Posts Tagged Diário do Comércio

O mundo como jamais funcionou

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de dezembro

Tenho diante de mim um exemplar de How The World Really Works, “Como o Mundo Realmente Funciona”, de Alan B. Jones (Paradise, CA, ABJ Press, 1996), que é muito badalado entre os estudiosos americanos de hierarquias secretas e poderes globais como uma boa e confiável introdução ao assunto. O título é uma sinédoque: não se trata do mundo em geral, mas da esfera político-social apenas, encarada sob o prisma da pergunta clássica de Ortega y Gasset: “Quem manda no mundo?” A chave do seu sucesso é a simplicidade do projeto, que, sem aspirar à mais mínima originalidade, busca resumir doze livros considerados importantes nessa área de estudos: A Century of War, de F. William Engdahl (1993), Tragedy and Hope, de Carrol Quigley (1996), The Naked Capitalist, de W. Cleon Skousen (1970), The Tax-Exempt Foundations, de William H. McIlhany (1980), The Creature From Jekyll Island, de G. Edward Griffin (1994), 1984, de George Orwell (1949), Report From Iron Mountain, vários autores, editado por Leonard Lewin (1967), The Greening, de Larry Abraham (1993), The Politics of Heroin, de Alfred W. McCoy (1991), Final Judgement, de Michael Collins Piper (1995), Dope, Inc., pelos editores da Executive Intelligence Review do sr. Lyndon LaRouche (1978, reed. 1992), e Let’s Fix América, do próprio Alan Jones (1994).

o é preciso dizer que, com a possível exceção de 1984, um clássico literário que pode ser lido como pura ficção, e do material da E.I.R., que é divulgado também em boletins avulsos traduzidos em português, jamais encontrei entre líderes políticos, militares, empresariais ou midiáticos brasileiros quem houvesse lido esses livros. Também jamais encontrei um que não tivesse opiniões acabadas e taxativas a respeito do assunto, acompanhadas de uma tremenda indisposição de discuti-las.

Mas, mesmo supondo-se que alguma dessas criaturas onissapientes houvesse lido os doze, ou pelo menos o resumo aqui considerado, ainda assim estaria muito mal aparelhada para saber quem manda no mundo, pois a seleção feita por Alan Jones é deficiente sob muitos aspectos.

Desde logo, a escolha privilegia alguns títulos de segunda mão em vez das fontes essenciais. The Naked Capitalist, por exemplo, é apenas uma boa obra de polêmica que nada acrescenta às pesquisas volumosas e pioneiras do economista inglês Anthony Sutton. Sutton começou estudando a ajuda militar americana à URSS durante a II Guerra Mundial e acabou descobrindo que toda a indústria pesada soviética era uma fachada de papelão só mantida em pé pela força do dinheiro ocidental. Espantado, pôs-se a investigar por que os maiorais das finanças nos EUA haviam gastado tanto só pelo prazer de fornecer ao seu país “o melhor inimigo que o dinheiro podia comprar” (The Best Enemy Money Can Buy, título de um de seus melhores livros). De quebra, descobriu que ajuda igualmente generosa havia escoado para o III Reich, comprando não só um inimigo, mas dois. No intuito de resolver o enigma, passou a estudar as origens históricas da elite americana. Por pura sorte, vieram parar nas suas mãos os documentos originais de uma sociedade secreta fundada no século XIX, mas ainda em funcionamento, que reunia as famílias mais ricas e poderosas dos EUA. Sutton acrescenta à inflexível probidade científica um irritante comedimento britânico. Ele reproduz esses documentos em An Introduction to “The Order” (1983) com o máximo cuidado de ater-se aos fatos e evitar conclusões precipitadas, mas toda essa precauçãoo impediu que a publicação do livro pusesse um abrupto ponto final numa brilhante carreira universitária. Qualquer que seja o caso, esse grande estudioso, que viveu uma das aventuras intelectuais mais fascinantes do século XX, foi muito odiado, xingado e amaldiçoado, mas jamais contestado formalmente. O leitor interessado em saber quem manda no mundoo pode se dispensar de ler os livros dele.

The Tax-Exempt Foundations, de William H. McIlhany (1980), é apenas uma extensão de Foundations: Their Power and Influence, de René A. Wormser (1958), que tem a vantagem de ser praticamente um traslado direto das conclusões da comissão parlamentar de inquérito chefiada pelo deputado B. Carroll Reece, incumbida de averiguar a ajuda fornecida por fundações isentas de impostos, como Rockefeller, Ford e Carnegie, a movimentos subversivos e totalitários. Os depoimentos prestados à comissão evidenciavam, já naquela época, a simbiose macabra do comunismo com o grande capital, que duas décadas antes o economista austríaco Ludwig von Mises havia explicado como natural e inevitável, mas que nas cabecinhas dos nossos compatriotas mais falantes continua soando como uma absurdidade inaceitável, já que brasileiro só acredita em palavras, não em fatos, e quando os sentidos dicionarizados de duas palavras se contradizem ele não admite que os fatos correspondentes possam coexistir na realidade. Comprovando em toda a linha a teoria de von Mises (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060611zh.html), a Comissão Reece mostrou que o movimento comunista só existia nos EUA graças à generosidade de seus inimigos nominais. Ao longo dos cinqüenta anos seguintes, as fundações bilionárias não só continuaram vitaminando a subversão interna nos EUA, produzindo inclusive a resolução suicida do conflito vietnamita e o subseqüente genocídio no Vietnã e no Camboja, mas estenderam sua ajuda a praticamente todos os movimentos de esquerda no Terceiro Mundo e cobriram o planeta com uma rede de ONGs adestradas para promover “transformações sociais”. O modus operandi dessas ONGs é bastante uniforme. Primeiro, lançam uma moda cultural, subsidiando intelectuais para que a imponham nos meios universitários e jornalísticos como norma obrigatória e inquestionável, reprimindo por meio da chacota, da intimidação e do boicote profissional qualquer tentativa de discussão séria. Obtido o consenso da intelectualidade mais tagarela, o novo critério escolhido pela minoria iluminada contra as preferências óbvias da maioria da população é subitamente adotado pela totalidade da mídia como se fosse a tradução banal e improblemática da crença majoritária, tratando toda resistência como aberração mental isolada. Assim, por exemplo, no Brasil a população é maciçamente contra o aborto, mas a mídia nacional inteira fala dos anti-abortistas como se fossem tipos exóticos e anormais, teimosamente apegados a crenças antigas de há muito já abandonadas pela maioria saudável. Não é preciso dizer que, nessas condições, a imagem esquemática do mundo transmitida pelo jornalismo se transforma em pura inversão e fantasmagoria, criando um estado geral de alienação que, por si, é fonte de insegurança, conflitos sociais e desequilíbrios sem fim. A etapa final do processo é dar força de lei à opinião da elite iluminada, elevando da simples marginalização à criminalização explícita o tratamento dado aos descontentes. Da noite para o dia, a imagem postiça transforma-se em realidade oficial.

