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A nova religião nacional

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de março de 2007

Atos libidinosos num templo religioso tipificam nitidamente o crime de ultraje a culto, previsto no art. 208 do Código Penal. A proposta de lei 5003/2001 consagra esse crime como um direito dos homossexuais e castiga com pena de prisão quem tente impedir a sua prática. Se o Congresso a aprovar, terá de revogar aquele artigo ou decidir que ele se aplica só aos heteros, oficializando a discriminação sexual sob a desculpa de suprimi-la. Terá de revogar também o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assegura aos crentes “a liberdade de manifestar sua religião…. isolada ou coletivamente, em público ou em particular”.

A ética sexual das religiões tradicionais é parte integrante da sua doutrina e prática. Proibir uma coisa é criminalizar a outra. Aprovada a PL, no dia seguinte as igrejas estarão repletas de militantes gays aos beijos e afagos, ostentando poder, desafiando os fiéis a ir para a prisão ou baixar a cabeça ante o espetáculo premeditadamente acintoso. O crente que deseje evitar essa humilhação terá de praticar sua devoção em casa, escondido, como no tempo das catacumbas.

A desculpa de proteger uma minoria oprimida é cínica e fútil. De um lado, nunca os homossexuais sofreram violência na escala em que estão expostos a ela os cristãos hoje em dia. Todo genocídio começa com o extermínio cultural, com o escárnio e a proibição dos símbolos e valores que dão sentido à vida de uma comunidade. Na década de 90 os cristãos foram assassinados à base de cem mil por ano nos países comunistas e islâmicos, enquanto na Europa e nos EUA a esquerda chique votava lei em cima de lei para criminalizar a expressão da fé nas escolas, quartéis e repartições públicas. A PL 5003/2001 é genocídio cultural em estado puro, indisfarçável.

De outro lado, qualquer homossexual que esteja ansioso para trocar amassos com seu parceiro dentro de uma igreja em vez de fazê-lo em casa ou num motel não é bem um homossexual: é um exibicionista sádico que tem menos prazer no contato erótico do que em ofender os sentimentos religiosos dos outros. É preciso ser muito burro e tacanho para confundir o desejo homoerótico com a volúpia da blasfêmia e do escândalo. O primeiro é humano. A segunda é satânica por definição. É a manifestação inconfundível do ódio ao espírito. Uma lei que a proteja é iníqua e absurda. Se o Congresso a aprovar, não deixará aos religiosos senão a opção da desobediência civil em massa.

A ex-deputada petista Iara Bernardi, autora da proposta, diz que a nova lei “é uma importante abertura no caminho para o Estado verdadeiramente laico”.

Laico, o Estado já é. Não possui religião oficial, não obriga ninguém a ter ou não ter religião. Mas o Estado com que sonha a ex-parlamentar é algo mais. É o Estado que manda à prisão o crente que repita em voz alta – mesmo dentro do seu próprio templo – os mandamentos milenares da sua religião contra as condutas sexuais agora privilegiadas pela autoridade. Esse Estado não é laico: quem coloca o prazer erótico de alguns acima da liberdade de consciência religiosa de todos os outros instaura, no mesmo ato, um novo culto. Ergue uma nova divindade acima do Deus dos crentes. É o deus-libido, intolerante e ciumento.

Psicologia gay

Em comparação com a perseguição anticristã no mundo, a suposta discriminação dos gays é, na melhor das hipóteses, uma piada. Ao longo dos últimos cem anos, nas democracias capitalistas, nenhum homossexual jamais sofreu, por ser homossexual, humilhações, perigos e danos comparáveis, por exemplo, aos que a militância gay enlouquecida vem impondo ao escritor evangélico brasileiro Júlio Severo pelo crime de ser autor do livro O Movimento Homossexual . Não posso por enquanto contar o caso em detalhes porque prejudicaria o próprio Júlio, a esta altura metido numa encrenca judicial dos diabos. Mas, garanto, é uma história assustadora.

A discriminação e marginalização dos homossexuais é real e grave nos países islâmicos e comunistas, especialmente em Cuba, mas as alianças políticas do movimento gay fazem com que ele prefira se manter calado quanto a esse ponto, descarregando suas baterias, ao contrário, justamente em cima das nações que mais mimam e protegem os homossexuais.

Dois livros que recomendo a respeito são “Gay New York: Gender, Urban Culture and the Making of the Gay Male World, 1890- 1940” , de George Chauncey, New York, Basic Books, 1994, e “Bastidores de Hollywood: A Influência Exercida por Gays e Lésbicas no Cinema, 1910- 1969” , de William J. Mann, publicado em tradução brasileira pela Landscape Editora, de São Paulo, em 2002. Nenhum dos dois foi escrito por inimigos da comunidade gay . Ambos mostram que, em dois dos mais importantes centros culturais e econômicos dos EUA os gays tinham já desde o começo do século XX um ambiente de muita liberdade, no qual, longe de ser discriminados, gozavam de uma posição privilegiada – justamente nas épocas em que a perseguição a cristãos e judeus no mundo subia às dimensões do genocídio sistemático.

Em hipótese alguma a comunidade gay pode se considerar ameaçada de extinção ou vítima de agressões organizadas comparáveis àquelas que se voltaram e voltam contra outros grupos humanos, especialmente religiosos. Ao longo de toda a minha vida, nunca vi nem mesmo alguém perder o emprego, no Brasil, por ser homossexual. Ao contrário, já vi grupos homossexuais dominando por completo seus ambientes de trabalho, incluisive na mídia.

Se, apesar disso, o sentimento de discriminação continua real e constante, ele não pode ser explicado pela situação social objetiva dessa comunidade: sua causa deve estar em algum dado existencial mais permanente, ligado à própria condição de homossexual. Talvez esta última contenha em si mesma algum estímulo estrutural ao sentimento de rejeição. A mim me parece que é exatamente isso o que acontece, e por um motivo bastante simples.

