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Educando para a boiolice

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de abril de 2007

Mal eu havia acabado de escrever que os alunos das escolas americanas são “sitting ducks”, e um dos sobreviventes do massacre da Virginia Tech apareceu no show “Today”, da MSNBC, dizendo a mesma coisa. Mas justamente esse, Zach Petkewicz, não foi pato nem ficou sentado. Encostou uma mesa na porta e impediu que Cho Seung Hui fizesse na sua sala de aula o que acabara de fazer nas salas vizinhas. Salvou uma classe inteira. Por que tão poucos, entre milhares de alunos, professores e funcionários, tiveram idêntica presença de espírito? Por que ninguém atacou o coreano maluco enquanto ele recarregava sua pistola automática ou trancava as portas com corrrentes?

Meu filho Pedro, que suportou pacientemente um ano e meio de escola pública na Virginia, garante: “É uma educação para boiolas.” O equivalente inglês da palavra é sissies . Uma sissy não é necessariamente um gay . Sujeitos que nunca tiveram um único impulso homossexual podem ser sissies perfeitas. Basta lhes ensinar que o macho branco heterossexual cristão americano é o bicho mais desprezível da face da Terra e que, se ele for exatamente um deles, deve fazer o possível para parecer outra coisa. Aos mais sortudos dentre eles ocorrerá a idéia, ridícula mas inofensiva, de usar trancinhas afro nos cabelos louros. Outros tentarão formas de adaptação mais incisivas – e, dentre elas, a mais popular e politicamente correta é tornar-se tão tímidos, fracotes e efeminados quanto possível. Depois de alguns anos desse adestramento, o sujeito está pronto para desmaiar, ter crise histérica ou ficar paralisado de medo ante o agressor, exibindo ainda mais fragilidade na esperança insensata de comovê-lo.

Impossível, diante do espetáculo de pusilanimidade coletiva na Virginia Tech, não recordar aquela vovó tagarela e empombada do conto “A Good Man is Hard to Find”, de Flannery O’Connor, que, diante do assassino armado que acaba de matar a tiros toda a sua família, se apega até o último instante à crença idiota de que ele é no fundo um homem bom, incapaz de lhe fazer dano. Mais ou menos a mesma idéia com que aqueles cabeças-de-toucinho do “Viva Rio” subiram o morro levando flores no “Dia do Carinho” – e foram expulsos a bala.

gays valentes e heterossexuais boiolas. A quintessência da boiolice não tem nada a ver com sexo. É uma covardia abjeta, um desfibramento da alma, uma pusilanimidade visceral – que os educadores de hoje em dia consideram o suprassumo da perfeição moral e os engenheiros sociais da ONU gostariam de espalhar por toda a humanidade. É a fórmula da pedagogia usada nas escolas públicas americanas. É por isso que o pessoal cristão foge delas, preferindo o homeschooling . Os meninos educados em casa só vão à escola no fim do ano, fazer exame, e tiram sempre melhores notas do que os trouxas que ficaram lá o ano inteiro só aprendendo boiolice.

Para os negros, as mulheres, os gays e os membros de “minorias” em geral, o establishment usa uma outra receita corruptora, simetricamente inversa. Lisonjeia-os até enlouquecê-los por completo. Infla seus egos até à divinização. Ensina-os a achar que são credores do universo, que o simples fato de dirigirem a palavra a um branco adulto é um ato de generosidade imperial. O fato de que negros e asiáticos, aqueles vindos nas tropas muçulmanas, estes nas hordas bárbaras, tenham atacado e escravizado milhões de europeus séculos antes de que o primeiro português desembarcasse na África é suprimido da História como se jamais tivesse acontecido. O branco – e, por ironia, especialmente o americano, dos povos ocidentais o que escravizou menos gente e por menos tempo – é definido como escravagista por natureza, o escravagista eterno, herdeiro de Caim, só digno de viver por uma especial concessão da ONU. Cada página dos manuais didáticos usados nas escolas americanas traz essas crenças insinuadas nas entrelinhas. Cada vez que um professor abre a boca em sala de aula, espalha mais um pouco desse entorpecente pedagógico nos cérebros infanto-juvenis. A coisa foi evidentemente calculada para estragar as almas, para alimentar o ódio e o ressentimento, para destruir o país por desmontagem sistemática.