Esse é o processo legislativo geral e usual hoje em dia, transformando a democracia num pretexto nominal para a imposição tirânica das decisões de uma minoria ativista descarada e cínica. A imensurável cara de pau com que a ONU impõe o aborto como direito humano, penalizando toda oposição como crime comparável ao racismo, mostra que, na “democracia ampliada”, tão do gosto dos Bobbios, a coisa mais fácil do mundo é marginalizar e criminalizar a maioria.

Nos países do Terceiro Mundo, praticamente todas as novas leis que introduzem modificações sociais profundas vêm prontas da ONU ou diretamente das fundações bilionárias, e sua discussão pública é inteiramente pré-moldada para ater-se a aspectos gerais, formais e de princípio, evitando cuidadosamente tocar na questão substantiva do poder que as originou e das finalidades a que servem dentro da estratégia global de seus criadores. Mas como poderia alguém tentar discutir isso, ignorando por completo a bibliografia básica sobre a origem, formação e métodos do poder global? Comparem o número assombroso de pessoas que opinam publicamente sobre aborto, casamento gay, quotas raciais, etc., com a míngua ou inexistência de leitores das obras aqui mencionadas, e terão uma idéia aproximada do abismo epistêmico que se abriu entre as nossas elites falantes e omundo real. Não creio que fenômeno tão geral e profundo de ignorância dos fatores básicos que decidem os destinos de uma nação possa ser encontrado em qualquer outra época ou país. Ao eleger um semi-analfabeto para a presidência da República, o Brasil não fez senão oficializar um símbolo da sua opção radical e intransigente pelo desconhecimento da realidade.

The Politics of Heroin, de Alfred W. McCoy (1991), e Final Judgement, de Michael Collins Piper (1995) tratam do envolvimento de agentes dos serviços secretos americanos no tráfico de drogas. O enfoque é importante, mas escolhê-los como as obras mais representativas sobre a relação de poder global e narcotráfico é deformar o quadro com uma seletividade enviezada quase psicótica. Em 1993 a notável repórter do Reader’s Digest, Claire Sterling, já havia fornecido um retrato muito mais completo da situação no seu livro Thieves’ World, ao descrever a rápida arregimentação mundial das máfias dos diversos países sob o comando unificado russo. Só cidadãos muito atentos devem ter percebido, ao longo da última década, o fim das velhas guerras entre máfias internacionais. O fenômeno, inédito na História, mal foi comentado na grande mídia, mas sua importância não precisa ser enfatizada. A partir daí a expressão “crime organizado” passou a fazer mais sentido do que nunca. A internacional do crime repartiu o planeta em áreas e setores, dando uma estrutura racional à divisão do trabalho entre as quadrilhas maiores de delinqüentes nas várias regiões, mantendo em tudo uma ordem admirável e matando instantaneamente os rebeldes e recalcitrantes. Foi só isso que deu origem, por exemplo, à carreira espetacular do nosso Fernandinho Beira-Mar. O sujeito comprava armas russas no Líbano, trazia-as para o Paraguai, onde as trocava por duzentas toneladas anuais de cocaína vindas da Colômbia, as quais eram em seguida comercializadas no Brasil e nos EUA. Operações dessa complexidade, abrangendo quatro continentes, supõem uma estrita colaboração internacional que, é óbvio, não surgiu espontaneamente mas foi montada, a ferro e fogo, pela prepotência e habilidade dos russos, fazendo de Moscou a capital mundial do crime.

É claro, também, que isso não teria sido possível na base do puro improviso. Os russos preparavam-se para essa operação desde os anos 50, quando a KGB começou a treinar agentes para que se infiltrassem nas várias quadrilhas de narcotraficantes no Terceiro Mundo, na Europa ocidental e nos EUA. A idéia era dominar o mercado mundial, para criar uma multiplicidade de fontes locais de financiamento para os movimentos revolucionários, poupando ao governo soviético uma despesa considerável. Verdadeiras universidades do crime foram criadas em vários pontos do território soviético, elevando o narcotráfico às alturas de uma especialidade acadêmica. A operação, com base no testemunho direto de um de seus próprios articuladores principais, o general tcheco Jan Sejna, é descrita com minúcia no livro de Joseph D. Douglass, Red Cocaine: The Drugging of América And The West (1999), outro clássico imperdoavelmente omitido na lista de Alan B. Jones. Por volta de 1980 o sistema estava em pleno funcionamento. Sua implantação passou, é claro, pelo suborno e arregimentação de inumeráveis agentes e funcionários de diversos serviços secretos ocidentais, especialmente da CIA, o que se tornou ainda mais fácil quando, nas últimas semanas do governo Reagan, uma parte dos serviços dessa agência foi privatizada pelo mesmo presidente que se notabilizara como o demolidor máximo do “Império do Mal”, donde se conclui que os grandes homens também pisam no tomate. Foi a partir daí que começaram a pipocar os casos de envolvimento de agentes da CIA no narcotráfico internacional, fornecendo a McCoy e Piper o material para os seus dois livros. Estes tratam, portanto, só dos efeitos locais e parciais de um processo enormemente mais vasto e de raízes mais fundas.