A identidade heterossexual é a simples tradução psíquica de uma auto-imagem corporal objetiva, de uma condição anatômica de nascença cuja expressão sexual acompanha literalmente a fisiologia da reprodução. Ela não é problemática em si mesma. Já a identidade homossexual é uma construção bem complicada, montada aos poucos com as interpretações que o indivíduo dá aos seus desejos e fantasias sexuais. Ninguém precisa “assumir” que é hetero: basta seguir a fisiologia. Se não houver nenhum obstáculo externo, nenhum trauma, a identidade heterossexual se desenvolverá sozinha, sem esforço. Mas a opção homossexual é toda baseada na leitura que o indivíduo faz de desejos que podem ser bastante ambíguos e obscuros.

A variedade de tipos heterogêneos abrangidos na noção mesma de “homossexual” – desde o macho fortão atraído por outros iguais a ele até o transexual que odeia a condição masculina em que nasceu – já basta para mostrar que essa leitura não é nada fácil. Trata-se de perceber desejos, interpretá-los, buscar suas afinidades no mundo em torno, assumi-los e fixá-los enfim numa auto-imagem estável, numa “identidade”. Não é preciso ser muito esperto para perceber que esse desejo, em todas as suas formas variadas, não é uma simples expressão de processos fisiológicos como no caso heterossexual (descontadas as variantes minoritárias deste último), mas vem de algum fator psíquico relativamente independente da fisiologia ao ponto de, na hipótese transexual, voltar-se decididamente contra ela.

A conclusão é que o desejo em si mesmo, o desejo consciente, assumido, afirmado – e não o desejo como mera manifestação passiva da fisiologia –, é a base da identidade homossexual. Mas uma identidade fundada na pura afirmação do desejo é, por sua própria natureza, incerta e vacilante, porque toda frustração desse desejo será vivenciada não apenas como uma decepção amorosa, mas como um atentado contra a identidade mesma. Normalmente, um heterossexual, quando suas pretensões amorosas são frustradas, vê nisso apenas um fracasso pessoal, não um ataque à heterossexualidade em geral. No homossexual, ao contrário, o fato de que a maioria das pessoas do seu próprio sexo não o deseje de maneira alguma já é, de algum modo, discriminação, não só à sua pessoa, mas à sua condição de homossexual e, pior ainda, à homossexualidade em si. É por isso que os homossexuais se sentem cercados de discriminadores por todos os lados, mesmo quando ninguém os discrimina, no sentido estrito e jurídico em que a palavra discriminação se aplica a outras comunidades. A simples repulsa física do heterossexual aos atos homossexuais já ressoa, nas suas almas, como um insulto humilhante, embora ao mesmo tempo lhes pareça totalmente natural e improblemática, moralmente, a sua própria repulsa ao intercurso com pessoas do sexo oposto e até com outro tipo de homossexuais, que tenham desejos diferentes dos seus. Tempos atrás li sobre a polêmica surgida entre gays freqüentadores de saunas, que não admitiam a presença de transexuais nesse ambiente ultracarregado de símbolos de macheza. “Tenho nojo disso”, confessavam vários deles. Imagine o que diria o movimento gay se declaração análoga viesse de heterossexuais. Seria um festival de processos. Mas o direito do gay a um ambiente moldado de acordo com a forma do seu erotismo pessoal não parecia ser questionável. Nem muito menos o era o seu direito à repulsa ante os estímulos adversos – a mesma repulsa que o macho hetero sente ante a hipótese de ir para a cama com homos e transexuais, mas que neste caso se torna criminosa, no entender do movimento gay. Em suma, para os gays , expressar a forma específica e particular dos seus desejos – e portanto expressar também a repulsa inversamente correspondente – é uma questão de identidade, uma questão mortalmente séria, portanto um “direito” inalienável que, no seu entender, só uma sociedade opressiva pode negar. A repulsa do hetero ao homossexualismo, ao contrário, é uma violência inaceitável, como se ela não fosse uma reação tão espontânea e impremeditada quanto a dos gays machões pelos transexuais pelados numa sauna (um depoimento impressionante a respeito vem nas “Memórias do Cárcere” de Graciliano Ramos: o escritor, insuspeito de preconceitos reacionários, tinha tanto nojo físico dos homossexuais que, na prisão, rejeitava a comida feita pelo cozinheiro gay). De acordo com a ideologia do movimento, só os gays têm, junto com o direito à atração, o direito à repulsa. Os heteros que guardem a sua em segredo, ao menos por enquanto. O ideal gay é eliminá-la por completo. Mas isto só será possível quando todos os seres humanos forem homossexuais ao menos virtualmente. Daí a necessidade de ensinar o homossexualismo desde a escola primária. Os objetivos do movimento gay vão muito além da mera proteção da comunidade contra perseguições, aliás inexistentes na maioria dos casos, a não ser que piadinhas ou expressões verbais de rejeição constituam algo assim como um genocídio. Instaurar o monopólio gay do direito à repulsa exige a reforma integral da mente humana. A ideologia gay é a forma mais ambiciosa de radicalismo totalitário que o mundo já conheceu.

Galináceos indignados

O reconhecimento que acabo de receber da Associação Comercial de São Paulo, com a edição inteira do seu Digesto Econômico de março dedicada à minha pessoa, parece que suscitou alguma revolta no galinheiro.