Todos os preconceitos que existem no mundo surgiram espontaneamente dos conflitos entre os seres humanos. Agora, pela primeira vez na História, há o preconceito planejado, calculado matematicamente por engenheiros comportamentais e inoculado com requintes de técnica pedagógica nas cabeças da molecada. É por isso que há aqui um verdadeiro abismo entre as gerações. As pessoas de quarenta anos para cima são simpáticas, prestativas, generosas e patriotas. Os jovens são ranhetas insuportáveis, tanto mais pretensiosos e arrogantes quanto mais dependentes, incapazes de cuidar de si próprios e defender-se nas situações difíceis. Falo, é claro, daqueles que foram educados nas escolas públicas. Os que não querem ficar como eles buscam refúgio nas escolas particulares conservadoras (que existem aos montões mas são caras), nas igrejas, no homeschooling e nas Forças Armadas.

Alguns anos atrás, a escritora Christina Hoff Sommers, em The War Against Boys: How Misguided Feminism is Harming Our Young Men (Simon & Schuster, 2000) já advertia contra a epidemia de frescura planejada que educadores e psicólogos feministas, desarmamentistas, pacifistas, gayzistas etc. estavam montando, muitos deles imbuídos da alta missão de amansar por meio da castração generalizada a “cultura americana da violência” – um estereótipo hollywoodiano em cuja realidade acreditavam piamente pelo simples fato de ter sido inventado por feministas, desarmamentistas, pacifistas, gayzistas iguais a eles. “Asinum asinus fricat”, já observavam os romanos: o asno afaga o asno – um panaca esquerdista inventa uma lenda difamatória, os outros levam a coisa mortalmente a sério, e dali a pouco há milhares de teses universitárias a respeito, com ares de profunda ciência social, e comissões técnicas pagas a peso de ouro pelas fundações beneméritas para criar soluções geniais. O resultado é Cho Seung Hui. Cada um desses garotos que de repente saem matando gente a esmo tem a cabeça cheia de ódio ao país que lhe deu tudo. Tim McVeigh queria derrubar o sistema, os meninos de Columbine eram gays intoxicados de falatório anticristão, Cho Seung Hui sonhava em tornar-se um vingador ismaelita para fazer o Ocidente em cacos. Cada um foi educado e doutrinado para fazer o que fez. Enquanto uns intelectuais iluminados lhe infundiam o desejo de vingança contra quem nunca lhe fez mal algum, outros votavam leis que desarmavam os professores e funcionários nas escolas, os padres e pastores nas igrejas. Uns preparavam psicologicamente o assassino, outros amarravam as mãos das vítimas. Vocês já repararam que os invasores armados de pistolas e rifles só atacam igrejas e escolas? Já ouviram falar de algum que invadisse um clube de caça, um estande de tiro, uma assembléia da National Rifle Association? Aí vigora o princípio do “loco si, pero no tonto”. O país está repleto de estandes de tiro ao pato – e os Zachs Petkewicz se tornam cada vez mais raros. E depois aqueles que criaram propositadamente essa situação saem diagnosticando o fenômeno como produto da “cultura americana”, recomendando mais desarmamento civil, mais anti-americanismo, mais efeminamento compulsório da juventude nas escolas. Tiram proveito publicitário retroativo da sua própria maldade. É a receita infalível da propaganda revolucionária: “Xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz.”

Mas o pessoal por aqui já começou a perceber o truque, ainda que com um bocado de atraso. Allen Hill, um consultor de segurança entrevistado no mesmo programa que divulgou o episódio de Zach Petkewicz, declarou alto e bom som que as escolas têm de ensinar os meninos a ser mais valentes e agressivos. “Os bandidos estão contando com que os americanos fiquem sentados e não façam nada.”

