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O inimigo é um só

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 8 de janeiro de 2007

O marxismo não começou com Marx e não nasceu de nenhum estudo científico da economia. Tudo o que Karl Marx viria a pensar e dizer – com exceção do pretexto materialista-dialético e das estatísticas que ele falsificou dos célebres Blue Books do parlamento britânico – já estava nas doutrinas dos heresiarcas messiânicos desde o século XIV. Tudo: a luta de classes, a revolução, a socialização dos meios de produção, a ditadura do proletariado, a missão da vanguarda revolucionária. Até as idéias de Lênin e de Gramsci já estão ali claramente antecipadas.

John Knox, John Huss, Thomas Münzer e outros “profetas” das origens da modernidade não são apenas precursores do movimento revolucionário mundial: são seus criadores. As homenagens entre ambíguas e reticentes que lhes são prestadas de tempos em tempos por tal ou qual intelectual esquerdista só servem para inflar as contribuições da esquerda mais recente, diminuindo a daqueles pais fundadores mediante o artifício de jogá-los para trás numa série histórica supostamente ascendente em cujo topo se encontra sempre, é claro, o autor da homenagem.

A idéia central da revolução messiânica pode-se resumir em quatro pontos: (I) a humanidade pecadora não será salva por Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por ela mesma; (II) o método para alcançar a redenção consiste em matar ou pelo menos subjugar todos os maus, isto é, os ricos; (III) os pobres são inocentes e puros, mas não entendem seu lugar no projeto da salvação e por isso têm de colocar-se sob as ordens de uma elite dirigente, os “santos”; (IV) o morticínio redentor gerará não somente a melhor distribuição das riquezas, mas a eliminação do mal e do pecado, o advento de uma nova humanidade.

Uma heresia não é “outra religião”: é, por definição, uma oposição interna, nascida de dentro do próprio cristianismo, em geral mediante algum enxerto exótico que distorce completamente a mensagem originária e lhe dá os sentidos mais estapafúrdios que se pode imaginar. (1) Não é de estranhar, pois, que a evolução subseqüente do movimento revolucionário fosse marcada por uma permanente tensão entre a fé herética e a negação de toda fé, entre o pseudocristianismo e o anticristianismo, entre a ambição de destruir o cristianismo e o desejo de conservar algo dele para poder parasitar a sua autoridade. Esse jogo dialético confunde o observador leigo, que iludido pelas diferenças aparentes perde de vista a unidade profunda do movimento revolucionário e acaba não raro servindo a uma das suas subcorrentes acreditando piamente servir a um propósito contra-revolucionário, conservador ou até mesmo cristão ou judaico no sentido estrito dos termos.

Extinta a epidemia das revoluções messiânicas, a segunda onda do movimento revolucionário assume a forma do anticristianismo e antijudaísmo explícitos. Os iluministas do século XVIII não só pregaram abertamente a eliminação dessas duas fés tradicionais, mas não hesitaram em inventar contra elas as mentiras mais aberrantes, achando isso lindo e divertindo-se a valer. As polêmicas anticristãs de hoje em dia parecem até primores de polidez quando comparadas à virulência da invencionice setecentista (2). Cada vez mais parece confirmar-se a tese do abade Antonin Barruel, exposta na sua Histoire du Jacobinisme (1798) , de um plano urdido entre Voltaire, d”Alembert, Diderot e o imperador Frederico II da Prússia para uma vasta campanha de difamação destinada a cobrir a Igreja de infâmia por todos os meios inescrupulosos disponíveis.

O caso de Diderot é particularmente ilustrativo. Em A Religiosa ele conta a história de uma pobre moça mantida num convento contra a vontade. A imagem abominável das freirinhas prisioneiras, posta em circulação por ele e por outros iluministas muito antes da publicação póstuma do livro em 1796, tornou-se um símbolo condensado de todos os crimes que o furor da propaganda anticristã atribuía à Igreja. Na voragem da Revolução de 1789, o símbolo transfigurou-se em crença literal. Muitos dos revolucionários que invadiam conventos, matando monges e freiras a granel, juravam piamente estar fazendo isso para libertar as virgens encarceradas que, segundo imaginavam, deviam superlotar os porões dos claustros. Quando oitenta abadias, monastérios e casas de religiosas de Paris já tinham sido invadidos e muito sangue derramado, a Assembléia Constituinte, perplexa, recebeu a notícia de que por toda parte as freiras e noviças tinham sido unânimes em proclamar a fidelidade ao seu estado, mesmo quando já iam subindo a escada da guilhotina. Tal era o espírito das “prisioneiras”.

Diderot, embora morresse cinco anos antes da Revolução, não pode no entanto ser facilmente desculpado pelos efeitos criminosos de um ódio que ele instigou conscientemente. Não o pode, sobretudo, porque ele sempre esteve informado de que não havia e não podia haver nenhuma prisioneira nos conventos, de que todas as freiras estavam ali por vontade própria, inclusive aquela em que ele se inspirou para escrever o romance, a irmã Delamarre, do convento de Longchamps. Foi tudo uma falsificação premeditada.

