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O futuro da pústula

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 14 de agosto de 2006

“Ah! Les idéaux, les idéaux! Les intentions, les intentions!”

(SERGIU CELIBIDACHE, regente de orquestra, ouvindo em Paris a narrativa de novas brutalidades cometidas pelo regime comunista na sua Romênia natal.)


Circula pela internet – e acabo de receber de um amigo – uma lista dos crimes que envolvem de algum modo o PT e o sr. presidente da República. São 190. Cento e noventa. Com um curriculum delinqüencial trinta vezes menor, Fernando Collor já estava no olho da rua, com a família em frangalhos, odiado pela população, humilhado pela mídia.

A diferença ostensiva de tratamento, amostra singela da guerra assimétrica em escala local, é a prova mais evidente de que a “grande mídia” brasileira perdeu os últimos escrúpulos de veracidade e já não tenta nem mesmo fingir equilíbrio, imparcialidade, senso de justiça.

Mesmo depois de absolvido pela Justiça, anos após o seu impeachment, Collor continuou sendo tratado como um delinqüente, um inimigo da pátria, um réprobo. O sr. Luís Inácio, mesmo quando confessa abertamente seus crimes (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/050926dc.htm), ainda merece o respeito, a confiança e o carinho de todos.

Entre os formadores de opinião, mesmo aqueles que dizem fazer oposição ao establishment petista têm o raciocínio travado por um preconceito, um bloqueio íntimo, uma proibição absoluta de pensar mal da esquerda, do partido governante e sobretudo do sr. presidente da República.

O sintoma mais alarmante desse preconceito é que a própria lista mencionada acima, por mais impressionante que seja, não inclui o maior delito de todos, a fundação do Foro de São Paulo, gigantesca societas sceleris em que os grupos criminosos entram com o dinheiro do narcotráfico e dos seqüestros enquanto os partidos oficiais lhes oferecem a proteção de que precisam para circular pelo continente sem o menor risco de prisão, exceto na Colômbia, o último país da América Latina onde ainda existem leis.

O motivo dessa omissão é auto-evidente: a revolução cultural gramsciana foi tão bem sucedida que já não há outro critério de julgamento a que se possa apelar senão o conjunto de chavões esquerdistas que se impôs como eficiente Ersatz de moralidade. Por mais que a elite esquerdista se esmere em delinqüir, em mentir, em roubar, em matar, o máximo que se ousa fazer contra ela é acusá-la de ser infiel a seus belos ideais. O dogma da pureza de intenções tem de ser preservado a todo preço, mesmo diante das evidências incontestáveis de maquiavelismo cínico, de total ausência de sentimentos morais. Se até os inimigos do governo se apegam a essa última ilusão, é porque sentem que, se desistirem dela, o chão se abrirá sob os seus pés. Mas o chão já está aberto. Se ainda bóiam sobre o abismo, numa redoma de sonhos, é pela força dos vapores infernais que sobem do fundo. Isto não é um floreio de linguagem. É a fórmula exata de uma equação política na qual o anseio de fingir confiança na estabilidade de instituições  extintas, assumindo a forma paradoxal de um culto ao governante que as destrói, só ajuda a destruir ainda mais rapidamente o que resta delas.

Também não uso a palavra “paradoxo” a esmo. A lógica paradoxal não é uma lógica de maneira alguma, mas é uma psicologia. Ela não apreende os nexos entre proposições, mas as ligações irracionais que o cérebro sonso faz entre semelhanças aparentes. Quem a domina faz do cérebro alheio o que bem entender. Uma de suas aplicações mais notórias é o velho esquema comunista de conquistar o poder absoluto mediante a “pressão de baixo” articulada com a “pressão de cima”, aprisionando a vítima numa armadilha de incongruências onde ela se debate em vão, desorientada e inerme.  Os acontecimentos da semana passada ilustram isso de maneira exemplar. De um lado, o secretário da segurança pública de São Paulo acusou publicamente o governo federal de fomentar e utilizar a onda de crimes do PCC. O sr. presidente da República, se fosse inocente e honrado, processaria imediatamente o acusador. Mas ele se limita a resmungar, ao mesmo tempo que, oferecendo tropas federais ao governo estadual acossado pela violência, coloca o adversário na posição humilhante de aceitar socorro do bandido, ajudando-o a tirar proveito eleitoral da sua própria perfídia, ou a arcar com as culpas do mal que ele lhe faz. O petismo triunfante nem tem de lutar: basta-lhe deixar que o adversário se estapeie a si próprio.

O Brasil tornou-se uma pústula que se acomodou ao estado de pústula e se recusa obstinadamente a estourar.