Com dez anos de atraso, isto é, com a velocidade usual das suas conexões neuronais, Fernando Jorge protesta contra a minha desmontagem do panfleto vagabundo, invejoso e mendaz que ele escreveu contra o Paulo Francis (v. “Galo de bigodes” em O Imbecil Coletivo , 5ª. edição). Aproveita a ocasião para avisar que é “um galináceo viril, com crista rubra, peito altivo, esporão agudo, ameaçador”. Sei que isso é verdade. Meu cachorro já comeu vários desses bichos.

Ainda mal refeito do ovo monstruoso e disforme que botou com o título de “O Poder Secreto!” (sim, com exclamação, para que ninguém pense que é pouca porcaria), Armindo Abreu, compilador de velhas teorias da conspiração que ele apresenta como suas e originalíssimas, cacareja que meus artigos de 1999 foram plagiados do seu livro de 2005, que eu nunca disse uma palavra contra o establishment americano e que o Foro de São Paulo é “uma entidade quase ficcional”. Pela exatidão de qualquer das três afirmações mede-se a veracidade das outras duas. Como ele também me acusa de calúnia, injúria e difamação, mas não diz a quem caluniei, injuriei ou difamei, é ele quem, no mesmo ato, comete esses três crimes contra mim, mas suponho que o faça também sob o efeito do seu trauma obstétrico – estado alterado de consciência do qual ele dá sinal alarmante ao gabar-se de ser “um intelectual de verdade” ( sic ).

A melodia secreta da filosofia

Não existe filosofia elementar. Por onde quer que você entre numa questão filosófica, não importando qual seja, vai desembocar direto no centro mesmo da encrenca. Nada poderá ajudá-lo senão o domínio da técnica filosófica. Técnica filosófica é saber rastrear um tema, um problema, uma idéia, até suas raízes na estrutura mesma da realidade. Trata-se de pensar no assunto até que o pensamento encontre seus limites e a própria realidade comece a falar. “Pensar”, aí, não é falar consigo mesmo, combinar palavras ou argumentar tentando provar alguma coisa. Não é nem mesmo construir deduções lógicas, por mais elegantes que pareçam (a atividade construtiva da mente pertence às matemáticas e não à filosofia). É, em primeiro lugar, mergulhar na experiência interior em busca de rememorar muito fielmente como alguma coisa chegou ao seu conhecimento e de onde ela surgiu no quadro maior da realidade. Aos poucos você irá distinguindo o que veio da realidade e o que você mesmo lhe acrescentou, e por que acrescentou. Quando estiver seguro de que possui o dado limpo e sem acréscimos (mas sem jogar fora os acréscimos, que às vezes são úteis depois), pode olhar em torno dele e ver as condições circundantes e antecedentes que possibilitaram sua presença. Não dá para você fazer isso sem aprofundar sua própria autoconsciência no ato mesmo de meditar o objeto. A coisa exige uma dose de concentração mental e sinceridade que ultrapassa formidavelmente a capacidade do homem vulgar (incluídos aí os “intelectuais”, mesmo autênticos; nem falo de seus imitadores). É um trabalho tão exigente e ainda mais eriçado de obstáculos psicológicos do que o esforço requerido para vencer resistências neuróticas no curso de um tratamento psicanalítico (e tratamentos psicanalíticos podem se prolongar por anos a fio).

Para medir a distância que separa a investigação filosófica de toda e qualquer forma de “argumentação” (válida ou inválida), basta notar que logo nos primeiros passos a percepção interior do objeto, se vai na direção certa, já transcende a sua capacidade ao menos imediata de expressão em palavras. Trata-se de tomar consciência, e não de “raciocinar”. O pensamento verbal serve aí apenas de suporte inicial. É uma questão de tornar presente, por todos os meios mentais disponíveis, o quadro inteiro das condições reais que tornaram possível você conhecer o objeto. Daí até o conhecimento das condições que tornaram possível a própria existência dele é apenas um passo, mas é o passo decisivo. É só nesse momento que a exposição verbal dessa experiência se torna possível por sua vez, pois colocar um objeto real no quadro de condições que o possibilitaram é colocá-lo, automaticamente, em algum ponto de uma dedução lógica. Tudo o que você poderá fazer será verbalizar essa dedução, não o caminho interior percorrido. Mas é o percurso que dá à dedução lógica toda a sua substancialidade de significado. Lida ou ouvida por alguém que não seja capaz de reconstituir a experiência interior correspondente, a dedução será apenas um esquema formal que, como qualquer outro esquema formal, pode alimentar discussões e refutações sem fim e sem proveito. Essas discussões e refutações podem ser uma imitação da filosofia, mas são tão diferentes da filosofia genuína quanto o arquivo midi de uma cantata de Bach é diferente de uma cantata de Bach. Podem servir como adestramento lógico, mas o adestramento para uma atividade mental construtiva, por útil que seja para outros fins, é exatamente o inverso do aprendizado da análise filosófica: você não pode se abrir à realidade construindo alguma coisa em lugar dela.

O único aprendizado possível da filosofia é ler as exposições dos filósofos reconstruindo imaginativamente a atividade interior que as gerou. Isso é como ler uma partitura e aos poucos aprender a executá-la com todas as nuances e ênfases emocionais subentendidas, que a partitura insinua mas não mostra. Antes de se tornar um compositor, você tem de aprender a fazer isso com muitas músicas de outros compositores. Antes de analisar o seu primeiro problema filosófico, você vai ter de tocar muitas músicas compostas pelos filósofos de antigamente. E, exatamente como acontece com o aprendiz de música, não vai oferecer um recital público com as primeiras músicas que mal aprendeu a tocar. Aristóteles aprendeu vinte anos com Platão antes de começar a ensinar. Aprender a filosofar é aprender a ouvir – e depois a tocar — a melodia secreta por trás dos meros signos verbais. Se tudo der certo, ao fim de muitos anos de prática você acabará descobrindo suas próprias melodias secretas – e quando as escrever descobrirá que praticamente ninguém vai saber tocá-las mas todo mundo desejará imitá-las sob a forma de “argumentos”. Professores de filosofia – especialmente no Brasil — não têm em geral a menor idéia do que seja a investigação filosófica. Em vez de filosofia, ensinam argumentação, na melhor das hipóteses. No mais das vezes não fazem nem isso: ensinam argumentos prontos e chamam de fascista quem não deseje repeti-los. É uma espécie de tráfico de entorpecentes.

