamento moral, intelectual e estético neste país, uma degradação – no sentido estrito e etimológico do termo – jamais observada em parte alguma e época nenhuma da história do mundo. Não faz muito tempo, um estrategista espertalhão, o sr. Herbert de Souza, foi tido como uma reedição melhorada de S. Francisco de Assis pelo mérito divino de haver conseguido transformar as instituições de caridade em instrumentos da propaganda esquerdista. Nas eleições de 2002 o jornalista Hélio Fernandes, que jamais se notabilizara pela ingenuidade crédula, escreveu, com toda a seriedade, que Lula era o salvador providencial anunciado na profecia de S. João Bosco. Falastrões bobocas como os srs. Leandro Konder, Emir Sader, Luís Eduardo Soares e Gilberto Felisberto de Vasconcelos (Gilberto Felisberto, vê se pode!) brilhavam no céu como astros supremos da inteligência. Simples testemunhas judiciais que diziam a verdade para evitar um processo de perjúrio eram canonizadas como pináculos da honestidade. E logo em seguida um cantorzinho como qualquer outro, cuja máxima originalidade era ter posado de collant ao lado de Roberta Close e respectivo maridão no baile gay do Scala, era consagrado por um cargo ministerial como epítome da “cultura nacional” – seja isso lá o que for.

Vendo tudo isso, eu não podia senão lembrar o hai-kai de Antonio Machado:

Cuán dificil es

Cuando todo baja

No bajar también.”

Pior que a degradação da realidade era a descida das próprias expectativas ideais. A medida de altitude máxima concebível pela imaginação popular ia baixando, baixando, para adaptar-se ao material disponível cada vez mais ordinário.

Não que as aspirações brasileiras tivessem algum dia sido muito elevadas. Sempre estivemos, sob esse aspecto, muito abaixo da média humana – ao ponto de não conseguir conceber os heróis, santos e sábios de outras épocas e culturas senão sob o prisma redutivo e caricatural que nos era próprio. Por isso considero Desenvolvimento e Cultura. O Problema do Estetismo no Brasil, de Mário Vieira de Mello (São Paulo, Nacional, 1958), e Psicologia do Subdesenvolvimento, de José Osvaldo de Meira Penna (Apec, 1972), os estudos mais úteis que alguém já escreveu sobre a índole da cultura nacional. O primeiro discerne, nas fontes européias que mais nos influenciaram, o predomínio do prazer estético sobre a consciência moral. O segundo mostra que esse prazer nem chega a ser estético: é lúdico e erótico. O brasileiro em geral, mesmo culto, não capta as exigências específicas do domínio moral, intelectual e religioso: decide as questões mais graves do destino humano pelo mesmo critério de atração e repulsa imediatos com que julga a qualidade da pinga ou avalia o perfil dos bumbuns na praia. Daí sua tendência incoercível de tomar a simpatia pessoal, a identidade de gostos ou a adequação às preferências da moda na classe artística como sinais infalíveis de alta qualificação moral. O sr. Gabeira, por exemplo, sai por aí de tanguinha e diz que fuma maconha. Logo, só pode ser “bom sujeito”. Magalhães cai no samba e é amigo das mães-de-santo. Por mais que seja odiado politicamente, permanece um tipo popular, íntimo de todos. Inversa e complementarmente, homens da mais elevada estatura moral, como Gustavo Corção ou o príncipe D. Bertrand, foram odiados e desprezados, menos pelo conteúdo de suas crenças políticas (as mesmas de Nélson Rodrigues, do qual todo mundo gosta) do que pela rigidez hierática do seu estilo de viver, incompatível com aquele mínimo de esculacho promíscuo que é preciso para ser admitido no panteão dos   “bons sujeitos”.

Agora imaginem o que pode acontecer a um país assim desguarnecido psicologicamente quando uma geração inteira de intelectuais ativistas, ambiciosos como a peste, decide sugar o pouquinho de valores morais ainda disseminados na sociedade como resíduos de épocas mais nobres e rebaixá-los a instrumentos de doutrinação comunista, senão a slogans de propaganda eleitoral. Aí é, como diria Raymond Abellio, “a fossa de Babel”: é a competição geral pela taça da baixaria universal, cada um tentando mostrar que é mais podre, mais sórdido, mais esculhambado que o vizinho, e chamando isso de ética, patriotismo e cultura. É assim que se explica o contraste, aqui assinalado em artigo anterior, entre o Brasil de agora e o dos anos 50. Naquela época, já era a meleca geral, mas nela algumas centenas de escritores e artistas ainda bracejavam para manter-se à tona, resguardando a dignidade da inteligência. Agora, o próprio sentido medicinal da cultura superior está perdido: os que ainda têm um pouquinho de estudo envergonham-se dele, querem ser “povão” como Lula, cortejar os afagos da massa, adaptar-se o mais rápido possível ao bunda-le-lê imperante, como o chama esse sobrevivente pré-histórico que é Bruno Tolentino.