“Os maus planejam seus ataques. As escolas têm de planejar sua defesa e reagir com igual agressividade. O treinamento tem de ser tão intensivo e levado tão a sério quanto o assassino leva a sério sua missão de matar.”

Há um país da América do Sul que, se ouvisse esse conselho, talvez não fosse vítima de cinqüenta mil homicídios por ano. Com uma diferença: ali os jovens não são tão fracotes. A boiolice está espalhada entre os homens adultos, nas ruas, nas fábricas, nos escritórios. Essa gente tem medo de armas até quando vistas pelo lado do cabo. E o governo, a Rede Globo e a Folha de S. Paulo querem lhe infundir mais medo ainda. É uma situação muito mais desesperadora que a dos americanos. Com o dobro da população brasileira, os EUA têm cinco vezes menos crimes violentos do que o Brasil.

Teses sobre o movimento revolucionário mundial

Para informação dos leitores, transcrevo abaixo umas notas que tomei para a conferência que vou pronunciar hoje para oficiais de Estado-Maior, americanos e brasileiros, na Academia Militar de West Point. Elas são só um esquema para desenvolvimento oral, mas nos próximos artigos darei mais detalhes a respeito.

1. O movimento revolucionário é um fenômeno único e contínuo ao longo do tempo, pelo menos desde o século XV. Cada geração de revolucionários tem consciência de ser herdeira e continuadora das anteriores. Isso está abundantemente documentado nos seus escritos. É um fato, não uma interpretação minha.

2. O movimento é contínuo mas não linear nem unidirecional. Ele progride através de mutações e revoluções internas e alimenta-se de seus próprios fracassos, que fornecem â geração seguinte uma poderosa motivação para o aprofundamento crítico das metas e da estratégia.

Como suas metas declaradas mudam de geração em geração, o movimento geral tem flexibilidade bastante para absorver ou repelir os movimentos parciais, conforme as necessidades estratégicas e retóricas de cada situação. Um mesmo movimento parcial pode ser considerado revolucionário num momento e contra-revolucionário no momento seguinte.

3. A continuidade consciente do movimento revolucionário não implica de maneira alguma que as gerações subseqüentes assumam a responsabilidade pelos erros e crimes das anteriores. A consciência de continuidade histórica que é afirmada no plano dos fatos é negada no plano do julgamento moral. Como na perspectiva do movimento revolucionário as culpas pertencem ao passado, a inocência de cada nova geração de revolucionários é um pressuposto da própria existência do movimento. Por isso mesmo, os revolucionários antigos, se alguma culpa têm, a têm enquanto personagens do passado, e não enquanto revolucionários. Suas culpas são imputáveis ao “seu tempo”, não à sua atividade revolucionária em si. O inimigo do movimento, ao contrário, arca não só com suas próprias culpas mas também com as de seus antepassados reais ou figurados, isto quando não é acusado também pelos crimes da revolução: o revolucionário, depois de matar meia dúzia de reacionários, os odeia mais ainda porque esses malvados o obrigaram a matá-los, sujando de sangue suas mãos puríssimas.

4. O movimento revolucionário não se identifica com nenhuma de suas metas em particular, mas também não sabe definir de uma vez por todas a “essência” permanente por trás de todas elas. Essa essência, de fato, não pode ser definida substantivamente, só negativamente: (1) o movimento é efetivamente um movimento , uma agitação permanente em busca de (2) uma meta móvel que não pode ser definida no presente porque só o futuro que a realizar a terá diante dos olhos como objeto de conhecimento. O movimento revolucionário é portanto movimento permanente e movimento futurista . O futuro, por definição, permanece futura. O dia do ajuste de contas do revolucionário com sua própria consciência é adiado automaticamente. A coisa mais próxima de um exame de consciência, na mente de um revolucionário, é a crítica aos antecessores.