Se fatos de tamanha envergadura nãoo quase nunca apresentados ou discutidos na “grande mídia”, deixando os povos portanto na posição de vítimas inermes de processos históricos invisíveis, também não é sem razão. O escritor russo Vladimir Bukovski, dissidente exilado que voltou à Rússia na condição de primeiro pesquisador não-soviético admitido nos Arquivos de Moscou, trouxe daí as provas de que praticamente todos os jornais da grande mídia “progressista” da Europa ocidental eram diretamente subsidiados pela KGB. O relato está no livro de Bukovski, Jugement à Moscou: Un Dissident Dans Les Archives du Kremlin (Paris, 1995). Quem não leu não sabe em que mundo vive, por mais que siga as lições de Alan B. Jones. Muitas das informações de Bukovski, acrescidas de outras ainda mais reveladoras, são confirmadas pelas duas obras igualmente indispensáveis escritas pelo historiador britânico Christopher Andrew em colaboração com o ex-agente da KGB Vasili Mitrokhin: The Sword And The Shield: The Mitrokhin Archive And The Secret History of the KGB (1999) e The World Was Going Our Way: The KGB And The Battle For The Third World (2005). Mitrokhin era o alto funcionário encarregado de fiscalizar a transferência dos documentos da KGB quando a organização mudou de prédio. Eram oito bilhões de dossiês, o maior arquivo de informações que já existiu no universo, o que explica que a mudança tenha levado dez anos, durante os quais Mitrokhin, planejando fugir para o Ocidente, copiou o que podia — uma fração infinitesimal — dos documentos mais importantes.

Por essas e outras é que me pareceu surpreendente que, no livro de Alan B. Jones, nominalmente incumbido de dar um panorama geral da estrutura de poder no mundo, a KGB só fosse mencionada duas vezes, de passagem, e a propósito de detalhes irrelevantes. Quem tome esse livro como guia básico para o conhecimento do tema ficará mesmo com a impressão de que o dinheiro anglo-americano é a “mão secreta” que move o mundo. Existem mãos secretas, é claro, mas são muitas e vivem se estapeando umas às outras, às vezes até a si próprias. Ninguém tem o controle hegemônico do processo histórico mundial, embora muitos busquem obtê-lo, não raro cometendo erros catastróficos que levam seus planos a resultados opostos aos pretendidos. Santo Agostinho dizia que os demônios têm orgasmos de prazer quando alguém exagera os seus poderes. Amadores incompreensivos, remexendo um tema que está infinitamente acima dos seus recursos intelectuais, fazem do estudo do poder secreto um verdadeiro sistema mitológico, ao passo que a historiografia acadêmica, em parte por ser quase toda dependente de subsídios que vêm das mesmas fundações bilionárias acima mencionadas, em parte por estar intoxicada por preconceitos ideológicos que enfatizam magicamente os fatores coletivos impessoais, em parte por lhe faltarem os instrumentos analíticos necessários para uma abordagem séria do fenômeno, acaba se dissolvendo em generalidades sociológicas e escamoteando a identidade dos agentes históricos concretos. (Tentei remediar essa situação nos meus cursos sobre “Quem é o sujeito da História?”, mas a sobrecarga de atividades jornalísticas e pedagógicas me impediu até hoje de dar um formato editorial aceitável a essas lições. Darei um resumo numa das próximas colunas.)

Um erro maior que se comete nessa área de estudos é hipertrofiar a importância do poder econômico. O dinheiro não é uma forma primária e essencial de poder: é um poder secundário e derivado, que depende da proteção de organizações legais ou ilegais investidas dos meios de matar. O poder empresarial e bancário pode dar origem a essas organizações, mas não pode controlá-las uma vez que elas adquiram vida própria, como aconteceu com a Ordem dos Assassinos, no Oriente Médio, ou com a KGB.

Omitida a KGB, o estudante fica persuadido de que os únicos centros de poder no mundoo o sistema bancário internacional e as “Sete Irmãs”, as maiores companhias de petróleo americanas. Engdahl, o primeirão da lista de Jones, chega a explicar todas as guerras do século XX como um efeito direto das decisões dessa elite. Mas essas decisões não bóiam sozinhas no ar, elas concorrem e se articulam com as de outras fontes de poder, de base não essencialmente econômica, entre as quais, é claro, a KHB. Para você fazer uma idéia das proporções aí envolvidas, basta saber que o maior empregador do mundo capitalista, o Walmart, tem um milhão e oitocentos mil empregados, seguido da China Petroleum com pouco mais de um milhão. Quantos funcionários ou agentes terceirizados pode a Standart Oil, por exemplo, liberar de suas funções na exploração e comercialização de petróleo para lhes delegar funções de espionagem, subversão e articulação política? A mesma pergunta vale para a Ford, o banco Rothschild, etc. Já a KGB, só na sua sede territorial, tinha quinhentos mil funcionários, e nenhum deles estava ocupado em perfurar poços de petróleo ou negociar empréstimos. Espalhados pelo mundo, os militantes do Partido Comunista, acionáveis a qualquer momento para operações clandestinas coordenadas de Moscou, colocavam à disposição da KGB não menos de trinta milhões de recrutas. Bancos e grandes empresas podem tentar manipular as situações por meio do dinheiro, mas nunca tiveram a seu serviço uma organização desse porte. A KGB, que era o centro e topo do governo soviético, como sua sucessora FSB é hoje na Rússia, foi simplesmente a maior força secreta que já existiu no mundo em qualquer época ou país. (As relações entre a KGB-FSB e a elite financeira ocidental são complexas e cheias de ambigüidades. Seu estudo constitui toda uma área à espera de maiores investigações.) Do ponto de vista financeiro, o orçamento da KGB-FSB era e é absolutamente ilimitado e livre de qualquer fiscalização externa, enquanto as grandes empresas ocidentais não têm um minuto de descanso sob o olhar suspicaz da mídia, dos políticos e do fisco. Fazer dos grandes banqueiros e empresas internacionais o centro único do poder mundial é elevar a desinformação às alturas de um culto religioso. Agora compare, por outro lado, a bibliografia sobre o poder econômico e sobre a KGB. Só para dar uma amostra, não existe um único livro sobre a atuação da KGB no Brasil, enquanto a produção editorial sobre a ação doestablishment anglo-americano nesta parte do mundo superlota as bibliotecas universitárias. Análoga desproporção, apenas nãoo acentuada, existe no mercado editorial americano e europeu. Afinal, a maior prova da eficácia de um poder secreto é seu sucesso em se manter secreto.