Durante muito tempo, o mundo inteiro acreditou na versão de Diderot, que afirmava ter em seu poder a documentação completa do caso Delamarre. De fato, o dossiê estava nas mãos dele, mas desapareceu logo depois de publicado o romance. Reencontrado em 1954 pelo pesquisador George May, sua leitura mostra que Diderot estava ciente dos seguintes fatos:

1) Em Paris havia quatro tribunais, eclesiásticos e civis, para julgar solicitações de dispensa da carreira monástica, e a regra geral era atender a todos os pedidos.

2) A seleção das monjas era rigorosíssima. O empenho da Igreja era livrar-se das falsas vocações, e não retê-las à força.

3) Exatamente ao contrário de uma prisioneira do convento, a irmã Delamarre era a porteira, tinha as chaves e podia entrar e sair quando quisesse.

4) O único processo aberto pela srta. Delamarre era uma pendência de espólio com uma parente. Para receber a herança, um título nobiliárquico, a freira tinha de deixar a ordem religiosa. Mas logo depois, tendo desistido de disputar o legado, ela voltou alegremente ao convento.

Diderot sabia de tudo isso, e a correspondência entre ele e seu amigo Jacob Grimm mostra que o romancista “estourava de rir” (sic), com a falsificação meticulosa que ia armando em torno da história. Divertia-se não só com a alegria feroz de caluniar, mas chegava ao requinte de uma crueldade mental muito mais direta. Ao marquês de Croismarre, cristão piedoso que entre lágrimas lhe escrevia preocupado com a sorte da moça, Diderot respondia com invencionices inquietantes, enfatizando os sofrimentos da infeliz no claustro e degustando até o fim o prazer de manter angustiado o pobre homem. Não espanta que Diderot fosse o escritor predileto de Karl Marx, outro sociopata sádico.

Outros documentos encontrados por Georges May, posteriores ao falecimento de Diderot, mostram que a irmã Delamarre morreu trinta anos depois do romancista, ainda como porteira do convento, após ter enfrentado bravamente, ao lado de suas irmãs, os comissários da Revolução. A única opressão que ela sofrera viera pelas mãos dos inimigos da Igreja. (3)

Se eu fosse enumerar e analisar todas as mentiras inventadas pelos iluministas contra os cristãos e os judeus, um ano inteiro de edições do Diário do Comércio não bastaria para comportá-las. Mas o fato é que essas mentiras atravessaram os séculos, impregnaram-se profundamente na imaginação popular, ressurgindo sob novas e variadas formas e servindo para legitimar o massacre dos cristãos na Rússia e dos judeus na Alemanha. Intelectuais e artistas de grande prestígio não hesitam em colaborar com esse crime hediondo. Tudo sobre o caso Delamarre já era arquiconhecido dos historiadores quando, em 1970, o filme de Jean-Luc Godard, La Religieuse, renovou o efeito do símbolo odioso inventado por Diderot.

Mas – voltando ao argumento central –, o advento dos jacobinos ao poder ocasionou a mudança de pólo da tensão dialética: da propaganda anticristã passou-se ao esforço aberto de criar um simulacro de cristianismo para consumo das multidões revolucionárias. A retórica do Terror imita de perto a dos pseudoprofetas messiânicos: a idéia do apocalipse terreno, a condenação radical do capitalismo, a purificação do universo pela matança dos ricos, a missão privilegiada dos “santos”, o retorno da humanidade a uma era de pureza originária – tudo aí ressurge, mas agora com o Contrato Social de Rousseau como texto sagrado em vez dos Evangelhos. Cada vez mais a imitação caricatural do ethos cristão adquire autonomia, desligando-se do sentido patente da mensagem de Cristo e parasitando sentimentos morais profundamente arraigados na população cristã para torná-los instrumentos de legitimação do terrorismo estatal, sob a inspiração – como escreveu Thomas Carlyle – “do quinto e novo evangelista, Jean Jacques, conclamando todos e cada um a que emendassem a existência pervertida do mundo”.

Luciano Pellicani, no seu estudo sobre Revolutionary Apocalypse. The Ideological Roots of Terrorism (London, Praeger, 2006), que pretendo comentar em detalhe numa das próximas colunas, observa: “Assim a elite revolucionária, agindo na base do diagnóstico-terapia dos males do mundo contido na ‘verdadeira filosofia’, vem a assumir o papel típico do Paracleto na tradição gnóstica: só ele sabe o que é bom para a cidade.” Fundada nessa autoridade onissapiente, a salvação tem de assumir a forma do morticínio redentor. Robespierre deixa isso bem claro: “O governo popular… é ao mesmo tempo Virtude e Terror. O Terror nada mais é que a justiça severa e inflexível. É portanto uma emanação da Virtude.” Pellicani conclui: “Esse conceito da redenção da humanidade exige uma sociedade organizada como se fosse um convento militarizado.” A fórmula ressurgirá nos padres-guerrilheiros da teologia da libertação e nos projetos mais recentes do “arcebispo” Hugo Chávez.