Não cabe nem mesmo ver nisso a derrota do sistema, a fraqueza das instituições. O Brasil só tem uma instituição: a pústula. Ela é o sistema, ela é as instituições. Ela impera, ela manda, ela sobrevive a tudo, alimentando-se gostosamente da sua própria podridão e crescendo sem parar. Uma vitória nada impossível do sr. Alckmin nas eleições pode trazer um alívio temporário, mas esse alívio será inútil se a oposição não o aproveitar para limpar-se da mitologia esquerdista que a paralisa e organizar-se para uma luta ideológica em regra. Fora essa hipótese, na qual não acredito, o futuro está garantido: Todo o poder à pústula!

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Segundo o site Alerta Total, a presidência da República tem entre seus assessores de segurança ex-agentes da KGB soviética. Vocês sabem o que quer dizer “ex-agentes da KGB”: quer dizer máfia russa. A máfia russa não é uma máfia entre outras. É, desde pelo menos 1993, a central de comando do crime organizado no mundo (leiam Claire Sterling, Thieves’ World. The Threat of the New Global Network of Organized Crime, New York, Simon and Schuster, 1994). As ligações entre ela e o governo brasileiro são tão estreitas que, no dia seguinte da perda do seu mandato, o sr. José Dirceu já estava fazendo negócios com Boris Bereszowski.

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O ex-comandante do exército libanês, Charbel Barkat, informou à revista Evangelical News que o Hezbollah está usando aldeias cristãs, Ain Ebel, Rmeish, Alma Alshaab e outras, como base para lançamento de mísseis. “O Hezbollah está escondido entre a população civil e atacando por trás de escudos humanos”, afirmou Barkat.

Segundo a Convenção de Genebra, a culpa pelas mortes de civis em casos de bombardeio contra essas bases incumbe ao lado que usou os escudos humanos. Mas acima da Convenção de Genebra está o consenso jornalístico: haja o que houver, a culpa será de Israel, sempre de Israel.

Não é comovente ver como essa mesma mídia corre para proteger os judeus contra o perigo mortal de uma frase idiota dita por um cineasta bêbado?

 

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Há anos venho investigando um fenômeno da história das idéias na modernidade ocidental, ao qual dei o nome de “paralaxe cognitiva” e que defino como o deslocamento entre o eixo da experiência real de um filósofo e o eixo da sua construção teórica. Desde o início do estudo, cujos resultados comecei a expor nos meus cursos em 2001 e nos meus artigos de jornal em 2002, deixei claro que considerava esse fenômeno uma anormalidade, um desvio da inteligência humana, que nele se mostrava inferior ao padrão de exigência fixado pelos filósofos antigos. Entre os dois eixos aparecia um escotoma, um ponto cego, evidenciando uma grave falha de consciência que não seria de esperar nem mesmo em pessoas comuns, quanto mais em pensadores de grande prestígio. O resultado era que, na teoria, surgiam descontinuidades arbitrárias, abismos epistemológicos entre aspectos da realidade que na própria experiência pessoal do pensador respectivo se mostravam perfeitamente contínuos. O sintoma mais grotesco era o filósofo enunciar teorias gerais sobre a espécie humana que, miraculosamente, não se aplicavam à sua própria pessoa ou, pior ainda, eram incompatíveis com o fato mesmo de ele estar escrevendo o que escrevia.

Quando Kant, por exemplo, afirmava que só conhecemos as aparências fenomênicas, mas não as coisas em si, essa asserção era incompatível com a sua expectativa ingênua de que, partindo de um mero sinal sensível – as letras impressas –, o leitor chegasse a apreender o núcleo do seu pensamento. Se não podíamos saltar dos fenômenos sensíveis às suas próprias substâncias, muito menos conseguiríamos, através deles, captar a substância de uma intenção subjetiva significada por eles – um salto ainda maior do que o requerido para apreender numa aparência de elefante a realidade de um elefante. Se as palavras de Kant significavam alguma coisa, a teoria enunciada por elas não significava nada, e vice-versa. A filosofia de Kant, em suma, era incompatível com o fato de que podíamos lê-la nos livros do autor.