Dica de leitura

Se você ler tudo o que os correspondentes brasileiros nos EUA escreveram para os seus jornais nos últimos vinte anos, não aprenderá tanto sobre a política americana quanto pode aprender lendo o artigo de Heitor de Paola, “ As complexidades da política norte-americana”, publicado no último dia 23 no Mídia Sem Máscara ( http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=5661&language=pt ). Se eu tivesse fundado o MSM só para publicar esse único artigo, a existência desse modesto jornal eletrônico já estaria inteiramente justificada.

Lembrança

Aos que gostaram do meu artigo “Aprendendo com o dr. Johnson”, devo advertir que o sábio inglês não foi meu único professor nessa matéria. Meu pai, Luiz Gonzaga de Carvalho, tinha um jeito muito especial de ser amável, humilde e atencioso com os mendigos da sua cidadezinha, que o adoravam. Isso era tanto mais notável porque ele sabia muito bem ser grosso quando queria, especialmente com pessoas importantes. Tinha até um estilo de insultar absolutamente original, artístico mesmo, o qual copio na parca medida dos meus talentos.

Aprendendo com o Dr. Johnson

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 21 de março de 2007

O dr. Samuel Johnson, escritor maravilhoso e antepassadosetecentista dos modernos conservadores, dizia que o teste definitivo de uma civilização está na sua maneira de tratar os pobres. Na sua época, ninguém tinha tido ainda a idéia brilhante de desvencilhar-se deles entregando-os aos cuidados da burocracia estatal. Essa idéia, mesmo que não seja levada à prática, já vale por um teste: ela mostra que a sociedade não sabe o que fazer com os pobres, não quer trato direto com eles e preferiria reduzi-los a mais um ítem abstrato, invisível e inodoro do orçamento estatal. Ela acha isso mais higiênico do que enfiar a mão no bolso quando eles pedem uma esmolinha e infinitamente mais palatável do que ter de conversar com eles quando têm o desplante de puxar papo na rua com S. Excia. o contribuinte. Na verdade o cidadão moderno desejaria chutar todas as suas responsabilidades para o Estado: ele não quer proteger sua casa, mas ser protegido pela polícia; não quer educar-se para educar seus filhos, mas entregá-los a técnicos que os transformarão em robôs politicamente corretos; não quer decidir o que come, o que bebe, o que fuma ou deixa de fumar: quer que a burocracia médica lhe imponha a receita pronta; não quer crescer, ter consciência, ser livre e responsável: quer um pai estatal que o carregue no colo e contra o qual ele ainda possa fazer birra, batendo o pezinho na defesa dos seus “direitos”. O Estado sorri, porque sabe que quantos mais direitos concede a esse cretino, mais leis são promulgadas, mais funcionários são contratados para aplicá-las, mais repartições burocráticas são criadas, mais impostos são cobrados para alimentá-las e, enfim, menor é a margem de liberdade de milhões de idiotas carregadinhos de direitos.

Essa civilização já se julgou a si mesma: constituída de moleques egoístas e covardes, ela não é capaz de se defender. Ao primeiro safanão mais forte, vindo dos comunistas, dos radicais islâmicos ou dos autonomeados governantes do mundo, ela se põe de joelhos abjurando lealdades milenares e prontificando-se a transformar-se no que o novo patrão deseje.

Nem todos, é claro, se acomodam tão bem a essa agonia deleitosa. Ainda há homens e mulheres de verdade, capazes de agir por si próprios, sem intermediário estatal, orgulhosos da sua liberdade. Eles sabem que a liberdade efetiva não tem nada a ver com “direitos” outorgados pela burocracia espertalhona. Sabem que a liberdade vem do coração e depende de símbolos inspiradores profundamente arraigados na cultura dos milênios. Quando são abordados por um pobre na rua, sabem que não estão diante de um problema administrativo. Não correm para esconder-se sob as saias da burocracia. Encaram o pobre como um igual temporariamente caído, merecedor de tanto carinho e atenção quanto eles próprios o seriam em circunstâncias análogas. Não hesitam em estender algum dinheiro ao infeliz, em conversar com ele, às vezes em assumir responsabilidade pessoal por tirá-lo da sua condição infame, dando-lhe trabalho, um abrigo, um conselho.

A sociedade já se condenou a si mesma quando virou o rosto aos pedintes, sonhando em transformá-los numa equação administrativa. Só homens e mulheres de verdade podem salvá-la da derradeira abjeção. Não hesito em incluir entre eles o sr. Fausto Wolff, que é burro, metido e comunista, mas, graças à boa influência da sua esposa, está se tornando gente. Olhem só o que ele escreveu no JB de 2 de janeiro:

Minha mulher leva na bolsa R$ 10 em moedas para dar aos meninos que lhe pedem dinheiro para comer. Outro dia, contou-me uma história que comoveu este velho coração de granito. Um menino pretinho de cinco anos pediu-lhe dinheiro para comprar um pão. Ela disse-lhe: ‘Pois não, meu filhinho
querido’. O menino ficou com olhos cheios de lágrimas. Afastou-se e logo voltou e pediu mais dinheiro, mas, em verdade, o que queria era ouvi-la dizer que ele era querido. Logo, outros se aproximaram apenas para ouvir palavras carinhosas e se sentirem seres humanos. Em dez anos estarão queimando ônibus?