Mas, muito antes disso, o pêndulo da revolução oscilará uma vez mais para o outro lado. Findo o ciclo jacobino, com o advento do império napoleônico, da Restauração e da democracia burguesa, as novas fórmulas da ideologia revolucionária, com Marx e Bakunin, fazem um upgrade do anticristianismo, transfigurando-o em ateísmo militante. Karl Marx professa “odiar todos os deuses” e define o ateísmo como “a negação de Deus, por meio da qual se afirma a existência do homem”. Deus, para o marxismo, inspirado nesse ponto em Feuerbach, surge da auto-alienação dos poderes do homem projetados num céu metafísico – como se o homem tivesse criado o céu e a terra e depois se esquecido disso, transferindo as honras para uma entidade inexistente: teoria suficientemente idiota para parecer sedutora a milhões de intelectuais.

Com a ascensão do ateísmo, multiplicam-se as matanças de padres e crentes em medida jamais sonhada pelo próprio Robespíerre. Entre a guerra civil mexicana (1857) e o início da II Guerra Mundial (1939), não menos de vinte milhões de cristãos morreram em perseguições religiosas destinadas, segundo Lênin, a “varrer o cristianismo da face da terra”. E o massacre dos judeus nem havia começado ainda.

Mas talvez o ateísmo não seja o traço mais autêntico dessa etapa do movimento revolucionário. Tanto Marx quanto Bakunin tomaram parte, reconhecidamente, em rituais satânicos (leiam Richard Wurmbrand, Marx and Satan, Living Sacrifice Book Company, 1986, jamais contestado). E pelo menos na Itália a apologia de Satanás tornou-se explícita com o poeta Giosue Carducci, um dos maiores inspiradores do movimento revolucionário local:

Salute, o Satana

O ribellione

O forza vindice

De la ragione! (4)

Qualquer que seja o caso, o impacto das matanças acabou por incomodar os próprios revolucionários, que, nos anos 30, já estavam pensando em algum meio de contorná-la. Antonio Gramsci, nos “Cadernos do Cárcere”, ensina que a Igreja não deve ser combatida, mas esvaziada de seu conteúdo espiritual e usada como caixa de ressonância da propaganda comunista. O sucesso obtido posteriormente nesse empreendimento pode-se medir por dois fatos:

1) A influência avassaladora que os comunistas conseguiram exercer desde dentro e desde fora sobre o Concílio Vaticano II, dividindo a Igreja Católica e ocasionando a maior evasão de fiéis em dois milênios de catolicismo. (5)

2) O Conselho Mundial das Igrejas, a maior organização protestante do mundo, que congrega centenas de igrejas em todos os países, nominalmente para objetivos “ecumênicos”, é notoriamente uma entidade pró-comunista, que apóia e subsidia movimentos revolucionários terroristas. (6) Os vários Conselhos Nacionais das Igrejas são entidades independentes, mas pelo menos o dos EUA é ainda mais abertamente pró-comunista do que o Mundial. (7)

Paralelamente e em estreita associação informal com os esforços comunistas, veio-se desenvolvendo, desde os fins do século XIX, um movimento mundial destinado a criar a maior confusão religiosa possível através da propaganda ocultista em massa e da revivescência forçada do gnosticismo. Fenômenos como o surto de orientalismo pseudomístico da Nova Era, o culto das drogas como “via de iluminação interior”, a onda de experimentos psíquicos perigosos que partiu de Esalem (CA) e se espalhou pelo mundo, a proliferação de seitas empenhadas em escravizar seus discípulos através de práticas mentais destrutivas, podem ser apresentados ao público como uma convergência espontânea de tendências ou como uma fatalidade histórica impessoal ditada pelo “espírito do tempo”, mas basta pesquisar um pouco as fontes para descobrir que se trata de uma iniciativa unitária, organizada e bilionariamente financiada pelas mesmas forças auto-incumbidas de transformar a ONU em governo mundial até no máximo o fim da próxima década. (8)