Enquanto a Zé-Lite dorme

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 4 de dezembro

Se tenho insistido no tema do desconstrucionismo, é para mostrar que toda tentativa de discussão democrática com intelectuais ou líderes esquerdistas, hoje em dia, é tempo perdido. Eles criaram instrumentos verbais altamente sofisticados para escapar de toda cobrança racional e impor seus desejos e caprichos sem ter de dar satisfações senão à sua vontade de poder. Mais ainda: inventaram um sistema de pretextos infalíveis para sentir que, ao fazer isso, são as melhores pessoas do universo, contra as quais só monstros de egoísmo e crueldade poderiam objetar alguma coisa. Pior: transmitiram essas atitudes e sentimentos a duas gerações de estudantes universitários, que hoje ocupam os espaços fundamentais na educação, na mídia, na administração pública, na justiça e, é claro, numa infinidade de ONGs e “movimentos sociais”.

Hegel dizia que aquele que nas discussões públicas se abstém de razões e apela à autoridade secreta da sua “voz interior” é um inimigo da espécie humana. Extinta a possibilidade de aferição objetiva, suprimidos os instrumentos de prova, reduzido o debate a um confronto de vontades, a única autoridade que resta é a pura habilidade de impressionar, de assombrar, de seduzir, de hipnotizar. E para isso vale tudo: desde o sex appeal até a intimidação autoritária, passando pela ostentação de títulos e cargos, a forma mais tosca e besta do argumento de autoridade, característica do bacharelismo provinciano que volta à moda meio século depois de parecer definitivamente superado. Uma vez conquistada a adesão estudantil pelo fascínio vulgar de charlatães bem-falantes, a autoridade se transfere a gerações inteiras de jovens enragés que saem da faculdade imbuídos do dever de “transformar o mundo” por meio da mentira e do engodo.

Por toda parte, esses “agentes de transformação social” se empenham em fazer com que as engrenagens da sociedade funcionem ao contrário das suas finalidades nominais, criando o caos em lugar da ordem, a revolta e o ódio em vez da paz, a malícia em vez da confiança. Em suma, caro leitor, você está rodeado de ativistas cínicos, capazes de mentir e trapacear ilimitadamente no interesse do seu grupo político. Se você abre um jornal, não pode ter a certeza de ler fatos em vez de balelas interesseiras. Se tem uma demanda na justiça, não pode estar seguro de que não cairá nas mãos de um comissário do povo, decidido a julgar não segundo as razões do processo, mas segundo a classe social das partes. Se envia a esposa nervosa a um consultório de psicoterapia, não sabe se ela será tratada dos seus males ou envenenada de ódio ao marido. Se envia os filhos à escola, sabe que eles voltarão de lá tatuados e viciados, admirando bandidos e abominando as leis, falando alto, dando ordens ao pai e à mãe, indignados com a proibição das drogas, cheios de revolta sacrossanta contra a instituição familiar que os sustenta e protege.

E ainda há quem, no meio disso, acredite poder confiar nas leis e instituições, no funcionamento normal da sociedade, na sanidade do processo democrático.

A classe empresarial, os políticos pragmáticos e os analistas econômicos têm uma dificuldade quase intransponível de compreender o alcance político de modas culturais que, de início, parecem limitadas a um círculo de professores excêntricos e estudantes amalucados. Quase um século depois de Lukács, Gramsci, a Escola de Frankfurt e o próprio Stálin haverem descoberto que a cultura, e não a economia, é a força que move o processo revolucionário, esses observadores vesgos ainda acreditam que existe um abismo entre o mundo “prático” e a esfera dos interesses “abstratos”, “estratosféricos”, da intelectualidade acadêmica e artística. Estratosféricos são eles, habitantes do mundo da Lua. Quando o general Golbery do Couto e Silva inventou a teoria da “panela de pressão”, pontificando que a atividade repressiva do Estado deveria limitar-se à oposição armada, deixando as universidades e as instituições de cultura livres como válvula para o escoamento das pressões subversivas, mal sabia ele que, àquela altura, os esquerdistas mais avisados já haviam abandonado o projeto guerrilheiro e depositado todas as suas esperanças na “revolução cultural” gramsciana: a única arma de que precisavam era, precisamente, uma válvula. Ao optar implicitamente por não resistir ao comunismo em geral, mas só ao comunismo “violento”, o governo lhes forneceu essa arma. Um pouco de estudo teria bastado para mostrar ao sapientíssimo general que a “via pacífica” para o comunismo era nada mais que o adiamento da violência crua para depois da tomada do poder por meios anestésicos. Mas, no calor da luta contra as guerrilhas, a imagem de uma futura esquerda “pacífica” e “legalista” pareceu à elite militar uma alternativa roseamente desejável. Em poucos anos, essa esquerda, nascida das conversações gramscianas na USP, estava montada e em pleno funcionamento. Não houve, na “direita”, quem não celebrasse o seu advento como um formidável progresso da democracia. O general Golbery foi o pai da ascensão petista, restando apenas saber se o foi por pura presunção e ignorância ou se houve da sua parte um pouco de cegueira voluntária, alimentada por ambições nasseristas de absorver a esquerda continental num esquema militar nacionalista e anti-americano. Hoje sabemos que o esquema militar é que foi absorvido, subjugado e posto a serviço dos planos do Foro de São Paulo. Isso era perfeitamente previsível, mas não a quem alimentasse, como o general, a ilusão de poder manipular e “civilizar” o movimento comunista. A “queda” da URSS e a embriaguez triunfal dos liberais no início dos anos 90 levaram essa ilusão às últimas conseqüências, fazendo com que as “elites” (ou a Lite) celebrassem o sucesso do PT como uma promessa de melhores dias para a democracia capitalista. Frases como “o comunismo acabou” e “Lula mudou” adquiriram então o prestígio de dogmas inabaláveis, e quem sugerisse que as coisas não eram bem assim se tornava objeto de chacota da parte de banqueiros, empresários, políticos “de direita”, capitães da mídia e altos oficiais militares – a pura nata da Lite.