É isso aí, sra. Wolff! Se todas as mulheres brasileiras ensinarem isso a seus maridos, um sorriso de esperança brilhará nos rostos de milhões de crianças deste país.

P. S. – Leiam também http://www.olavodecarvalho.org/semana/grossura.htm.

O patinho feio da política nacional

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de março de 2007

Um artigo que publiquei no Rio de Janeiro, mas que o leitor do Diário do Comércio pode encontrar em http://www.olavodecarvalho.org/semana/070308jb.html, acabou suscitando mais polêmicas do que eu esperava. Nele eu esboçava as preliminares de uma crítica ao hábito da direita brasileira de denominar-se “liberal” em vez de “conservadora”, hábito que resulta numa desastrada inversão das suas intenções e propósitos, já que o liberalismo é uma etapa do movimento revolucionário mundial e não se pode frear um movimento fazendo-o dar, como dizia Lênin, um passo atrás para dar dois para a frente.

A terminologia política americana é muito mais sã e realista do que a brasileira. Direita e esquerda, nos EUA, são chamadas respectivamente “conservatism” e “liberalism”, mostrando que o pivô da luta política é a escolha entre conservar os valores e princípios dos Founding Fathers, ou, ao contrário, liberar-se deles. O fato de que esses valores e princípios absorvam em si o legado do liberalismo econômico clássico (de Adam Smith a Ludwig von Mises) poderia gerar algum equívoco, mas nunca vi um americano com mais de oito anos de idade confundir “classic liberalism”, que é uma teoria econômica, com o liberalismo político de Ted Kennedy, Nancy Pelosi e George Soros, que tende a uma economia estatizante e socialista. É que a divergência em economia é somente um elemento de detalhe numa disputa que se desenrola em torno de diferenças muito mais abrangentes e profundas. Em última instância, o que está em jogo é saber se os princípios da Constituição continuarão valendo em sentido material, substantivo, com todas as suas implicações culturais e morais para o guiamento da vida americana, ou se, ao contrário, serão interpretados num sentido meramente jurídico-formal que permita usá-los em favor de valores opostos aos que inspiraram a redação do documento.

A diferença é exemplificada pelo debate atual em torno do famoso “muro de separação” que Thomas Jeffenson pretendia erguer entre o Estado e as religiões. A idéia original era impedir que o Estado se tornasse instrumento de perseguição religiosa. Os “liberals” apegam-se hoje à fórmula, mas esvaziando-a do seu significado e transformando-a num pretexto jurídico-formal para banir da vida pública toda expressão da fé, instituindo a perseguição anti-religiosa generalizada que, a esta altura, já se traduz numa profusão de leis repressivas.

O que no Brasil incitou a direita a autodenominar-se “liberal” foi o fato de que o debate político nacional se limita quase que por inteiro a uma questão econômica, a disputa entre intervencionismo estatal e livre mercado. Nesse quadro, a simples opção pelo “liberalismo clássico” em economia acabou servindo para definir toda uma corrente política como “liberal” (ou, segundo seus adversários, “neoliberal”, um termo que já comentei aqui; v.  http://www.olavodecarvalho.org/semana/050725dc.htm). Os inconvenientes disto são múltiplos.

Desde logo, o fato de uma corrente política aceitar definir-se exclusivamente pela sua opção econômica serve para legitimar um debate político atrofiado, expressão cultural de uma sociedade doente obcecada por dinheiro – ou antes, como dizia o Millôr Fernandes, pela falta de dinheiro.

Em segundo lugar, o liberalismo político é desde suas raízes um movimento revolucionário e anti-religioso. A origem do termo é espanhola, opondo “liberales” a “serviles”, abrangendo implicitamente neste último termo a totalidade dos fiéis católicos. Foi o liberalismo  que, na França, instituiu a “constituição civil do clero”, virtualmente banindo a Igreja do território nacional. Na linguagem das encíclicas papais, “liberalismo” é a denominação das correntes heréticas que diluíram o dogma tradicional, preparando o advento da apostasia geral e da “teologia da libertação”. Entre os protestantes, “liberalismo religioso” é o nome da traição organizada. “O liberalismo – como resumiu um pregador evangélico americano – substituiu-se à perseguição. A perseguição matava homens, mas fazia prosperar a causa; o liberalismo mata a causa bajulando os homens para induzi-los a compromissos. A verdade perseguida sobreviveu em todas as eras, mas a verdade comprometida nunca sobrevive à tragédia fatal em que a voz de Deus é igualada à voz das tradições humanas” (Judson Taylor, em http://gospelweb.net/OldTimersWorks/judsontaylor.htm).

Como no Brasil não há outras correntes direitistas além da “liberal”, a ela acorrem em busca de abrigo os conservadores católicos, protestantes e judeus. Mas aí, em nome da liberdade de mercado, são obrigados a camuflar as divergências que têm com os demais liberais em pontos muito mais decisivos de ordem moral e cultural. O “liberalismo” brasileiro, unificado exclusivamente por um programa econômico, é um saco de gatos no qual têm de conviver em harmonia abortistas e anti-abortistas, adeptos e inimigos da liberação das drogas e da eutanásia, fiéis religiosos ao lado de discípulos de Voltaire e Richard Dawkins empenhados em banir a religião da vida pública. Durante algum tempo, essas divergências podem parecer desprezíveis em face da luta mais imediata contra a economia estatista. Mas isso é uma ilusão mortal. Há tempos a esquerda internacional e local já decidiu que a estatização da economia pode ser adiada indefinidamente, se não sacrificada de vez em favor da fórmula mista chinesa — e que muito antes dela vem o combate no campo cultural, a luta contra a civilização judaico-cristã. Nessa luta, bandeiras como a liberação das drogas, a proibição da “homofobia” ou a legalização da eutanásia são prioritárias. Como se pode combater o esquerdismo concentrando o ataque num objetivo hipotético de longo prazo e cedendo ao inimigo todo o campo de batalha real e imediato onde ele já conquistou a hegemonia e tem quase o controle completo da situação? Essa é exatamente a “fórmula estratégica” do liberalismo brasileiro, que no seu enfrentamento com os esquerdistas tem de se limitar à argumentação econômica para não pôr à mostra suas profundas e insanáveis divergências internas, enquanto o discurso da esquerda está livre para abranger todos os temas e todas as dimensões da vida social, seguro de poder contar, em muitas áreas, com o apoio de uma parcela dos “liberais”.