A oscilação dialética e pendular do movimento revolucionário entre a anti-religião e a pseudo-religião, somada à multiplicidade alucinante das correntes que o alimentam, desorienta a quase totalidade do público. A ânsia de tomar posição, infindavelmente alimentada pela mídia e pelo sistema escolar, leva muita gente a apoiar movimentos e idéias cuja ligação com a corrente central não parece evidente à primeira vista. Quantos cristãos conservadores, querendo salvar a Igreja, não aderiram a idéias antijudaicas, por imaginar que a revolução era essencialmente obra de judeus? Quantos intelectuais judeus não se filiaram a partidos revolucionários, sem notar que com isso cavavam a sepultura do seu povo? Quantos protestantes, confundindo o catolicismo com a sua contrafação revolucionária, não acham que o melhor que têm a fazer é destruir a Igreja Católica? Quantos católicos, embriagados de pureza doutrinal não vêem o americanismo como um inimigo, movendo portanto guerra contra a única nação que criou uma síntese funcional de cultura cristã, economia próspera e democracia política? Quantos adeptos da democracia capitalista não se inspiram em idéias iluministas por lhes parecerem equilibradas e racionais, sem saber que, pelo seu conceito redutivista da razão, elas contêm em seu bojo a semente do irracionalismo revolucionário romântico, e sobretudo sem notar que o iluminismo, com toda a sua aparência elegante e educadinha, criou a primeira campanha de difamação anticristã organizada, pondo em circulação mentiras escabrosas que até hoje milhões de idiotas repetem como papagaios em todo o mundo? Quantos defensores das posições liberais em economia não acreditam poder conciliá-las com um ateísmo militante que, corroendo os fundamentos espirituais e morais do capitalismo, o convidam a transformar-se precisamente na “idolatria do mercado” que a propaganda comunista o acusa de ser, e assim ajudam a transferir aos revolucionários, bem como aos radicais islâmicos, o monopólio da autoridade moral? Escolhendo o inimigo conforme as feições mais salientes que se oponham às suas preferências subjetivas, todas essas pessoas não fazem senão botar lenha na fogueira da tensão dialética da qual o movimento revolucionário mundial se alimenta e se fortalece. Na verdade o inimigo é um só. Não se pode combatê-lo eficazmente sem apreender sua unidade por trás da variedade alucinante das suas versões, encarnações e aparências. Algumas décadas atrás, essa unidade era difícil de enxergar, pois não havia documentação suficiente para prová-la. Hoje suas provas são tão abundantes, que continuar a ignorá-la começa a se tornar uma espécie de cumplicidade criminosa. (9)

NOTAS

(1) O amor apaixonado que muitos intelectuais de hoje em dia têm por essas aberrações revela não somente seu ódio ao cristianismo, seu desejo de exterminá-lo por todos os meios possíveis, mas uma falta de inteligência que raia o monstruoso. Bart D. Ehrman, o badalado autor de The Lost Gospel of Judas Iscariot. A New Look at Betrayer and Betrayed (Oxford University Press, 2006), por exemplo, não é senão um fanático gnóstico travestido de erudito universitário, apto a realizar pesquisas filológicas em várias línguas antigas mas incapaz de atinar com as contradições mais pueris do seu próprio texto. Para esse tipo de estudioso, empenhado em impugnar os evangelhos originais com base em textos gnósticos escritos dois séculos depois deles, estão sempre abertas as cátedras universitárias, a NBC, o History Channel, o National Geographic e a mídia chique inteira, pela simples razão de que essas instituições são financiadas e dirigidas pelo mesmo núcleo de bilionários empenhados em fabricar uma religião biônica para substituir o cristianismo no terceiro milênio (v. nota 8).

(2) Vejam, sobre isso, Paul Hazard, La Pensée Européenne au XVIIIe. Siècle (Paris, Boivin, 1946), um clássico da história das idéias.

(3) Sobre o episódio, leiam Jean Dumont, La Révolution Française ou Les Prodiges du Sacrilège, Paris, Criterion, 1984.

(4) “Salve, ó Satanás, ó rebelião, ó força vingadora da Razão!” Da ode “A Satana”, que os conhecedores do italiano podem ler em http://digilander.libero.it/interactivearchive/carducci_satana.htm.

(5) V. Ricardo de la Cierva, Las Puertas del Infierno. La Historia de la Iglesia Jamás Contada, Madridejos (Toledo), Fénix, 1995, e La Hoz y la Cruz. Auge y Caída del Marxismo y la Teología de la Liberación, id., ibid., 1996.

(6) V. Bernard Smith, The Fraudulent Gospel. Politics and the World Council of Churches, London, The Foreign Affairs Publishing Co., 1977.

(7) Confira em C. Gregg Singer, Unholy Alliance. The Definitive History of the National Council of Churches and Its Leftist Policies – From 1908 to the Present, em http://www.freebooks.com/docs/39be_47e.htm.

(8) V. extensa documentação sobre isto em Lee Penn, False Dawn. The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004.

(9) A questão do lugar ocupado pelo islamismo no processo aqui descrito requer um exame em separado, que será feito num dos próximos artigos.

Ouça o programa de Olavo de Carvalho, True Outspeak, hoje às 20h00 (hora de Brasília) em http://www.blogtalkradio.com/olavo .

Por baixo da mesa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 19 de dezembro

Irmão siamês do desconstrucionismo, o multiculturalismo é assim definido por um professor uspiano: “Não tem sentido falar de verdade tout court, só de verdade para um determinado grupo cultural. O multiculturalismo apregoa uma visão caleidoscópica da vida e da fertilidade do espírito humano, na qual cada indivíduo transcende o marco estreito da sua própria formação cultural e é capaz de ver, sentir e interpretar por meio de outras apreciações culturais. O modelo humano resultante é tolerante, compreensivo, amplo, sensível e fundamentalmente rico: a capacidade interpretativa, de observação e até emotiva, se multiplica.” (Roberto Fernández, “Multiculturalismo intelectual”, Revista USP, 42, junho-agosto 1999, pp. 84-95.)