Platão, Aristóteles ou Agostinho jamais pagaram mico semelhante. Talvez por terem a noção clara de que a filosofia não era só uma disciplina escolar mas uma regra de vida, eles nunca raciocinavam contra os dados da sua própria consciência. Quando enfocavam um objeto, não o faziam só com a habilidade raciocinante, mas com a totalidade operante da sua consciência individual concreta. Dito de outro modo, falavam perfeitamente a sério. Quando Platão situava os seres humanos entre os anjos e as bestas, ele sabia que ele próprio estava lá. Quando Aristóteles definia o homem como animal racional, ele deixava claro que ele próprio era um animal racional. Quando Agostinho falava da inclinação natural do homem ao pecado, ele oferecia como exemplo os seus próprios pecados. A realidade da qual esses filósofos falavam era a mesma na qual viviam. Sua filosofia era uma reflexão sobre a experiência, não a construção hipotética de um mundo inventado que, por definição, não poderia conter a pessoa real do seu inventor. Não que nada inventassem. Mas, quando inventavam, não vendiam sua invenção como realidade. O que me surpreendeu foi descobrir a freqüência cada vez maior com que os filósofos modernos foram se permitindo faltar com essa obrigação, ensinando do alto de suas cátedras teorias com que, na sua vida real, não poderiam concordar de maneira alguma, mas pretendendo que seus ouvintes as recebessem como realidade pura.

A paralaxe assim definida é um fenômeno específico, perfeitamente distinto, identificável historicamente.

Por isso mesmo convém explicar que esse fenômeno não tem nada a ver com aquilo a que o filósofo esloveno Slavoj Zizek (creio que isto se pronuncia Tchitchék) dá o mesmo nome no seu recente livro “The Parallax View” (MIT, 2006), que ele próprio considera o seu magnum opus. Paralaxe, para Zizek – autor bem conhecido no Brasil desde a edição de duas das suas obras pela Boitempo –, é a descontinuidade entre uma coisa e a mesma coisa vista sob outro aspecto qualquer. Por exemplo, as regras monásticas de São Bento e a conta de telefone de um mosteiro beneditino. Ou o conteúdo deste artigo e os problemas matrimoniais do jornaleiro da esquina. Ou a filosofia de Slavoj Zizek e a fórmula da tinta com que seu livro foi impresso. Zizek acredita piamente que o exame de qualquer idéia sob um ângulo paralático tem o poder de revelar os pressupostos ocultos dessa idéia — um método que subentende a total indistinção entre as conexões lógicas e as curiosas coincidências. Entre os moleques da minha escola, chamávamos a esse tipo de investigação “o estudo da influência das barbatanas de tubarão nas marés”, mas creio que nisso ainda estávamos mais perto de alguma continuidade efetiva.

A paralaxe como a entende Zizek já era conhecida pelos antigos gregos, que a denominavam “metábasis eis allo guénos”, confusão de gêneros, e abandonaram o seu estudo por não querer dispersar neurônios com uma coleção infinita de semelhanças e diferenças irrelevantes. Aristóteles, com sua distinção entre os significados múltiplos do ser, e Leibniz, com a observação de que cada mônada contém em si a infinidade de suas diferenças para com todas as outras, disseram tudo o que havia para dizer de importante a respeito. Mas Zizek acredita ver em cada exemplo de paralaxe (no sentido dele) uma antinomia absoluta, insuperável dialeticamente, o que leva, em última instância, a admitir que a impossibilidade de fazer um gato empalhado miar é um problema filosófico tragicamente sério.

Para alívio geral da inteligência humana, no entanto, em muitos casos a descontinuidade alegada por Zizek não existe a não ser para quem imagina que ela existe. O exemplo mais lindo é o que ele chama de “paralaxe vaginal”. Sob esse nome ele designa a existência de um “abismo ontológico absoluto” entre a vagina considerada como canal do prazer e como conduto do parto. Esse abismo pode ser um problema para quem sinta dificuldade de ereção quando pensa em tornar-se pai, mas, nós, que já nos acostumamos com a idéia, não precisamos nos preocupar com ele de maneira alguma, de vez que até as prostitutas de rua se permitem ignorá-lo solenemente quando nos convidam a fazer nenéns. Na verdade, a síntese dialética entre os dois aspectos da vagina não somente existe como também – quem diria? — já foi descoberta pela ciência: chama-se “gravidez”.

No fundo, porém, acho a filosofia de Zizek perfeitamente razoável. Como o objetivo que ele busca declaradamente atingir com ela é a restauração do materialismo dialético, o apelo a um método desesperado é uma simples questão de lógica. E, como ele mesmo afirma que a única razão para adotar esse método é “a decisão política” de fazer isso, temos de admitir que ele está no pleno uso das suas garantias constitucionais. Nos tempos em que o materialismo dialético era doutrina oficial na Eslovênia, ele seria fuzilado se dissesse que para justificá-lo era preciso ir tão longe. Mas, numa democracia, é direito do cidadão fazer o que bem entenda com a sua própria filosofia.