Foi para limpar o terreno e possibilitar uma discussão séria desse problema que escrevi o artigo “Por que não sou liberal”.

O artigo exibia as palavras “liberal” e “conservador” entre enfáticas aspas, para indicar que significavam “tipos ideais”, não assimiláveis a qualquer grupo político concretamente existente nos arredores. Não obstante, muita gente o leu como se fosse um ataque desferido contra um desses grupos. Houve até quem visse nele o manifesto de um alguma confraria política mais ou menos clandestina, que por fim saísse do armário esbofeteando as vizinhas para poder mais facilmente se autodefinir por oposição a elas.

No Brasil de hoje, é isso o que se chama de “ler”. Primeiro, atribuir intenções ao autor e discutir com elas, não com ele. Segundo, transpor o texto para o modo imperativo, interpretando-o como se fosse a expressão de um desejo ou ordem, uma tentativa de interferir na realidade e não de compreendê-la. Já expliquei anos atrás que, das famosas três funções da linguagem classificadas por Karl Bühler, os brasileiros só sabiam de duas: a expressiva (manifestar estados interiores) e a apelativa (influenciar as pessoas). A função denominativa (descrever e analisar a realidade) era totalmente desconhecida nesta parte do mundo, e quem quer que cometesse a imprudência de falar ou escrever alguma coisa nessa clave seria automaticamente traduzido para as outras duas.

Por trás da linguagem informal, meu artigo era um estudo estritamente científico de duas fórmulas ideológicas consideradas na sua pura lógica interna, independentemente de acréscimos e modificações que pudessem sofrer de fatores sociológicos ou psicológicos intervenientes. Para tirar dele conseqüências políticas aplicáveis à situação concreta seria preciso antes compreendê-lo no próprio nível teórico em que se colocava. Saltando essa etapa, alguns preferiram aplicá-lo diretamente a si próprios e achar que eu estava falando mal deles, ficando naturalmente indignados com a injustiça que eu lhes fazia (é a terceira regra de leitura vigente neste país: substituir a compreensão inteligente por alguma afetação de sentimentos morais elevados; a quarta é interpretar tudo como mensagem cifrada de um grupo e não como esforço cognitivo de um cérebro individual).

Quem sabe que os sistemas de idéias têm uma estrutura própria, independente e diversa das intenções subjetivas de seus seguidores, entende claramente que a distinção entre liberalismo e conservadorismo é exatamente aquela que expus. Se alguém não o entende é porque, levado por hábito pessoal ou grupal, anexa ao liberalismo valores externos, — morais ou religiosos — que não são logicamente integráveis na sua estrutura. Muitos dos que caem nesse erro são apenas conservadores que se afeiçoaram, por motivos de pura oportunidade local, ao rótulo de liberais.

Quando o liberal enfezado exclama: “Nós temos princípios, não somos aqueles amoralistas que você descreveu”, ele mostra, desde logo, sua incapacidade de distinguir entre o arranjo terminológico local e a ideologia liberal em si. Mostra ainda sua confusão entre “princípios” e meras regras operacionais.

Um princípio é assim chamado porque vem, ora bolas, no princípio! Não na continuação de alguma coisa. É um preceito fundante e não fundado, condicionante e não condicionado. Justamente porque não depende de mais nada, porque vale por si mesmo, é que um princípio tem de poder ser aplicado universalmente, sem modificações nem atenuantes, a todos os casos abrangidos no seu enunciado, sem que isso leve a nenhuma contradição lógica e muito menos a absurdidades reais. Sem essa propriedade, nenhum enunciado é um princípio. “Não matarás”, por exemplo, é um princípio. Um indivíduo decidido a cumpri-lo até às últimas conseqüências, abstendo-se de tirar a vida alheia mesmo quando os outros o julgassem moralmente obrigado a fazê-lo, nem por isso teria se tornado um assassino. Um omisso ou um covarde, talvez; não um assassino. A extensão indefinida das aplicações não modifica o sentido do princípio, que é princípio justamente por isso: por estar na extremidade inicial de uma série ilimitada de conseqüências sobre as quais ele impera com autoridade inabalável, absoluta.

Já as regras operacionais não instituem o seu próprio campo de aplicação: ele é demarcado por um número ilimitado de outras regras operacionais, algumas delas tácitas ou só descobertas ex post facto, bem como por um número também ilimitado de conveniências de ordem prática que podem intervir em cada caso. Toda regra operacional é por isso intrinsecamente deficiente e não pode ser aplicada senão com muitos atenuantes e modificações.