Qualquer pessoa que saiba ler e não tenha passado pela USP percebe que o projeto multiculturalista, assim definido (e essa definição não diverge de outras tantas que circulam nos meios universitários), se estrangula a si próprio no bercinho. Se toda verdade está condicionada à visão de um determinado grupo cultural, ninguém pode “transcender o marco estreito da sua própria formação cultural” e muito menos “ver, sentir e interpretar por meio de outras apreciações culturais”. Se alguém consegue saltar por cima das fronteiras culturais, é porque há uma verdade acima de todas elas e essa verdade é acessível à inteligência humana. O multiculturalismo consiste portanto em fazer na prática aquilo mesmo que na teoria ele proclama ser impossível. É um caso extremo de paralaxe cognitiva, em que o sujeito afirma precisamente o contrário daquilo que o seu próprio ato de afirmar demonstra da maneira mais patente. É o deslocamento radical entre o eixo da experiência intelectual efetiva e o da construção teórica supostamente baseada nela.

A incongruência é tão patente, tão grosseira, que não posso acreditar seja filha da distração, gerada no leito das meras coincidências. Com efeito, a contradição aí embutida só permanece levemente camuflada pelo fato de que seus dois pólos se situam em planos diferentes: a teoria e a prática. O estudante, portanto, só pode continuar envolvido nessa prática se for induzido a jamais confrontá-la com a teoria, isto é, se ele se tornar incapaz de cotejar a expressão verbal da teoria com o conteúdo teorético afirmado implicitamente pela prática. Dito de outro modo: o adestramento no multiculturalismo consiste em habilitar o aluno para se persuadir de que sabe alguma coisa sempre que não sabe o que está fazendo com ela. O multiculturalismo é uma técnica de auto-embotamento intelectual baseada na estimulação contraditória rotinizada.

Não tem sentido, portanto, discuti-lo como teoria nem como prática. Só o que cabe é revelar o ardil psicológico por trás da articulação de ambas, e em seguida denunciar o conjunto como aquilo que é: um instrumento de dominação criado para transformar milhões de universitários em idiotas militantes, hipnotizados e postos a serviço de seus professores.

Às vezes fico até consternado de ver o esforço que brilhantes intelectuais conservadores, como o nosso José Guilherme Merquior, dispenderam em impugnar idéias esquerdistas. Ser bem sucedido nesse esforço não significa nada, quando as idéias não valem por si e são só a camuflagem de alguma operação mais discreta. Se um vizinho safado vai jogar baralho na sua casa com a intenção de ficar passando a mão na perna da sua esposa por baixo da mesa, não é vantagem nenhuma você vencê-lo no jogo. O que importa é virar a mesa e encher o sujeito de porrada.

A nova era das ditaduras

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 18 de dezembro

Há quem acredite que, com a morte de Augusto Pinochet e o próximo desaparecimento de Fidel Castro, a era dos ditadores estará extinta na América Latina. É esperança louca. O que está em vias de acabar é a era dos ditadores nacionais, prenunciando o advento da ditadura continental. Não estamos vendo o fim, mas um upgrade da tirania latino-americana.

Começo com uma distinção óbvia. Excluindo as tiranias dinásticas, oligárquicas e populistas, que realmente pertencem a uma fase histórica extinta, há ditaduras reacionárias e revolucionárias. As primeiras são temporárias por natureza, pois têm ambições limitadas, visam à restauração de um estado anterior e se diluem tão logo alcancem seus objetivos. As ditaduras revolucionárias arrancam as raízes do passado e criam do nada um mundo novo. Não raro, pretendem modificar não só a estrutura da sociedade, mas a própria natureza humana. Promovem transformações tão profundas – e tão perversas –, que, quando se extinguem, já não é possível nem restaurar o que existia nem criar um novo padrão de normalidade. Muitas ditaduras reacionárias, passado o pesadelo, deixaram saldos positivos. O Chile, a Espanha e Portugal, quando se desvencilharam de Pinochet, Franco e Salazar, eram países livres e prósperos. As ditaduras revolucionárias não deixam outra coisa senão um rastro macabro de devastação e morte que só pode resultar em novas ditaduras ou numa decadência longa e irreversível. A França do Antigo Regime era a nação mais rica e poderosa do mundo. Depois da Revolução, veio de queda em queda até reduzir-se a uma burocracia falida, dependente da ajuda americana, subserviente a ditadores estrangeiros e incapaz de resistir à invasão cultural islâmica. O Vietnã e a Coréia do Norte são cemitérios mal administrados. A China pós-Mao é a festa permanente dos generais em meio à miséria do povo. A Rússia mergulhou no caos e na corrupção. A única esperança de uma nação, após a experiência da ditadura revolucionária, é ser salva desde fora, como o foi a Alemanha. Mas ninguém pode querer isso e depois ter o direito de choramingar que os EUA são a polícia do mundo.