O que não creio de maneira alguma é que exista descontinuidade ontológica absoluta, ou mesmo relativa, entre as doutrinas de Slavoj Zizek e o fato de que ele seja um dos filósofos prediletos do dr. Emir Sader, mentor da Boitempo. Ao contrário: eu diria até que eles foram feitos um para o outro.  r[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[[

O paradoxo esquerdista

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 7 de agosto de 2006

Vivenciar conscientemente o tempo histórico em que transcorre a nossa existência é um privilégio, um dever e um direito da inteligência individual, que não alcança sua plenitude senão absorvendo e integrando as tensões e mutações do ambiente maior em torno. Desde o início do século XX, esse direito foi negado a várias gerações de seres humanos, induzidos a viver uma história fictícia no mundo paralelo das militâncias ideológicas e a atravessar a existência em pleno estado de ignorância quanto aos fatores reais que determinaram o seu destino. A ilusão socialista não consiste somente num erro de previsão quanto aos objetivos finais. Se fosse assim ela seria apenas o final trágico de existências nobres. Mas a expectativa falsa quanto ao futuro já falsifica a vida presente: ela perpassa toda a biografia de cada militante, tingindo de farsa e auto-engano cada um de seus atos e pensamentos, mesmo os mais íntimos, pessoais e aparentemente alheios à luta política.

É só estudar as vidas de Marx, de Lênin, de Stalin, de Mao, de Guevara, de Fidel Castro, de Yasser Arafat (ou de seus acólitos intelectuais, os Sartres, Brechts, Althussers e tutti quanti) para entender do que estou falando: cada um desses homens que tiveram nas mãos os destinos de milhões de pessoas foi um deficiente emocional, cronicamente imaturo, incapaz de criar uma família, de arcar com uma responsabilidade econômica ou de manter relações pessoais normais com quem quer que fosse. Em compensação do aborto moral de suas vidas, criaram a idealização pomposa do “revolucionário” (isto é, deles próprios), como encarnação de um tipo superior de humanidade, adornando com um toque de estética kitsch a mentira existencial total.

Eles não são personagens de tragédia. A regra essencial da tragédia é a ausência de culpa. O herói trágico não pode estar abaixo das circunstâncias, não pode ser um perverso, um fraco, um idiota incapaz de arcar com a própria vida. Ele fracassa porque entra em choque com as exigências superiores de uma ordem cósmica invisível. Seu único delito é não ser sobre-humano numa situação que lhe impõe desafios sobre-humanos. Mas perceber a falácia intrínseca da promessa socialista não é um desafio sobre-humano (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060611zh.html ). É um dever elementar de qualquer inteligência média que se disponha a examinar o assunto objetivamente. Aqueles que fogem a esse exame, transferindo a partidos, a movimentos ou à “opinião pública” as responsabilidades da sua consciência individual, renunciam ipso facto à dignidade da inteligência e se consagram a uma luta obstinada e fútil contra a estrutura da realidade. Vai nisso uma mistura de vaidade adolescente, de revolta gnóstica e daquele orgulho satânico que é a compensação quase automática da covardia existencial. Tudo isso é lamentável, mas não é trágico: é grotesco. Não há tragédia no fracasso do socialismo: há apenas uma palhaçada sangrenta.

O modelo dos líderes e dos ídolos intelectuais é repetido, em série ilimitada, nas vidas de militantes, simpatizantes e “companheiros de viagem”, acabando por espalhar-se entre o público geral. O rancor sem fim contra pais e mães, a destruição da unidade familiar, o ódio às exigências morais das tradições religiosas, a busca desesperada de sensações por meio do consumo de drogas, a reivindicação pueril do “direito ao prazer”, a transformação do erotismo numa escalada de exigências egolátricas que começa no protesto feminista e culmina na apologia aberta da pedofilia e do incesto, a disseminação de técnicas pedagógicas que estimulam a delinqüencia infanto-juvenil – tudo isso é a projeção ampliada do estilo de vida dos “grandes revolucionários”, espraiada no tecido da sociedade ao ponto de já não reconhecer-se como tal e transfigurada num sistema de obrigações “éticas”, base de julgamentos, acusações, cobranças e chantagens.

O fundo de tudo é o ódio à realidade, a recusa de arcar com o peso da existência, o sonho gnóstico de transfigurar a ordem das coisas por meio da auto-exaltação psicótica e de truques mágicos como a “reforma do vocabulário”.