Um princípio vale por si, independentemente da variedade das situações. As regras operacionais, ao contrário, sempre se dispõem em sistemas e hierarquias compostos essencialmente de limitações mútuas (culminando, idealmente, num princípio que as limita a todas sem ser limitado por elas). Uma regra operacional que, desconhecendo seus limites internos e externos, busque estender indefinidamente seu campo de aplicação, acabará se chocando não só contra outras regras e contra as conveniências externas, mas contra si própria. “Agir no interesse próprio”, por exemplo, é uma regra operacional. Ela funciona em certas circunstâncias da vida, mas, se passar de um certo limite, jogando os interesses do indivíduo contra os de todos os demais, ele se tornará presa de uma situação de isolamento ou de hostilidade que não é do seu interesse de maneira alguma. A regra, para funcionar, tem de ser freada por um sem-número de outras considerações. Na verdade ela já vem com freio, porque os interesses de uma criatura limitada são eles próprios necessariamente limitados, no mínimo pela duração limitada da sua vida. Uma regra operacional erigida indevidamente em princípio leva necessariamente à sua própria negação.

Ora, quais são os “princípios” do liberalismo? Quais são os critérios máximos e comuns a que os liberais, ao tentar dirimir suas divergências internas, apelam como a princípios supremos incumbidos de fundamentar julgamentos unânimes e restaurar a unidade do conjunto?

São dois: a liberdade e a propriedade privada.

Mas esses não são princípios de maneira alguma. São regras operacionais. Quando um liberal diz que “a liberdade de um termina onde começa a do outro”, ele está reconhecendo exatamente isso. E o mesmo aplica-se à propriedade: o terreno do Zé-Mané termina onde começa o do Mané-Zé. Nem a lei da propriedade nem a da liberdade podem ser estendidas ilimitadamente sem negar-se a si próprias. A liberdade absoluta equivaleria à completa ausência de constrangimentos externos, isto é, ao poder absoluto e à completa extinção da liberdade. Do mesmo modo, a propriedade absoluta corresponderia à posse integral e perfeita: seria propriedade em sentido lógico e não jurídico, como a propriedade de respirar, que você não pode vender e portanto não é propriedade em sentido jurídico de maneira alguma.

O “não matarás” não tem limites internos de qualquer natureza. Ele exclui somente aqueles casos que, a priori, já estão fora do seu enunciado, como por exemplo a defesa própria: defender-se não é “matar”, é tentar sair da encrenca por algum meio que, independentemente da sua intenção, resulte na morte do atacante.  Se quem se defende em tais circunstâncias não é assassino, muito menos o é quem se recuse a fazê-lo, estendendo a aplicação literal do princípio até à aceitação passiva do dano próprio. Já a liberdade e a propriedade têm o dom inato de liquidar-se a si mesmas quando se erigem em princípios.

Se o liberalismo desemboca com tanta frequência no socialismo – como Verkhovenski pai gera Verkhovenski filho em Os Demônios de Dostoiévski –, é precisamente porque se constitui de regras operacionais que não têm, por definição, a abrangência necessária de princípios capazes de dar conta de suas próprias conseqüências.

O liberalismo é assim em razão da profunda influência que recebeu de Kant. Todo o esforço do filósofo de Koenigsberg foi para esvaziar a moral (e sua filha primogênita, a filosofia política) de todo conteúdo substantivo, reduzindo-a a um punhado de exigências formais, como por exemplo, “age de maneira que a regra que inspira tua ação possa ser adotada em todos os casos idênticos”. Kant não nos diz que regra deve ser essa, e não o diz justamente porque a moral, para ele, não pode ter nenhum fundamento objetivo. Ela repousa inteiramente na “fé”, compreendida como crença subjetiva, e nos “imperativos categóricos”, isto é, em exigências que ninguém pode justificar mas que todos se sentiriam aviltados se não as cumprissem. Para Kant, só existe conhecimento substantivo dos “fenômenos”, aparências naturais estudadas pela ciência física. Tudo o mais são formas lógicas, “imperativos categóricos” ou matéria de crença pessoal. Como nenhuma dessas três coisas é um princípio, no sentido substantivo do termo, isso equivale a dizer que a moral kantiana e a política liberal que nela se inspira são totalmente desprovidas de princípios, exceto lógico-formais e operacionais.

Guido de Ruggiero notou, em sua clássica “História do Liberalismo Europeu”, que o liberalismo não era uma filosofia política no sentido substantivo, mas um “método”, um conjunto de preceitos e regras que podiam ser adaptados às mais diferentes situações mediante um número ilimitado de ajustes e atenuações, conforme as exigências dos casos concretos.

Qualquer afirmação de um princípio substantivo é, na perspectiva kantiana, uma invasão do território reservado às ciências. O kantismo é, nesse sentido, o pai do positivismo, que os liberais de hoje tanto abominam porque têm contra ele aquele ódio extremo dos irmãos inimigos. Na verdade, odeiam nele tão somente a sua política centralizante e intervencionista, mas continuam subscrevendo a proibição kantiano-positivista de levar o conhecimento humano para além dos “fenômenos” e, portanto, de conhecer qualquer princípio moral universal no sentido que esses princípios tinham em Platão ou no cristianismo.