5. O movimento revolucionário é, desde suas origens, um esforço para tomar o lugar do Cristo anunciado no Apocalipse e substituí-lo por um agente terrestre no papel de salvador da humanidade. Os fins concretos do movimento prevalecem-se assim da dignidade de um mistério que pode ser vagamente anunciado mas não pode ser revelado antes do fim dos tempos. Daí o descompromisso do movimento revolucionário para com suas próprias metas concretas, que ele muda ou abandona à vontade.

6. É inútil usar contra o movimento revolucionário, em qualquer das suas épocas ou versões, a retórica que opõe os ideais aos feitos. O movimento revolucionário troca de ideais com a mesma desenvoltura com que se isenta de responsabilidade pelos seus próprios feitos. Ele vive da tensão entre ideais indefinidos e feitos não assumidos. A essa tensão articulam-se duas outras (v. diagrama): entre o culto dos santos do panteão revolucionário e a crítica devastadora das revoluções; e entre o movimento perpétuo e a esperança num “fim da história”, paraíso estático da justiça e da paz universais.

Pato sentado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de abril de 2007

Vocês conhecem a expressão americana Sitting Duck? É o pato sentado, o alvo mais fácil até mesmo para o atirador inepto. As escolas da Virginia estão repletas de patos sentados, porque uma lei demagógica, maliciosa e, a rigor, criminosa, proíbe o porte de arma aos professores e funcionários em serviço nessas entidades e até aos pais de alunos que por ali transitem.

Qualquer maluco que deseje iniciar uma carnificina sabe qual é o lugar mais seguro onde montar o espetáculo. Se apontasse uma arma para um caixa do WalMart, para um garçom de restaurante ou para um vendedor de cachorro quente numa praça de Richmond, levaria chumbo de dez fregueses ao mesmo tempo.

Mas para que o sujeito há de correr esse risco, se logo na esquina há uma multidão de trouxas desarmados, entregues à sanha dos assassinos por legisladores iluminados? O massacre de anteontem foi na Virginia Tech, mas podia ter sido em qualquer outra instituição de ensino do “Old Dominion”.

Mais ou menos um ano atrás, a Assembléia Geral da Virginia vetou uma emenda legal que, voltando atrás no desarmamentismo insano, devolvia aos professores, funcionários e alunos devidamente qualificados o seu antigo direito de portar armas no local de trabalho e estudo.

Na ocasião, o representante da Virginia Tech , Larry Hinckler, disse em entrevista ao jornal Roanoke Times (tão fanaticamente desarmamentista quanto a Folha e o Globo) que estava muito feliz com a derrota da emenda: “Tenho a certeza de que a comunidade universitária está agradecida à Assembléia, porque sua decisão ajudará os pais, estudantes, professores e visitante a sentir-se seguros no nosso campus.”

O resultado aí está.

As escolas têm sido há décadas um dos instrumentos principais de que se servem os agentes do globalismo para dissolver o tradicional espírito americano de altiva independência e implantar uma nova cultura em que o cidadão se torna cada vez mais indefeso, mais boboca, mais dependente da proteção estatal.

Até os anos 60, os EUA tinham as melhores escolas do mundo, e nenhum ministério da Educação. Desde a criação do ministério e da adoção dos “parâmetros curriculares” politicamente corretos ditados pela ONU, não só a qualidade da educação caiu formidavelmente, mas a delinqüência infanto-juvenil cresceu na mesma proporção.

Leiam, a respeito, The Deliberate Dumbing Down of America, de Charlotte Thomson Iserbit (Ravenna, Ohio, Conscience Press , 2001).

As provas que a autora aí apresenta são tantas, que a conclusão se segue inevitavelmente: crimes como os do jovem sul-coreano Cho Seung-Hui são o produto acabado de um longo e meticuloso esforço de engenharia social.

Muita gente por aqui reclama que os burocratas esquerdistas que dominam o sistema sistema oficial de ensino estão empenhados numa guerra cultural contra os EUA, destruindo a educação e a moral para em seguida atribuir os resultados medonhos de suas próprias ações à “lógica do sistema”.