Hoje, quando esses senhores, de rabo entre as pernas, já entrevêem no colaboracionismo servil e trêmulo a sua única chance de sobrevivência, sinto-me até um tanto constrangido de lhes explicar, de novo, que os estrategistas da revolução comunista, por mais que lhes pareçam meros intelectuais avoados, de paletó sebento e barba por fazer, são um pouco mais espertos que eles. Um “homem prático” vive de olho nas cotações da bolsa e ri da sugestão de que algo tão abstrato e academicamente rebuscado como uma teoria literária possa ter alguma periculosidade política. O intelectual comunista aproveita-se dessa falsa sensação de segurança para fazer da teoria literária um instrumento de ação capaz de virar o mundo do avesso.

Vou contar, em linhas gerais, como isso aconteceu.

Na década de 30, Stálin estava persuadido de que a única função da arte e da literatura era a propaganda revolucionária. Parida às pressas pela Academia Soviética, a teoria estética do “realismo socialista” impregnou massas de escritores e artistas em todo o mundo comunista. Só não chegou a tornar-se um dogma universal porque, no Ocidente, Stálin reservava às celebridades das letras e artes uma função mais sutil. Queria usá-las como instrumentos de camuflagem: deviam abster-se da filiação explícita ao Partido Comunista (e portanto também às suas opções estéticas) e, conservando uma fachada de neutralidade, colocar o seu prestígio a serviço de causas específicas de interesse do Partido nos momentos decisivos. Isso deu aos escritores esquerdistas da Europa e das Américas a margem de liberdade que lhes permitiu escapar do realismo socialista e continuar fazendo literatura em sentido estrito. Por toda parte, poetas, romancistas e críticos – a começar pelo príncipe da crítica marxista, Georg Lukács em pessoa e seu fiel escudeiro Lucien Goldmann – desprezavam a estética oficial soviética e faziam a apologia dos cânones literários que construíram a grandeza de Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac e Dostoiévsky. Lukács escreveu páginas notáveis em defesa do “grande realismo burguês”, alegando que a representação fiel da realidade histórica era uma força revolucionária em si, sem necessidade de concessões à propaganda. Até em congressos do Partido a hostilidade ao realismo socialista acabava se mostrando, às vezes de maneira explosiva. Referindo-se ao chefe da escola, o nosso Graciliano Ramos exclamava: “Esse Jdanov é um cavalo.” Assim a literatura foi salva do embrutecimento ideológico. Os anos 30-50 acabaram sendo uma época de criatividade literária incomum. No Brasil, então, nem se fala. Nunca tivemos tantos escritores bons e ótimos ao mesmo tempo.

Mas foi uma salvação provisória. Aqui e ali, discretamente, intelectuais iluminados se davam conta de que a preservação dos cânones do realismo e, de modo geral, a concepção da literatura como conhecimento, eram incompatíveis com a meta escolhida pelo próprio Lukács: a destruição da civilização ocidental. Puseram-se então a trabalhar na idéia de que a literatura não podia conhecer a realidade, já que – segundo entendiam — a própria realidade era uma invenção literária. Para dar a essa idéia um arremedo de consistência, apelaram a um formidável arsenal de recursos extraídos da língüística, da antropologia, da lógica formal, da “teoria crítica” frankfurtiana e das filosofias de Nietzsche e Heidegger. Em menos de uma década a proposta havia evoluído para a formulação radical do desconstrucionismo: não existe realidade nem conhecimento, nenhum discurso tem significado, o significado é livremente inventado por “comunidades interpretativas” que aí projetam como bem entendem seus desejos e interesses, portanto tudo o que há para fazer é reunir a comunidade e ensinar-lhe os meios de usurpar o sentido dos textos em benefício próprio.

De súbito, a doutrina de Stálin-Jdanov era restaurada em todo o esplendor da sua brutalidade, mas agora resgatada da sua pobreza teórica originária e paramentada com todos os adornos da sofisticação acadêmica. O desprezo pela verdade, a legitimação da mentira politicamente útil, o cinismo das interpretações forçadas, enfim a prostituição total das atividades intelectuais superiores aos interesses de grupos de pressão tornaram-se não só legítimos e recomendáveis, mas intelectualmente elegantes e moralmente obrigatórios. Na mesma onda, as distinções entre o verdadeiro e o falso, entre cultura e incultura, entre o esteticamente superior e inferior, foram condenadas como instrumentos de opressão e substituídas pelo culto de qualquer bobagem politicamente oportuna que se apresentasse. Toni Morrison foi igualada a Shakespeare, as novelas de Gilberto Braga celebradas como portadoras da “universalidade de um Balzac” por ser bem aceitas em todos os mercados. Considerar Bach superior a Gilberto Gil tornou-se algo assim como um crime de racismo.

Não é preciso dizer que o primeiro resultado foi a pura e simples desaparição da grande literatura. A segunda metade do século XX não gerou nada que se comparasse nem de longe a um Thomas Mann, a um Proust, a um Jacob Wassermann, a um Hermann Broch, a um Robert Musil, a um Antonio Machado, a um Bernanos, a um Mauriac. Nas nações do Terceiro Mundo, as sementes da cultura superior em gestação foram impiedosamente arrancadas. O país que cinqüenta anos atrás tinha Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Annibal M. Machado, Marques Rebelo, José Lins do Rego, agora lê Luís Fernando Veríssimo e acha o máximo.