A própria sacralidade da vida humana não cabe de maneira alguma na perspectiva liberal. Para não ser abandonada de todo, ela acaba tendo de ser justificada com base nos dois pseudo-princípios da liberdade e da propriedade. Raciocina-se, por exemplo, da seguinte maneira: o corpo e sua vida são propriedades privadas do seu portador, o qual tem a liberdade exclusiva de decidir o que fazer com eles; logo, matá-lo contra a vontade dele é violar sua propriedade e sua liberdade. Tendo proclamado isso, o liberal acredita ser um sujeito boníssimo, porque defende a integridade da vida humana sem ser compelido a isto por nenhuma obrigação religiosa ou princípio universal, mas somente pelo livre exercício da sua razão individual. Mas não há nisso racionalidade nenhuma, há apenas uma confusão dos diabos. Desde logo, produzir um argumento em favor de alguma coisa não é o mesmo que fundamentá-la. A liberdade e a propriedade podem ser alegadas em favor da proibição de matar, mas não a fundamentam de maneira alguma, porque não são princípios. É impossível, por exemplo, decidir só com base nessas regras se o aborto deve ser permitido ou não: a aplicação dos “princípios” a esse caso só leva a perplexidades insolúveis, como por exemplo, a de saber se o feto é propriedade da mãe ou é dono de sua própria vida, discussão imbecil e postiça que já mostra a deficiência intrínseca do conceito de propriedade, quanto mais a inviabilidade de estender sua aplicação ao ponto de fazer dele o fundamento de alguma coisa mais básica como o direito à vida. Para qualquer pessoa não intoxicada do preconceito kantiano, o direito à vida é que é fundamento da liberdade e da propriedade. Reconhecem-no implicitamente todos os códigos penais do mundo (exceto o velho código penal soviético) ao prescrever penas mais graves para o homicídio do que para a mera subtração da propriedade ou da liberdade. Fundamentar o direito à vida com base na liberdade e na propriedade é torná-lo tão ambíguo quanto elas. E aí a única solução possível é transformar o “Não matarás” num “imperativo categórico”, isto é, em algo que é assim só porque o fulano sente que deve ser assim.

Um liberal pode ter princípios, sim, e a maioria dos que conheço os têm, mas os têm enquanto indivíduos concretos e não enquanto “liberais”. A incongruência da situação reside em que o método liberal, posto a serviço de princípios e valores substantivos tradicionais, constitui precisamente aquilo que nos EUA se chama “conservatism”. Nesse sentido, nem Friedrich Hayek nem Ludwig von Mises jamais foram liberais: e nos EUA não há quem não os considere anjos tutelares do movimento conservador. Porém o mesmo método, separado da moldura tradicional e erigido ele mesmo em princípio, se torna uma arma terrível nas mãos do movimento revolucionário, que através dele põe a serviço da mutação cultural gramsciana milhões de idiotas úteis liberais dispostos a ceder em tudo o que não lhes pareça limitar diretamente a liberdade e a propriedade (ou, pior ainda, em tudo que pareça fomentá-las mersmo à custa de dessensibilizar moralmente a população). Muitos desses, na verdade, não são propriamente idiotas: são liberais no sentido estrito e espanhol do termo, empenhados em destruir a civilização judaico-cristã e em implantar universalmente o império do niilismo por meio da radicalização da economia de mercado transfigurada em molde e princípio para a conduta humana em todas as áreas da vida. Não é sem razão que alguns deles se gabam de ser mais revolucionários que os socialistas.

A economia de mercado, como o liberalismo em si, é um esquema formal, um sistema de regras operacionais que pode ser posto a serviço de princípios e valores ou, usurpando o lugar deles, corroê-los e dissolvê-los. Hoje em dia, no Brasil, chamam-se igualmente “liberais” os adeptos de ambas essas coisas. Mas é uma unidade meramente verbal encobrindo divergências ainda mais profundas e insanáveis do que a oposição de economia de mercado e economia dirigida.

A idéia de unificar sob a bandeira de uma simples predileção econômica pessoas e correntes separadas por concepções morais e civilizacionais opostas e incompatíveis entre si é tão desastrada, que a autodissolução do “liberalismo” nacional já começou. O Instituto Liberal de Porto Alegre mudou seu nome para Instituto Liberdade, e o Partido da Frente Liberal para Partido Democrata. É a carapaça verbal que se rompe, deixando à mostra a confusão interna. O “liberalismo” brasileiro nunca passou de um arranjo oportunista, incapaz de impor respeito a seus adversários ou até a si próprio. A maior parte dos liberais que conheço não são liberais. São conservadores com nome trocado. Confundem o liberalismo econômico clássico, que é parte integrante da tradição conservadora, com a ideologia liberal que é uma camada histórica do movimento revolucionário. Como acreditam no primeiro, ostentam na lapela o emblema da segunda. Imaginam que assim parecem mais “progressistas”, podendo usurpar o prestígio da esquerda e chamá-la de “atrasada”. Mas essa aparente astúcia retórica, além de obrigá-los a reprimir seu conservadorismo e a restringir a luta ao terreno econômico, tem um segundo preço maior ainda: fazendo da sucessão temporal um critério de superioridade, eles acabam endossando uma metafísica predestinacionista da História que é a essência mesma da ideologia revolucionária (v. meu artigo de 26 de fevereiro, http://www.olavodecarvalho.org/semana/070226dc.htm), e com isso ajudam a precipitar as transformações culturais que produzem inevitavelmente a ascensão da esquerda. É por nunca ter examinado seriamente essas contradições que o liberalismo brasileiro, ao longo dos últimos vinte anos, veio caminhando de derrota em derrota, de humilhação em humilhação.

Quanto tempo falta para que aqueles “liberais” que acreditam em princípios substantivos – religiosos ou não – descubram que nunca foram liberais e sim conservadores? Com isso, decerto, perderão muitos falsos amigos. Mas, afinal, o patinho feio também teve de abdicar de falsas afinidades para descobrir que era algo de melhor que um pato.

Tenho a certeza de que qualquer candidato a qualquer cargo que seja, se tiver a coragem de se apresentar em público com um programa ostensivamente conservador, sem o breque mental constitutivo que trava os movimentos dos liberais, alcançará um sucesso eleitoral estrondoso. O conservadorismo é um sistema de valores, e esses valores são os do povo brasileiro, os da gente humilde e sem instrução que não entende nada de economia mas entende imediatamente a linguagem da moral, da religião, das tradições. São dezenas de milhões de pessoas à espera de alguém que as represente na política. Só o conservadorismo pode atendê-las, mas antes tem de consentir em deixar de ser pato.

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