Na mídia de todos os países do mundo há sempre uma multidão de papagaios prontos para repetir esse chavão de propaganda. Na infalível Rede Globo, incumbiu-se disso uma psicóloga da PUC, Sandra Dias, segundo a qual o morticínio foi “um ato heróico” por voltar-se contra “o consumismo americano”.

Também não faltaram na mídia brasileira as ponderações de sempre sobre a “cultura americana da violência” – as quais, vindas de um país do Hemisfério Sul que é recordista mundial de assassinatos, equivalem moralmente e geograficamente a

Profetas do capitalismo global

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de abril de 2007

O crescimento assustador do movimento esquerdista no mundo desde a queda da URSS deveria alertar os liberais e conservadores para que largassem de triunfalismo bocó e começassem a examinar seriamente a fragilidade das suas próprias certezas. A mais vulnerável delas é a de que a superioridade econômica intrínseca do capitalismo acabará fatalmente por prevalecer no fim das contas, trazendo ao mundo, na esteira da liberdade de mercado, o sonho dourado da democracia mundial.

Primeiro: não é previsível que a racionalidade econômica consiga domar tão facilmente as tremendas forças irracionais desencadeadas há séculos pelo advento das ideologias revolucionárias trazidas aliás no bojo do próprio sucesso capitalista. Até hoje ela não fez isso senão em áreas minúsculas da superfície terrestre, e mesmo assim de maneira vacilante e precária. A capacidade humana para a otimização racional da economia em bases capitalistas não é dom inato nem causa sui : é o produto de milênios de civilização e o resultado de um equilíbrio espiritual muito raro, difícil de obter e fácil de perder. Um pouco de conhecimento das raízes culturais daquilo que defendem não faria mal algum aos teóricos da “salvação pela economia de mercado”. Sugiro começar por “The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success”, de Rodney Stark (New York, Random House, 2005) e “The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains The West”, de Robert Royal (New York, Encounter Books, 2006 – o título é um pendant de “The God That Failed”, a hoje clássica antologia de desiludidos do comunismo, entre os quais Arthur Koestler e Ignazio Silone).

O capitalismo não brotou de nenhum plano genial, não nasceu numa prancheta de engenheiro social: foi-se formando aos poucos, do arranjo progressivo de uma multidão quase inabarcável de fatores sociais, culturais, políticos e religiosos. Não podemos confundir a sua realidade histórica complexa e viva com a sua posterior redução mental a um conceito simplificado, a uma “essência” transportável. No artigo anterior vimos que Marx caiu nessa. Mas os amigos do capitalismo também não escapam da tentação. Sua concepção da essência capitalista é quase farmacológica. Falam em “injeções de capitalismo” com a segurança e a empáfia de salvadores do mundo. Duas décadas atrás, prometiam dissolver a ditadura chinesa na poção mágica do livre mercado. Riam dos escrúpulos do investidor que relutasse em fomentar com seu dinheiro a prosperidade de um regime carniceiro. Os fatos mostraram quem tinha razão. O que se vê na China de hoje é uma riqueza deslumbrante em cinco cidades, a miséria indescritível em todo o resto do país e, imperando sobre o conjunto, o Partido cada vez mais poderoso e inabalável, usando os lucros do livre mercado para acumular bombas atômicas na esperança de jogá-las… onde? No Paraguai? Em Catolé do Rocha?

Os homens que criaram o capitalismo eram religiosos protestantes, imbuídos da noção de que o comércio era o campo preferencial para a prática coletiva das virtudes cristãs. Os homens que o teorizam hoje em dia são tecnocratas materialistas e economicistas, que não entendem um “a” da complexa estrutura espiritual da civilização e apostam cegamente em fórmulas mágicas que lhes parecem muito científicas. Foram eles que celebraram a queda da URSS como o advento do paraíso global democrático-capitalista. O que a década seguinte lhes trouxe foi o crescimento avassalador da rebelião esquerdista e a ocupação cultural da Europa pelos invasores islâmicos. Procure algum guru empresarial que tenha previsto esse desenvolvimento. Não encontrará nenhum. No entanto, os estudiosos de religiões comparadas já o previam desde a década de 30. Eles não são idiotas o bastante para acreditar que a economia determina o curso da história. Não são meros marxistas com sinal trocado como aqueles a quem o empresariado paga rios de dinheiro para que o intoxiquem de ilusões.