Se os efeitos se limitassem à esfera das letras, já seriam suficientemente perversos. À retração da criatividade literária corresponde, pari passu, a degradação da linguagem pública, a progressiva incapacidade de expressar a experiência real e, conseqüentemente, a fixação dos debates em estereótipos alienados, prenunciando a ascensão da loucura geral como alternativa política.

Mas, como não poderia deixar de ser, os procedimentos interpretativos da escola desconstrucionista e similares logo foram estendidos para as ciências humanas em geral, afetando todas as esferas do debate público. Aí os efeitos foram muito além do mero sucesso propagandístico. Ampliaram-se até à destruição de todo princípio de ordem e racionalidade na vida social. Avaliar, mesmo sumariamente, a extensão do dano, ocupará muitos artigos nas próximas semanas. Vou aqui dar um único exemplo, que depois explicarei melhor.

Um dos setores onde a influência desconstrucionista penetrou mais fundo é o Direito. Aí se evidencia como uma teoria literária pode ter conseqüências devastadoras sobre toda a ordem social. Juízes, promotores e advogados são hoje formados sob a crença dominante de que as leis, como qualquer outro texto, não têm nenhum significado originário objetivamente válido. Toda significação que elas possam ter é mera projeção de fora, vinda dos setores politicamente interessados. Só o que resta portanto é organizar uma “comunidade interpretativa” e impor a sua leitura dos textos legais por meio da gritaria, da chantagem, da intimidação. De um só golpe, a Justiça inteira se transforma em instrumento de subversão revolucionária. Para virar de cabeça para baixo a ordem pública, não é preciso mudar as leis: basta inverter-lhes o sentido.

Nos EUA, o alucinógeno desconstrucionista chegou até à Suprema Corte, transformando-a numa frente de combate contra a religião, os valores americanos tradicionais e a própria Constituição. Amparado em teóricos acadêmicos da reputação de Ronald Dworkin e Stanley Fish, o juiz William Brennan, ex-presidente da Suprema Corte, proclama abertamente que tentar ater-se ao significado originário da Constituição é “falsa humildade”: o verdadeiro sentido do texto constitucional tem de ser livremente inventado conforme as pressões dos grupos abortistas, feministas, gays etc. É isso o que o ex-vice-presidente Albert Gore entende por “Constituição viva”. A profundidade da subversão judicial ocorrida nos EUA já não pode ser medida. Um pequeno indício é que, em plena guerra contra o terrorismo islâmico, crianças de escola pública, em vários Estados, são obrigadas a ouvir horas e horas de louvações à religião muçulmana, sendo ao mesmo tempo proibidas de expressar em voz alta sua fé cristã, sob pena de expulsão ou de medidas policiais mais graves. É a guerra psicologia ao contrário, movida não contra o inimigo mas contra o próprio país, sob a proteção da Suprema Corte.

O sucesso do fracasso

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de novembro

Todos os “movimentos sociais” atuantes no Brasil, sem exceção, bem como as entidades que os representam e as leis baseadas nas suas reivindicações, nasceram da seguinte maneira:

1. Com dez, vinte, trinta anos de antecedência, os intelectuais esquerdistas de maior peso discutem e elaboram os conceitos e a linguagem das novas idéias destinadas a revigorar e ampliar o movimento revolucionário mundial.

2. Em seguida essas propostas passam à alçada das grandes fundações bilionárias e organismos internacionais, onde o segundo escalão intelectual – técnicos, planejadores sociais, publicitários, ativistas — lhes dá o formato operacional para transmutá-las em propostas concretas.

3. Essas propostas são então espalhadas pelo mundo por meio de uma infinidade de livros, artigos, conferências, filmes, espetáculos de teatro, sempre subsidiados pelas mesmas fontes, mas apresentados como iniciativas independentes, de modo a dar a impressão de que a mudança planejada provém de uma fatalidade histórica impessoal e não de uma ação organizada. Ao mesmo tempo, desencadeia-se um conjunto de operações preventivas destinadas a neutralizar, reprimir e, se necessário, criminalizar toda resistência.

4. Só então as propostas chegam aos países do Terceiro Mundo, por meio de ONGs e agentes pagos que as inoculam primeiro nos círculos de intelectuais mais ativos, que as retransmitem aos estudantes e à mídia, não raro apresentando-as como suas criações pessoais e originalíssimas, de modo que a multidão dos aderentes não tenha a mais mínima idéia da existência de um empreendimento internacional organizado por trás dos efeitos políticos que se seguem inexoravelmente.

5. A última etapa é a produção desses efeitos, por meio dos agentes políticos – militância organizada, agentes de influência, legisladores – que transformam as propostas em leis e instituições.

Na última etapa, as origens intelectuais das propostas, bem como sua base internacional de sustentação financeira e organizacional, já se tornaram praticamente invisíveis para a população em geral, de modo que toda a discussão a respeito, destinada a fazer com que a adoção das novas medidas pareça surgir do fluxo normal e espontâneo da vida democrática, se atenha às definições nominais e aos aspectos mais periféricos das questões respectivas, sem possibilidade de examinar seja o esquema de poder que articulou a seu belprazer a situação de debate, seja as implicações históricas de longo prazo que advirão das transformações pretendidas. Quando essas conseqüências se revelam catastróficas, a culpa pelo erro que as produziu já está tão disseminada pela sociedade que toda tentativa de rastrear e responsabilizar os autores das propostas iniciais, caso ainda ocorra a alguém a tentação de empreendê-la, começa a parecer rebuscada e artificiosa como uma “teoria da conspiração”.

A primeira condição para a existência de um movimento conservador ou liberal é a formação de equipes de estudiosos qualificados para fazer esse rastreamento e expor aos olhos da multidão o processo inteiro da “transformação social”, para que ela perca seu prestígio místico de fatalidade histórica ou vontade divina e possa ser discutida às claras como qualquer outro projeto de poder.