Creio que com isso respondi, meio involuntariamente, à carta gentil e perplexa que recebi de um leitor gaúcho:

Já há bastante tempo venho lendo seus artigos na imprensa e acompanhando semanalmente a exposição de suas opiniões no blog que mantém na Internet. Todos os textos de sua autoria vêm sempre acompanhados de uma advertência ou de uma previsão futura. É tudo de uma clareza impressionante, a tal ponto de parecer que você possui bola de cristal, joga tarô ou sonha feito profeta, de tanto que acerta. Mesmo um simples título, como ‘Aguardem o pior’, publicado no JB de 6 de maio deste ano, (tendo em vista esse ataque ao Congresso) revela a sua capacidade de acerto sobre os acontecimentos futuros, embasadamente lúcida e probante. Mas algo me intriga… Por que, mesmo com toda essa clareza com que você expõe os fatos políticos que irão se desenrolar, ninguém lhe dá ouvidos ou leva seus artigos em consideração? Será que no Brasil existe um ódio satânico à verdade?

Se eu fosse um político de direita, ocultaria o que sei de Gabeira e Magalhães e trataria de tirar proveito tático de suas performances antipetistas. Mas não fui treinado para isso. Todo o adestramento que adquiri foi para perceber o curso dos fatos no meio da confusão e das mentiras, e expressá-lo da maneira mais clara e direta que pudesse. Nunca estudei para brilhar, para fazer carreira, mas para enxergar a realidade, talvez para superar o sentimento opressivo de ignorância e confusão que me atormentava na infância. Desde que me entendo por gente, repeti diariamente a prece de Maomé: “Senhor, mostra-me as coisas como são”. E, tão logo aprendi a me expressar como escritor, me dei conta de que, se sacrificasse minha inteligência verbal a outras finalidades, dizendo o que parecia conveniente e não o que enxergava, ela acabaria se perdendo por completo e eu seria mais um cabo eleitoral, mais um sedutor barato, mais um beletrista de partido. Logo na adolescência, uma leitura que me inspirou muito foi a página em que Julián Marías, na sua adorável Introducción a la Filosofía, mostrava a conexão essencial entre os três termos básicos da filosofia grega: theoréin, ón e logos – “ver”, “ser” e “linguagem”. O filósofo, originariamente, não se entendia como um autor de discursos complicados, mas como alguém que tinha uma função precisa: enxergar o ser e dizer as coisas exatamente como são. Quando li essa página, disse para mim mesmo: “É isso o que eu quero ser quando crescer” – o sujeito que sabe o que está acontecendo e o explica da melhor maneira que pode.  Não sei fazer outra coisa. Se minhas habilidades são menos prezadas que as dos Gabeiras, Magalhães, Sáderes e Gilbertos Felisbertos em geral, isso faz parte da própria realidade que estou tentando apreender, e não me impressiona mais do que o restante do panorama de miséria espiritual no qual o aplauso, se o recebesse, não poderia ter sobre mim senão o efeito de uma cusparada, e vice-versa.

É verdade que nem todo mundo reclama do que escrevo. Há quem goste. Mas uma boa parte gosta naquela mesma clave lúdica em que o conhecimento adquirido é uma forma de diversão, sem alcance sobre a vida prática e as decisões reais. Quando dou conselhos a essa gente, quase sempre me sinto como um médico que, tendo receitado uma medicação de emergência, depois a encontra esquecida num canto da sala onde a família presta sua última homenagem ao cadáver do paciente. Não me sinto um gênio incompreendido, não tenho nem um pouco de dó de mim mesmo: tenho dó daqueles a quem estendi o socorro dos meus conhecimentos e que só os aproveitaram como deslumbre passageiro. Não entenderam que eu não queria os seus aplausos, mas a sua salvação.

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