Não espanta que a política produzida por essas pessoas seja uma contradição viva, uma imensa engenhoca entrópica que cresce por meio da autodestruição e se inebria de vanglória na contemplação das próprias derrotas. Nenhuma exploração capitalista, por mais “selvagem” que a rotulassem, conseguiu matar de fome multidões tão vastas quanto as que pereceram durante a estatização da agricultura na URSS, o “Grande Salto para a Frente” de Mao Dzedong ou os experimentos socialistas em vários países da África. A “luta contra a miséria” continua sendo o principal pretexto moral do socialismo, mas a verdade é que a maior contribuição do socialismo à vitória nessa luta seria simplesmente cessar de existir. Do mesmo modo, o protesto inflamado contra qualquer violência anti-socialista é um persistente Leitmotiv do discurso de esquerda, mas nenhum regime direitista jamais matou, prendeu ou torturou tantos militantes esquerdistas quanto Stalin, Mao, Pol-Pot ou Fidel Castro. É uma simples questão de fazer as contas. Se os socialistas tivessem um pingo de respeito por seus próprios direitos humanos, voltariam para suas casas e deixariam que a boa e velha democracia burguesa os protegesse contra a tentação suicida de implantar o socialismo. 

Do mesmo modo, quando os esquerdistas começam a falar em “paz”, a prudência recomendaria que começassem a estocar comida no porão para a próxima guerra em que seus líderes os estão metendo naquele mesmo momento. O movimento pacifista encabeçado pelos partidos comunistas da Europa nos anos 30 foi um truque concebido por Stalin para dar tempo à Alemanha de se rearmar com a ajuda soviética e destruir a “ordem burguesa” do velho mundo (leiam o clássico Stalin’s War, de Ernst Topitsch). Milhões de franceses idiotas gritaram em passeatas e agitaram bandeirinhas brancas sem saber que isso era o passaporte para o matadouro.  Os tratados que, atendendo ao clamor de uma geração inteira de jovens enragés, puseram fim aos combates no Vietnã em 1972, deram um salvo-conduto para que os comunistas invadissem o Vietnã do Sul e o vizinho Camboja e matassem aí três milhões de civis – quatro vezes o número total de vitimas civis e militares da guerra.

Enganam-se aqueles que enxergam na novilíngua (newspeak) de George Orwell apenas um truque publicitário concebido por líderes maquiavélicos para induzir militantes estúpidos a aceitar a guerra como paz, a tirania como liberdade. Esses líderes maquiavélicos não têm nenhum controle sobre o processo, que, com raras e inevitáveis exceções, termina por arrastá-los e destruí-los no meio de suas vítimas. O paradoxo autodestrutivo está na centro de cada alma militante porque está na raiz mesma do movimento socialista, que nasce da aspiração gnóstica à supressão do mundo físico e se condensa na proclamação absurda de Hegel: “O ser, na sua indeterminação, é o nada” – uma confusão patética entre discurso e existência, destinada a ter as mais monstruosas conseqüencias intelectuais e históricas. O puro newspeak já marca sua presença ostensiva na fórmula de Engels, “A liberdade é o reconhecimento da necessidade”, que inspirou tantas auto-acusações falsas nos Processos de Moscou e cujo sentido último, de ironia verdadeiramente demoníaca, aparece com nitidez fulgurante no comentário de Bertolt Brecht: “Se eram inocentes, mais ainda mereciam ser condenados.” Brecht, aliás, foi aquele mesmo que resumiu com cinismo exemplar a essência da moral socialista: “Mentir em favor da verdade.” Experimente fazer isso e, é claro, você nunca mais vai parar de mentir.

Algumas regras usuais do leninismo ilustram esse cinismo na prática diária: “Fomentar a corrupção e denunciá-la” e “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é” resumem às mil maravilhas a história do nosso PT, que cresceu pelo discurso de acusação moralista ao mesmo tempo que montava uma máquina de corrupção de dimensões faraônicas, perto da qual os velhos políticos ladrões começam a parecer meninos de escola culpados de roubar chicletes.

Era inevitável que, com o tempo, a forma mentis autonegativa do movimento esquerdista se cristalizasse numa fórmula estratégica simples, ingênua até, que por sua simploriedade mesma fosse de aplicação fácil e lucrativa, reprodutível em escala mundial por simples automatismo.

Essa estratégia, cujo nome é hoje proclamado abertamente pelo sr. Hugo Chávez, é a guerra assimétrica.

Ela consiste, como explica Jacques Baud em La Guerre Asymétrique ou la Défaite du Vainqueur (Éditions du Rocher, 2003), em transformar as derrotas militares em vitórias políticas por meio de um ardil psicológico: outorgar a um dos lados, sob pretextos edificantes, o direito incondicional a todos os crimes, a todas as brutalidades, a todas as baixezas, e desarmar o outro por meio de cobranças morais paralisantes.