As ditaduras em formação na América Latina definem-se por duas características: (1) são todas revolucionárias, prometendo a mutação radical e a militarização integral da sociedade; (2) não são fenômenos isolados, nacionais, mas o resultado de uma articulação continental que começou na década de 60, com a OLAS (Organização de Solidariedade Latino-Americana) e colheu seus primeiros frutos após a criação do Foro de São Paulo em 1990. Desde então o projeto da revolução latino-americana vem alcançando vitória em cima de vitória, sem encontrar qualquer resistência senão da parte de esquerdistas light que, malgrado seus escrúpulos democráticos ao menos formais, são no fim das contas escravos ideológicos do mito revolucionário e, por isso mesmo, meros colaboracionistas disfarçados.

A possibilidade de que o processo venha a ser detido pela emergência de ditaduras reacionárias, mesmo locais e isoladas, é praticamente nula. Os poderes internacionais e a grande mídia européia e americana oscilam entre os protestos fingidos e a cumplicidade explícita. E a máquina democrática em cada país foi tão bem alterada desde dentro, que já não pode servir senão para legitimar a tirania por meio da aprovação popular.

A era das ditaduras no continente não acabou. Está apenas começando. Como diria o saudoso Paulo Francis, there’s coming a shitstorm.

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Alexei Bueno, um bobão que no presente estado de coisas é tido nos círculos editoriais como poeta e até como erudito, está fazendo circular pela internet uma comparação entre Augusto Pinochet e Fidel Castro na qual exemplifica às mil maravilhas a capacidade que a esquerda tem de mentir, depois esquecer que mentiu e por fim acreditar apaixonadamente na mentira.

Pinochet – começa ele — é, antes de tudo, um traidor, essa coisa asquerosa, de um presidente eleito que o colocou, ingenuamente, como Ministro do Exército. Não me consta que Fidel tenha sido jamais ministro de Fulgencio Batista, muito ao contrário foi sempre seu figadal e público opositor.”

Se Fernando Collor de Melo, diante da iminência do impeachment, se fechasse no palácio com guardas armados, bradando ameaças, que fariam os poderes legislativo e judiciário? Convocariam o Exército para tirá-lo de lá à força. Pinochet fez exatamente isso: cercou o Palácio de La Moneda por ordem do Congresso e da Suprema Corte que já haviam condenado o presidente corrupto, golpista e assassino. Sim, assassino. As centenas de homicídios praticados pelos cubanos da guarda pessoal de Allende são meticulosamente omitidas pela mídia nacional há décadas, assim como o fato hoje bem comprovado de que o presidente chileno era agente pago da KGB. Era obrigação estrita do exército chileno prender esse criminoso e, caso resistisse, matá-lo como a um cachorro louco. Chamar isso de “golpe” já é um abuso semântico intolerável. Na cabeça de Alexei Bueno, porém, foi mais que golpe: foi “traição”. Para ser um bom sujeito, Pinochet deveria desprezar a ordem legal e pegar em armas contra o Congresso e a Suprema Corte em troca de ser mantido no cargo ministerial. Com base nesse princípio, Alexei poderia concluir que só quem agiu errado no caso do Mensalão foi o Roberto Jefferson, ao romper o pacto de lealdade mafiosa. Os outros foram exemplos de moralidade superior.

Enquanto o generaleco-agente da CIA armou uma quartelada na qual não pegou pessoalmente num canivete, Fidel comandou o ataque a Moncada, foi preso, exilou-se para não ser morto, realizou o quixotesco desembarque do Granma e a epopéia de Sierra Maestra.

Conversa mole. Fidel Castro, enquanto seus companheiros morriam no ataque frustrado ao quartel de Moncada, fugia covardemente. Quanto à “epopéia de Sierra Maestra”, foi de cabo a rabo uma criação literária de Herbert L. Mathews, inventivo repórter esquerdista do New York Times já totalmente desmoralizado pela pesquisa histórica. O comandante Huber Matos, que esteve ao lado de Fidel o tempo todo ao longo dos combates, atesta que ele jamais deu um tiro. Che Guevara deu muitos, mas principalmente em prisioneiros amarrados. Aliás a “epopéia” padece de uma deplorável escassez de feitos militares: o total de anticastristas mortos em combate foi de pouco mais de mil pessoas (incluindo o posterior episódio da Baía dos Porcos) e, quando os guerrilheiros desceram para ocupar Havana, já não encontraram resistência nenhuma, pois Batista, derrubado pela pressão norte-americana, já havia fugido com seus cúmplices principais. O grosso do heroísmo castrista foi mesmo praticado contra civis desarmados (veja os números mais adiante).

Quanto a ditaduras sanguinárias, não me consta que em Cuba tenham posto crianças e velhos vivos em fornos, como na Argentina.”

O que a mim não me consta, em primeiro lugar, é que Pinochet tenha governado a Argentina. Consta, sim, o hábito esquerdista de inculpar por associação de idéias. Pinochet é um milico de direita, os governantes da Argentina eram milicos de direita, logo Pinochet é culpado do que quer que tenha acontecido na Argentina. Quanto aos hediondos fornos crematórios portenhos, Alexei fica nos devendo alguma indicação documental, por mínima que seja, que comprove a existência deles. Ele também poderia nos explicar por que um detalhe tão pitoresco jamais apareceu na grande mídia antimilica.