Segundo: A crença de que é possível construir uma sociedade espiritualmente neutra baseada na pura racionalidade econômica e na mecânica dos “interesses” é ela mesma uma ideologia revolucionária, que como tal só serve para solapar as últimas barreiras opostas pela civilização judaico-cristã ao avanço aparentemente irrefreável do totalitarismo no mundo.

Essa ideologia, que hoje muitos entendem como a encarnação mais pura do capitalismo, surgiu três séculos depois da prática capitalista e jamais foi adotada na Inglaterra ou nos EUA. Ela é a herdeira direta dos Lockes, Mandevilles e Benthams – a ala materialista e utilitarista do iluminismo inglês, a que me referi em artigo anterior – e o único país que acreditou nela foi a França. Leiam “Le Mal Français”, de Alain Peyrefitte (Paris, Plon, 1976), e verão no que deu: um capitalismo capenga, hiper-regulamentado, que reduziu ao estado de potência de segunda classe aquela que dois séculos e meio atrás era a nação mais rica e poderosa do universo.

Terceiro: A experiência mostra que um núcleo de racionalidade econômica não apenas pode coexistir com a irracionalidade revolucionária em tudo o mais, mas ainda contribui decisivamente para expandi-la, uma vez que, no deserto de valores criado pela própria ilusão economicista, a prosperidade crescente multiplica ad infinitum o “proletariado intelectual” das universidades, a multidão de ativistas e ongueiros, a burocracia virtual, classe revolucionária por excelência.

Quarto: Quando os capitalistas decidem criar canais de ação por onde escoar a energia sobrante da burocracia virtual, mas já estão eles mesmos espiritualmente secos e esturricados pela sua própria ideologia economicista, o melhor que conseguem fazer é subsidiar e tentar controlar de longe movimentos de massa que se tornam tanto mais odientamente anticapitalistas quanto mais tentam esquecer, em vão, a farsa dinheirista em que se sustentam.

Quinto: Mediante um esforço gigantesco de engenharia social, os interesses dos movimentos revolucionários de massa podem ser levados a convergir com o das grandes corporações capitalistas, mas que outra forma pode assumir esse arranjo matrimonial senão a do “mundo planejado”, a utopia global de Herbert George Wells, o triunfo final do socialismo fabiano, burocratização do universo e ante-sala do comunismo mundial?

Marx tinha alguma razão ao dizer que o capitalismo traz em si as sementes da sua própria destruição, mas essas sementes não estão na miséria crescente, na diminuição do consumo e na expansão ilimitada do proletariado. Simetricamente ao contrário, estão na prosperidade crescente que multiplica ilimitadamente a classe dos intelectuais ociosos, na expansão avassaladora da “indústria cultural” que os lisonjeia e aquece suas ambições e, por fim, na cooptação dos próprios capitalistas como financiadores da revolução mundial, embriagados pela falsa onipotência da economia de mercado desligada dos fatores culturais e religiosos que a geraram. Um bom ecoomista com algum gênio filosófico – isto é, um sujeito que fosse as duas coisas que Marx imaginava ser — teria podido prever esse desenvolvimento já no tempo dele. Infelizmente, o advento do próprio marxismo desviou o eixo da discussão para as virtudes respectivas, reais ou supostas, da economia socialista e capitalista. Mesmo depois que Ludwig von Mises demonstrou a absoluta inviabilidade da primeira, o debate continuou equacionado como um confronto entre dois sistemas econômicos. Erro mais alienante não poderia haver. O socialismo não é sistema econômico nenhum, é apenas uma casca ideológica construída em cima de uma economia que, informalmente, continua capitalista. Capitalista em sentido duplo: pela dose cavalar de capitalismo clandestino que o governo socialista não pode erradicar de maneira alguma e pela dependência crônica da ajuda proveniente dos países capitalistas (sobre esses dois aspectos, leiam, respectivamente, “Russia’s Economy of Favours: Blat, Networking and Informal Exchange”, de Alena V. Ledeneva, Cambridge University Press, 1998, e o já aqui citado “The Best Enemy Money Can Buy”, de Antony C. Sutton, Billings, Montana, Liberty House Press, 1986). Pelo lado econômico, o socialismo nunca foi nem será páreo para o capitalismo: o perigo que ele oferece é cultural e político: cultural, pela energia inesgotável que suga do próprio capitalismo através do crescente “proletariado intelectual”, como já expliquei acima; e político, pelos regimes teratológicos que vai criando aqui e ali, sempre com o apoio dessa massa ambiciosa e barulhenta.