O que nem os praticantes nem os colaboradores passivos nem as vítimas desse ardil parecem perceber é que ele traz em si a prova definitiva da superioridade moral do adversário no mesmo momento em que acusa seus supostos crimes e iniqüidades. É claro: se o acusado não fosse moralmente sensível, consciencioso, escrupuloso, seria impossível inibi-lo mediante o apelo a seus deveres éticos. E, se o acusador fosse por sua vez aberto a esses mesmos deveres no plano da sua própria conduta, ele se sentiria igualmente travado por escrúpulos e não haveria assimetria nenhuma. É justamente o fato de dispensar-se das obrigações morais exigidas do inimigo que dá ao praticante da guerra assimétrica a vantagem estratégica da sua posição. É essencial para o sucesso desse ardil que o discurso de acusação seja feito sempre pelo culpado contra o inocente, pelo criminoso contra a vítima. O público e a totalidade dos colaboradores passivos usados como caixas de ressonância do moralismo indignado nem de longe se dão conta disso, mas o fato é que, quanto mais veemente a acusação, maior a malícia do acusador e mais irrefutável a prova de seus crimes. A assimetria consiste precisamente nisso.

Um exemplo didático, colhido da guerra entre Israel e o Hezbollah, aparece no contraste entre as atitudes dos dois lados no que diz respeito às vítimas civis. Enquanto na mídia ocidental os israelenses são condenados como monstros porque mataram acidentalmente trinta civis num bombardeio, em países islâmicos as matanças deliberadas de civis israelenses pelos mísseis do Hezbollah são comemoradas como atos meritórios. Se o leitor duvida, veja o documentário em http://pmw.org.il/bulletins_Aug2006.htm#b020806 . Os terroristas sabem que as nações ditas infiéis, pecadoras, têm sentimentos morais, enquanto eles próprios, os santos, os eleitos, não têm nenhum e não precisam ter nenhum. Sua moral consiste apenas na glorificação descarada dos próprios crimes – e é ela que lhes dá a vitória na guerra assimétrica.

Outros exemplos, ainda mais eloqüentes, estão nas fotos que ilustram esta página. Tiradas numa passeata de militantes palestinos em Londres, foram enviadas pela escritora Bella Jozef, uma judia brasileira residente na Inglaterra, a amigos seus em várias partes do mundo, e vieram parar na minha caixa postal. Enquanto na própria comunidade judaica muitos se sentem inibidos de desejar em público a vitória de Israel, preferindo fazer discursos tímidos e genéricos em favor da “paz”, elas mostram a verdadeira face da ideologia radical islâmica, que a mídia ocidental, colaborando na guerra assimétrica, esconde para dar feições mais humanas aos terroristas e criar no mínimo uma impressão enganosa de equivalência moral. As inscrições nestes cartazes dizem tudo. O que o “outro mundo possível” promete conscientemente à humanidade, sob os pretextos mais sublimes, é um novo Holocausto, de proporções colossais, e a liquidação de tudo o que conhecemos como liberdade e direitos humanos.

Em plena guerra assimétrica

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 24 de julho de 2006

Quando o sr. Hugo Chávez proclama que sua estratégia contra os EUA é a da “guerra assimétrica”, já não há como negar que esse conceito é o instrumento essencial para a descrição e compreensão do estado de coisas na América Latina. Se nossos comentaristas internacionais, analistas estratégicos, politólogos e tutti quanti continuam a usá-lo com parcimônia ou a abster-se por completo de usá-lo, não é só por preguiça mental: é porque um dos elementos fundamentais da assimetria é a desigual iluminação do quadro. Esses cavalheiros jamais desejariam ver o seu querido mentor bolivariano mostrado à mesma luz implacável e crua com que seus inimigos são exibidos e dissecados diariamente na mídia. Conceder a um dos lados o direito à penumbra protetora e obrigar o outro a um contínuo strip-tease ante a curiosidade sádica dos holofotes não é descrever nem analisar a guerra assimétrica: é praticá-la. Jornalistas, professores e similares, os “formadores de opinião” ou “intelectuais”, no sentido calculadamente elástico que Antonio Gramsci dá ao termo, são a vanguarda da revolução. Sua função não consiste em mostrar o mundo como ele é, mas transformá-lo naquilo que ele não é. Deformar propositadamente o quadro, portanto, é seu dever profissional número um.