Todos os que foram para o célebre ‘paredón’, muitos deles torturadores e assassinos de Batista, foram julgados e condenados em tribunais revolucionários, mas não ‘desaparecerem’ jogados no mar, ou metidos em buracos cheios de dinamite.

Pela primeira vez na vida vejo alguém insinuar que tribunais revolucionários – onde o sujeito entra condenado e em quinze minutos sai morto — são uma forma de justiça superior ao homicídio. Mas, qualquer que seja o caso, essas mimosas instituições só foram criadas numa fase avançada da revolução cubana. No começo, Che Guevara, dispensando esse luxo, assinava sem ler pilhas e pilhas de sentenças de morte e não raro as executava pessoalmente. Ademais, no total de vítimas da revolução cubana, as que passaram por algum julgamento, mesmo simulado, são uma fração ínfima em comparação com a quota de “desaparecidos”. O monopólio esquerdista do uso dessa palavra na mídia só tem servido para fazê-los desaparecer uma segunda vez, ocultando o fato de que eles foram em maior número em Cuba do que em qualquer outra ditadura latino-americana. Os números totais do morticínio cubano, reunidos ao longo de vinte anos de pesquisas pelo economista Armando M. Lago, presidente da Câmara Ibero-Americana de Comércio e consultor do Stanford Research Institute, são os seguintes:

Fuzilados: 5.621. Assassinados extrajudicialmente: 1.163. Presos políticos mortos no cárcere por maus-tratos, falta de assistência médica ou causas naturais: 1.081. Guerrilheiros anticastristas mortos em combate: 1.258. Soldados cubanos mortos em missões no exterior: 14.160. Mortos ou desaparecidos em tentativas de fuga do país: 77.824. Civis mortos em ataques químicos em Mavinga, Angola: 5.000. Guerrilheiros da Unita mortos em combate contra tropas cubanas: 9.380. Total: 115.127 (não inclui mortes causadas por atividades subversivas no exterior, como por exemplo as vítimas do terrorismo brasileiro subsidiado pelo governo cubano).

 “Sugiro ao leitor que disse ser a ditadura cubana a mais sanguinária da América Latina ler um pouco de História ou aprender aritmética.”

Da minha parte não sugiro a Alexei Bueno nem uma coisa nem a outra, pois estão ambas formidavelmente acima não só de sua capacidade, como também de suas intenções. Um exemplo de sua idoneidade histórico-aritmética ele nos fornece neste seu parágrafo de encerramento:

Podem todos carpir, guaiar e gemer, mas o fato é que Fidel Castro ficará como um dos maiores líderes antiimperialistas do século XX, ao lado de um Mustafá Kemal Atatürk ou de um Ho Chi Min. Todos foram ditadores, prefiro qualquer um deles ao grande democrata George W. Bush, que matou muito mais gente que os três juntos.”

Descontemos o uso despropositado do verbo “guaiar”, que é pura veadagem léxica. Mesmo que aceitássemos os números mais exagerados fornecidos pela propaganda esquerdista quanto à guerra do Iraque – pois não consta que George W. Bush tenha iniciado outras guerras –, a comparação, em matéria de fidelidade histórica e exatidão aritmética, basta para nivelar historicamente Alexei Bueno à precisa soma aritmética da besta quadrada com a besta ao quadrado. Hoje entendo por que o Bruno Tolentino costumava chamá-lo de Dislexei Bueno.

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O restante do artigo do sr. Dalmo Dallari, cujo início comentei quinta-feira passada (http://www.olavodecarvalho.org/semana/061214dce.html), é de uma mendacidade tão despudorada que mais justo seria xingá-lo de tudo quanto é nome em vez de honrá-lo com um comentário.

Desde logo, não há atitude que eu mais despreze, num articulista, do que macaquear, com finalidade leviana, expressões verbais que usei para transmitir conteúdo sério. Não estou aqui para alimentar parasitas. Se querem mentir, que pelo menos tenham a bondade de fazê-lo com suas próprias palavras, em vez de sugar as minhas para depois vomitá-las como farsa.

Quando comecei a falar de “ocultação de notícias”, anos atrás, eu me referia a fatos de importância universal, cuja longa e obstinada ausência nos jornais denunciava um intuito consciente de ludibriar os leitores. Fenômenos como a matança de mais de um milhão de cristãos nos países comunistas e islâmicos, ou como as assembléias do Foro de São Paulo, que reuniam anualmente os mais poderosos líderes da esquerda latino-americana, não eram coisinhas de somenos, que pudessem ser ignoradas unanimemente por articulistas, pauteiros, repórteres e chefes de redação do país inteiro ao longo de mais de uma década, sem que houvesse nisso algo de monstruosamente anormal segundo todos os cânones da profissão jornalística.