Infelizmente, as forças econômico-sociais cuja sobrevivência a longo prazo depende do sucesso de um movimento liberal-conservador – principalmente a classe empresarial que é a concorrente número um dos planejadores e burocratas iluminados – têm um horizonte de visão histórica muito restrito e dificilmente compreendem a necessidade de uma estratégia de longo prazo. Concentram-se na defesa dos seus interesses imediatos reais ou imaginários e, sem perceber, acabam colaborando com os planos mais vastos e gerais da esquerda, seja por meio de concessões conscientes que lhes parecem muito espertas na hora, seja por meio de resistências pontuais arbitrárias e inconexas que sempre podem ser absorvidas e neutralizadas no quadro maior da estratégia esquerdista, seja por meio da adaptação passiva, lenta e quase imperceptível à linguagem e à cosmovisão de seus inimigos.

O domínio do tempo histórico das transformações político-sociais tornou-se monopólio da elite esquerdista internacional. O mero fracasso econômico das propostas socialistas não diminui em nada o poder hipnótico que exercem sobre a multidão nem o controle hegemônico da esquerda sobre o processo histórico, porque esse fracasso é apenas um fato, e os fatos não se transformam por si em elementos de persuasão quando não integrados como símbolos num universo imaginário, isto é, quando não trabalhados dentro de um plano cultural abrangente e de longo prazo, precisamente o que falta por completo às forças liberal-conservadoras.

O próprio preconceito economicista que se apossou dessas forças, induzindo-as a esperar que a fraqueza econômica do socialismo se transmute automaticamente em fracasso político-cultural do movimento esquerdista, já mostra o quanto o imaginário liberal-conservador foi infectado e moldado pela cosmovisão esquerdista, hoje “onipresente e invisível” como a desejava Antonio Gramsci.

Desse preconceito, em simbiose com o imediatismo político, nasce o profundo desinteresse que os liberais e conservadores têm pelo debate interno de idéias na esquerda. Como o conteúdo desse debate lhes parece falso e alucinatório e por isso supremamente tedioso, não percebem que por trás dessa falsidade e alucinação há um método e uma estratégia. Nem muito menos que a falsidade louca de uma idéia jamais foi obstáculo ao seu sucesso político. Enquanto os liberais e conservadores discutem economia, criando esquemas saudáveis e racionais que jamais serão levados à prática, os esquerdistas, a salvo de qualquer fiscalização crítica da parte de seus adversários, inventam as mentiras e alucinações com que dominarão a consciência das multidões e conduzirão o processo histórico para onde bem entendam, com a facilidade com que um menino-pastor puxa um búfalo de uma tonelada pela argola do nariz.

Vou dar aqui um único exemplo de doutrina alucinatória que jamais vi despertar o interesse dos liberais e conservadores brasileiros e que por isso mesmo consegue praticamente dominar o ambiente universitário, cultural e midiático nacional, influenciando o curso dos acontecimentos e impondo derrotas humilhantes à racionalidade econômica liberal-conservadora.

Refiro-me à escola “desconstrucionista” de Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Paul de Man, Gianni Vattimo e outros, que torna inviável toda idéia de veracidade objetiva e instaura em seu lugar o primado da ficção militante.

Como em artigos vindouros pretendo abordar aqui vários fenômenos da política brasileira que jamais teriam podido produzir-se exceto num ambiente intelectual dominado por essa escola, a utilidade essencial de conhecê-la se tornará mais evidente nas próximas semanas.

Usei o termo “escola”, mas os próprios desconstrucionistas o rejeitam. Também não aceitam que o desconstrucionismo seja definido como uma filosofia, um método de interpretação, um projeto acadêmico ou qualquer outra coisa. Não aceitam definição nenhuma, o que já coloca o recém-chegado na obrigação de escolher entre embarcar às cegas na aventura sem nome ou, ficando de fora, não poder criticá-la sem ser acusado de incompreensão leiga. À entrada do templo desconstrucionista, portanto, um cartaz em letras de fogo já anuncia: “Ame-o ou deixe-o.” Mas deixá-lo significa excluir-se a si próprio da comunidade acadêmica e ser considerado um ignorante ou reacionário, um escravo do universo lingüístico pré-desconstrucionista e, portanto, um virtual objeto de desconstrução. Não há terceira alternativa entre desconstruir e ser desconstruído – e esta última hipótese não significa apenas ser objeto de análise corrosiva, mas de destruição social e profissional.

A desconstrução parte da premissa lingüística de Ferdinand de Saussure de que a língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra é a diferença entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo, Jacques Derrida, joga essa premissa contra as pretensões científicas da própria lingüística, ao concluir daí que, se a língua é um sistema de diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um “significado” externo. Tudo o que o ser humano diz, escreve ou pensa é apenas a exploração das possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com “realidade”, “fatos” etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento humano é constituído de “textos” ou “discursos”, mas, como não há nenhuma realidade externa pela qual esses discursos possam ser aferidos, não tem sentido falar de discursos “verdadeiros” ou “falsos”. Não existe representação da realidade. Todo discurso é livre invenção de significados.

Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido nietzscheano, afirmando que, se o dircurso não é representação da realidade, é expressão da “vontade de poder”. Mas isso não quer dizer que por trás do discurso exista um “eu” manifestando sua vontade de poder. A idéia de um eu estável e autoconsciente é ela própria uma representação da realidade. Como nenhuma representação da realidade pode funcionar, o eu também não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu”. Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o desconstrucionista vai agora separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a “différance”, com “a”, termo criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o sujeito como autor do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto assunto do discurso. Em português ele não precisaria inventar esse trocadilho medonho, pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de “adiamento”, que, por aquela mistura de pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a usar, preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a si mesmo. Separado do objeto pela circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela diferição, ou, se preferem, “différance” (como diria Dirty Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência falando de outra ausência.

Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu” e outra ficção chamada “objeto”. O motivo que produz a necessidade de criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”. Portanto a função de todos os discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o poder, a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade nasce do conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em geral, a liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o próprio poder.