Mas a palavra mesma “deformação” é um tanto enganosa. Deformar por meio do fluxo de informações uma realidade preexistente é uma coisa; outra bem diversa é criar praticamente do nada uma nova realidade constituída de puro fluxo de informações. Mentir em situações de guerra, para favorecer um dos lados, é tão antigo quanto a própria guerra. Mas mesmo o formidável desenvolvimento da técnica da desinformação ao longo de duas guerras mundiais e inumeráveis revoluções do século XX não dá uma imagem adequada do que hoje se passa. Em todos esses casos, os “formadores de opinião” desempenhavam um papel auxiliar: a parte substantiva dos conflitos desenrolava-se nos campos de batalha. Os protagonistas da narrativa bélica eram os militares, os guerrilheiros, os terroristas, os partiggiani. Jornalistas e tagarelas em geral formavam apenas o coro. Nas últimas décadas, as proporções inverteram-se. A integração mundial das comunicações e a conseqüente reorganização da militância revolucionária em “redes” de extensão planetária permitiram reduzir ao mínimo a função bélica das armas e ampliar ao máximo a da guerra de informações. O princípio subjacente a essa mudança é simples e baseia-se na regra clássica da arte militar que mede a eficácia da ação armada segundo a relação custo-benefício que ela guarda com os resultados políticos visados. Quanto mais ampla a repercussão política que se pode obter com um esforço militar reduzido, tanto melhor. Nesse sentido, batalhas inteiras da II Guerra Mundial, com centenas de milhares de mortos, foram politicamente menos relevantes do que alguns ataques terroristas comparativamente modestos realizados nas últimas décadas, pela simples razão de que neste caso havia meios de alcançar repercussão jornalística mais vasta e mais imediata, determinando decisões de governo que em outras épocas necessitariam de um estímulo sangrento muito mais eloqüente. Exemplos característicos foram a guerrilha mexicana de Chiapas, militarmente irrisória, que graças ao apoio instantâneo da mídia internacional conseguia transformar em vitória política cada nova derrota que sofria em combate, e o atentado à estação férrea de Madri, que do dia para a noite fez a Espanha mudar de lado na guerra contra o terrorismo. Napoleão, Rommel, Zhukov ou MacArthur jamais sonharam em obter resultados tão espetaculares com investimentos bélicos tão minguados.

O fenômeno ao qual estou me referindo recebe às vezes o nome de “guerra informática” (netwar). A bibliografia a respeito já é bem extensa e foi inaugurada em 1996 com a excelente monografia da Rand Corporation sobre a guerrilha de Chiapas, The Zapatista ‘Social Netwar’ in Mexico, que pode ser comprada ou descarregada gratuitamente em PDF no site http://www.rand.org/pubs/monograph_reports/MR994/index.html, mas nunca encontrei entre as elites brasileiras, seja intelectuais, empresariais, políticas ou militares, quem a tivesse lido. Menos ainda encontrei quem tivesse alguma consciência clara da ligação entre guerra informática e guerra assimétrica, embora essa ligação seja a chave mesma para a compreensão do quadro internacional hoje em dia. A fórmula do negócio pode ser enunciada numa frase: A guerra assimétrica não é outra coisa senão uma estratégia destinada a compensar a desproporção de força e capacidade militares por meio da guerra informática. Uma sugestão para quem deseje entender o funcionamento da coisa é ler a monografia da Rand junto com o livro de Jacques Baud, La Guerre asymétrique, ou la défaite du vainqueur, Paris, Editions du Rocher, 2003.

Uma vez que se entendeu a unidade de guerra informática e guerra assimétrica – e quem não entendeu está fora do mundo –, torna-se inevitável tirar dessa convergência de estratégias algumas conclusões óbvias:

1. Os alvos da guerra assimétrica são três e sempre os mesmos: os EUA, Israel e aquilo que, nesses países ou em quaisquer outros, ainda reste da civilização judaico-cristã. A “guerra cultural” é parte integrante da guerra assimétrica.

2. Se a identidade dos alvos é nítida e bem conhecida, a das forças atacantes permanece difusa e nebulosa ao ponto de que a noção mesma de sua unidade estratégica continua impensável até para o público mais culto. Para apreendê-la é preciso ter estudado a estrutura das “redes”, mapeando a circulação de dinheiro, de informações e de palavras-de-ordem entre governos, fundações, partidos políticos, ONGs, banditismo organizado e mídia no mundo inteiro. Elementos para esse estudo podem ser encontrados nos sites http://www.discoverthenetworks.org e www.activistcash.com, que já citei aqui, bem como na recém-inaugurada seção “Mapas Visuais” do jornal eletrônico brasileiro www.midiasemmascara.com.br. Quem quer que examine esse material com a devida atenção sabe que a existência de um eixo anti-americano, anti-israelense e anticristão formado pelos governos da Rússia e da China, pelas fundações globalistas bilionárias, pela grande mídia esquerdista chique, pela rede terrorista internacional e por milhares de organizações militantes espalhadas pelo mundo não é uma hipótese ou uma teoria: é um fato brutalmente real – o fato essencial do nosso tempo. Mas as informações que o evidenciam não saem, é claro, no “Jornal Nacional” nem na “Folha”, não são alardeadas desde o alto das cátedras universitárias e, enfim, não chegam de maneira alguma ao público maior. O resultado é que a hostilidade contra os EUA, Israel e o cristianismo, meticulosamente fabricada a um custo de muitos bilhões de dólares, parece surgir do nada, como manifestação espontânea dos belos sentimentos morais da humanidade – e qualquer tentativa de contestar essa hipótese logicamente insustentável e supremamente imbecil é rejeitada, mesmo por pessoas cultas, como “teoria da conspiração”. O sucesso psicológico da guerra assimétrica pode medir-se pela facilidade com que histórias da carochinha acabam parecendo mais verossímeis do que os fatos mais abundantemente comprovados.