De uns meses para cá, uma multidão de cabos eleitorais, agentes de influência e mentirosos compulsivos, a serviço do partido governante, se apossaram do tema e passaram a tocá-lo, com leves variações, a propósito de qualquer noticinha vagabunda, de qualquer zunzum de comadres, de qualquer factóide de interesse do petismo, casualmente omitidos pela grande mídia na correria dos fechamentos.

Criaram assim a lenda da mídia direitista, reacionária, empenhada em sufocar, como no tempo dos censores, a voz heróica da esquerda nacional.

Tão fantástica inversão da realidade arriscaria expor seus autores ao riso geral, se não tratassem de empacotá-la numa linguagem que, por ter sido usada ao longo de uma década para expressar verdades comprovadas, adquiriu uma espécie de credibilidade automática apta a ser usurpada para dizer precisamente o contrário, com eficácia multiplicada por aquela capacidade tão própria da mente esquerdista, de simular nobreza moral por meio de esgares de dor e revolta desesperadoramente postiços.

Se o leitor se recorda do que escrevi aqui sobre os efeitos psico-sociais do desconstrucionismo, compreenderá facilmente que ativistas com longa prática em esvaziar as palavras de todo significado objetivo estão equipadíssimos para mais esse assalto entrópico e obscurecedor à inteligibilidade da linguagem.

O sr. Dallari só se distingue dos demais pela dose extra de cara de pau com que comprime, num só artigo, gesticulações indignadas ante três exemplos de “supressão de notícias” dos quais um é materialmente falso e os outros dois são absurdos.

O primeiro é o manifesto pró-Sader, que, segundo ele, a mídia omitiu por completo. Como eu mesmo vi esse manifesto transcrito com espalhafato em alguns dos maiores jornais do país, não creio estar errado em concluir que ou o sr. Dallari é um irresponsável que ataca sem nem mesmo buscar provas, ou é um mentiroso contumaz que, com as provas na mão, afirma o contrário do que elas atestam. Nos dois casos a única resposta que ele merece é algum palavrão bem cabeludo, que não registro aqui mas que lhe direi na cara se tiver o desgosto de encontrá-lo um dia.

A segunda notícia injustamente suprimida é a mensagem, subscrita por ativistas de “direitos humanos” (entre sólidas aspas), em louvor de policiais mortos e feridos no cumprimento do dever. Isso, de fato, não li em parte alguma, mas que importância objetiva tem esse documento? Segundo Dallari, ele prova que é falsa a noção geral de que os tais ativistas só servem para boicotar a polícia e ajudar os bandidos, devendo por isso ser publicado. Mas, por favor, comparem: contra a polícia, essa gente fez campanhas milionárias, produziu filmes e programas de TV, publicou centenas de livros e teses universitárias, fez dúzias e dúzias de discursos no parlamento, espalhou milhões de mentiras e, por fim, promulgou leis que detêm a ação dos policiais e os entregam inermes nas mãos dos bandidos. O resultado é uma polícia desarmada, acossada, temerosa de cumprir o dever para não ser desancada na mídia e conformada, enfim, com seu novo papel de fornecedora de alvos para os bandidos equipados de fuzis Kalashnikov e metralhadoras UZI. Depois de consumada essa grande obra, que fazem os seus autores? Assinam um miserável manifestinho, um factóide, uma simulação ridícula de solidariedade que não serve nem para desencargo de consciência, e ainda querem cobertura, repercussão, câmeras, holofotes, reconhecimento público! E, se a mídia não lhes serve o que desejam, saem choramingando que foram censurados. Ora, que vão para o diabo. Sob qualquer critério jornalístico que se examine, o lugar dessa notícia é o lixo.

Por fim, queixa-se o ilustríssimo de que a mídia, fazendo alarde do dossiê ilegal comprado pelo PT para desgraçar seus concorrentes eleitorais, se omitiu, criminosamente, de divulgar o mais importante: o conteúdo do documento, as acusações levantadas nele contra o tucanato. Aí o fingimento hipócrita já se eleva às alturas de um arrebatamento místico. Pois se o dossiê foi forjado justamente para ser divulgado e fazer barulho na mídia, e se a polícia comprovou o caráter criminoso da operação, divulgar seu conteúdo seria simplesmente dar execução cabal ao plano depois de denunciado e condenado, neutralizando a ação policial que o abortou em tempo. Para fazer isso, a mídia, originariamente escolhida pelo PT como instrumento passivo do delito, teria de consentir em praticá-lo, agora, como cúmplice ativa e consciente.

O sr. Dallari não tem, em si, a mínima importância. É um puro ninguém de toga e cátedra. Mas, com esse seu artigo, ele se tornou o importante sintoma denunciador de males cuja dimensão mastodôntica talvez escape à sua própria percepção. Quando um sujeito que a sociedade aceita como jurista denuncia como crime a recusa de praticar um crime, é porque de há muito já nos evadimos do antigo território denominado “realidade”: tornamo-nos personagens da fantasia insana do marquês de Sader, habitantes do “mundo às avessas”.

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