No início alguns marxistas ficaram alarmados com a nova filosofia, que, ao negar a realidade, punha em xeque toda pretensão de conhecer as leis objetivas do processo histórico. Mas Derrida logo conseguiu acalmá-los, mostrando que, se o desconstrucionismo era ruim para a teoria marxista, era bom para o movimento revolucionário, dando-lhe não só os meios de corroer toda a cultura ocidental por meio da negação do significado em geral, mas também de afirmar o seu próprio poder ilimitadamente: livre das coerções da realidade objetiva, imune portanto a qualquer cobrança na esfera dos argumentos racionais, ele poderia impor sua vontade por todos os meios ficcionais possíveis, enquanto seus adversários, travados por escrúpulos de realidade e lógica, observariam inermes a sua ascensão irresistível.

Todo o empreendimento desconstrucionista é, de fato, uma resposta prática ao apelo formulado pelo marxista húngaro Georg Lukacs, ao perceber que o grande obstáculo ao comunismo não era o poder econômico da burguesia, mas dois milênios de civilização judaico-cristã. “Quem nos livrará da civilização ocidental?”, perguntava angustiado Lukacs. Quem logo se apresentou como primeirão da fila foi o nazista Martin Heidegger. Destruição – Destruktion – é a palavra-chave de tudo o que ele fez na vida: desde escrever e depois desescrever Ser e Tempo até aplaudir a ascensão do Führer e recusar-se a esclarecer o assunto depois da II Guerra, deixando seus fãs numa dúvida perturbadora que dava à sua filosofia ainda mais sex appeal. A essência da filosofia de Martin Heidegger consiste em abolir o Logos, o verbo divino que faz a ponte entre o pensamento humano e a realidade externa, e colocar em seu lugar a “vontade de poder” do Führer. Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o “logocentrismo”. A convergência entre seus esforços filosóficos e os objetivos de Georg Lukacs foi o pacto Ribbentropp-Molotov da filosofia. Mas Heidegger, afinal, não criou como substitutivo para a civilização judaico-cristã nada além da filosofia de Martin Heidegger, que só serve para quem a entende. Derrida et caterva transmutaram essa filosofia num projeto acadêmico indefinidamente subsidiável e num movimento político do qual milhões podem participar sem entender coisa nenhuma do que estão fazendo. Tinha de ser mesmo um sucesso triunfal.

Ainda mais triunfal foi essa ascensão no Brasil, onde o temor reverencial à moda acadêmica francesa, o prestígio sacral do discurso incompreensível e a síntese de pedantismo e ignorância que constitui a forma mentis inconfundível da nossa classe universitária erigiram o desconstrucionismo num culto fanático que não apenas repele contestações mas nem mesmo admite a existência delas.

Um traço peculiar do desconstrucionismo, que no Brasil foi acentuado até suas últimas conseqüências, é que, ao negar a existência da verdade, ele não abdica de atacar a “mentira”. Quando ele o faz perante um público que desconhece a nuance específica que o termo tem para um desconstrucionista, a platéia acredita que ele está defendendo a “verdade”. Mas, no círculo interno, sabe-se que não existe verdade. “Mentira”, pois, é apenas aquilo que se opõe à ficção preferida do grupo desconstrucionista, à sua “vontade de poder”. Inversa e complementarmente, o termo “verdade”, ao ser usado pelo desconstrucionista perante os leigos, significará para estes uma representação adequada da realidade comprovável, mas, entre os iniciados, sabe-se que isto não existe e que o emprego do termo se destina apenas a explorar as ilusões do público para induzi-lo a submeter-se às ilusões e desejos do grupo ativista. Nesse sentido, pode-se e deve-se estigmatizar como “mentira” os fatos mais amplamente comprovados e impor como “verdade” qualquer mentirinha boba conscientemente inventada para vitaminar a “vontade de poder” do movimento.

Objetivamente falando, o valor inteiro do projeto desconstrucionista depende da premissa saussuriana de que o sentido de uma palavra é apenas a diferença entre ela e todas as outras. Essa premissa é falsa. Suponham a frase: “Jacques Derrida morreu.” A diferença entre Jacques Derrida e todos os outros seres dotados de nomes humanos é a mesma quer ele esteja vivo ou morto. A diferença entre morrer e estar vivo, por sua vez, é a mesma quer você esteja vivo ou morto. Mas, se Jacques Derrida morreu, a diferença entre ele e todos os outros continua intacta, enquanto ele, o indivíduo Jacques Derrida, não será mais visto por aí dando palestras e encantando milhões de idiotas. Ou a expressão “Jacques Derrida” significa algo mais do que a diferença entre ela e todas as outras, ou tabnto faz Jacques Derrida estar morto ou vivo. Do mesmo modo, uma frase como “Não há mais comida” é a mesma – e suas diferenças em relação a todas as outras são as mesmas — quer você a diga como puro exemplo verbal ou como expressão de um estado de fato. A diferença neste último caso está na presença ou ausência física de comida, que não é a mesma coisa que a “ausência do objeto” na mera formulação saussuriana do significado como diferença entre uma frase e todas as demais. Esta diferença é a mesma com comida ou sem comida. A falta de comida não é bem isso.

Reparando em detalhes como esse, o próprio Jacques Derrida foi obrigado a moderar as pretensões do seu método, reconhecendo a existência de “indesconstruíveis” e, no fim, admitindo que entre eles estava – que raiva, pô! – o próprioLogos. Desconstrua você o que desconstruir, estará sempre, pelo simples fato de pensar e falar, dentro de um quadro de referências balizado pelo Verbo Divino ou por seus reflexos na tradição metafísica. No fim das contas, a Destruktion, como o projeto nazista, pode destruir muitas coisas em torno, mas se destrói a si mesma – e àqueles que embarcaram na sua proposta – em escala infinitamente maior. Proclamando que a liberdade consiste em negar a verdade, o desconstrucionista só exerce sua liberdade de viver da ficção e sentir um gostinho de poder até o momento em que a morte substitui todas as ficções por uma verdade “indesconstruível” e a vontade de poder pela impotência definitiva dos cadáveres. Expressão modernizada da revolta gnóstica contra a estrutura da realidade, o projeto desconstrucionista está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo pode ser um sucesso político-social, na medida em que arraste na sua voragem milhões de idiotas hipnotizados pela atração do abismo.

Veja todos os arquivos por ano