3. A função da mídia e dos “formadores de opinião” em geral, no novo quadro estratégico, é bem diversa daquele papel meramente auxiliar que tiveram em outras ocasiões, incluindo nisto as vastas campanhas de desinformação e manipulação montadas pelo governo soviético desde a década de 30 até o fim da Guerra Fria (campanhas cuja amplitude permanece ainda desconhecida fora do círculo dos estudiosos, por ter sido revelada só a partir da abertura temporária dos Arquivos de Moscou). Se a orientação geral é inverter as proporções recíprocas do esforço bélico e da manipulação informática que o transmuta em resultados políticos, os militares e terroristas é que se tornam força auxiliar, enquanto o papel principal incumbe aos manipuladores da opinião pública. Uma vez que você percebeu isso, sabe que é uma ingenuidade suicida continuar interpretando a situação como se os únicos agentes revolucionários que importam fossem os terroristas e os militantes mais descarados a serviço de organizações subversivas e como se os formadores de opinião fossem apenas cidadãos inofensivos exercendo candidamente o seu direito à liberdade de expressão. Ao contrário: jornais, rádios, noticiários de TV, aulas, livros, espetáculos de teatro são hoje as principais armas de guerra, sua função essencial ou única é serem armas de guerra, e por isso mesmo o controle planejado do noticiário deixou de ser uma exceção para se tornar a regra. Um dos sinais mais alarmantes dessa mudança é o fato de que a exclusão de notícias indesejáveis, um recurso extremo antes usado com parcimônia até por censores oficiais, se tornou procedimento normal e rotineiro da maioria dos órgãos da chamada “grande mídia” (no Brasil, em todos eles, sem exceção). A supressão é tão vasta e tão sistemática que continentes inteiros da realidade contemporânea se tornaram invisíveis para o público. Notícias sobre torturas e assassinatos políticos em Cuba, na China, no Vietnã ou na Coréia do Norte, por exemplo, desapareceram por completo há mais de vinte anos, embora nesse período o número das vítimas nesses países não esteja abaixo dos dez milhões de pessoas. É só quando projetados sobre esse fundo vazio que epidódios inócuos como as humilhações ocasionais e incruentas sofridas por terroristas em Abu-Ghraib ou Guantánamo podem despertar atenção. É só nesse quadro totalmente deformado que centenas de mísseis lançados diariamente contra Israel podem parecer menos chocantes do que a tardia reação israelense. É só nesse mundo de fantasia que o simples pedido de uma congressista da Flórida para que o governo americano estude a possibilidade de alguma ação militar na Tríplice Fronteira pode parecer uma intervenção estrangeira mais perigosa, e mais insultuosa à dignidade nacional, do que a movimentação efetiva e constante, naquela área, de bandos de terroristas armados atuando em parceria estreita com quadrilhas de narcotraficantes, sob os olhos complacentes das nossas autoridades federais. É só no reino da mentira total que a presença amazônica de agentes do Conselho Mundial das Igrejas, um órgão acentuadamente pró-comunista e anti-americano, pode ser vendida ao público como prova de intervenção imperialista ianque. Não, já não se trata de censurar esta ou aquela notícia, mas de modificar radicalmente a estrutura e as proporções do panorama inteiro. Já não se trata de enganar o público quanto a um ou outro episódio em particular, mas de modificar sua percepção integral da realidade.

Por isso é que a “guerra assimétrica”, tão constantemente presente no mundo dos fatos, raras vezes ou nunca dá o ar da sua graça no universo de discurso da mídia brasileira. É que aí não se trata de falar da assimetria, mas sim de criá-la.

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P. S. – No meu artigo “A política do tigre”, deixei passar dois erros de concordância, frutos do cansaço e da sobregarga. Nenhum de meus críticos usuais, tão zelosos em contestar detalhes naquilo que escrevo, acusou qualquer dos dois. Condescendência fingida ou analfabetismo genuíno?

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