Enquanto os capitalistas nada tiverem a opor ao projeto socialista senão a funcionalidade econômica e a concepção mecanicista de uma democracia baseada no modelo do mercado, eles estarão trabalhando para o socialismo. Se economicamente o socialismo é um fracasso, isso não diminui em nada a sua capacidade destrutiva, aumentada ainda pela tentação capitalista de concorrer com ele nos seus próprios termos, isto é, de fazer a revolução cultural antes que o socialismo a faça.

Mesmo supondo-se que a previsão do sucesso global da economia de mercado se revelasse acertada no fim das contas, ainda restariam duas perguntas fatais:

(1) Quando é “o fim das contas”?

(2) Quanto vai custar a espera? Quais os danos que o socialismo, não por seu sucesso, mas pelo seu fracasso estrondoso e sangrento, vai trazer à humanidade até o dia em que todos os cérebros reconheçam que, afinal, o capitalismo não era tão ruim quanto o imaginavam?

Os capitalistas que, desde o começo do século XX, subsidiaram generosamente o socialismo soviético na esperança de lucrar seja com o seu sucesso, seja com o seu fracasso, não erraram no seu cálculo econômico. Aqueles que hoje alimentam com seus investimentos a economia chinesa também não perdem dinheiro com isso. Apenas, fomentam por esse meio o genocídio sem fim e a revolução mundial que não criará uma economia socialista viável, mas transformará o capitalismo num inferno burocrático-policial fabiano.

O problema não é saber quem vai vencer no campo econômico. A hipótese socialista não existe. O problema é saber quanto vai custar a vitória do capitalismo. O preço ameaça ser mais alto do que a espécie humana pode pagar, se os capitalistas continuarem se recusando ao combate e prolongarem artificialmente a vida de um adversário que já nasceu moribundo. Um ataque decisivo e multilateral às ambições socialistas pouparia à humanidade sofrimentos inúteis e desnecessários como aqueles que foram impostos à Rússia e à China pela mistura de omissão e de falsa esperteza dos capitalistas ocidentais.

Na escala nacional, o momento de uma reação decisiva até já passou, e os que teriam a obrigação de liderá-la nem mesmo o perceberam. Se querem um indício do presente estado de coisas, leiam esta mensagem postada numa lista de discussões por um remetente que, por motivos de segurança, a assina com pseudônimo:

“Até agora, os usineiros e senhores das plantações de cana de açucar fingiram-se de mortos, enquanto o MST barbarizava com as propriedades de pecuaristas ou de plantadores de roça. Agora está chegando a hora deles. Este link ( http://www.folhadaregiao.com.br/link.php?codigo=65876 ) mostra um país sem lei, sem ordem e brevemente sem progresso… Se vocês vissem o que está acontecendo aqui na minha região, ficariam muito, mas muito preocupados. Não há missa que não tenha coleta de alimentos para os ‘irmãos camponeses’… Não há missa em que não se peçam ofertas para pagar gasolina e oleo diesel para as caravanas em apoio à reforma agraria… Só que estão atacando fazendas produtivas, com anos de exploração produtiva, matando gado, destruindo plantações, numa corrida de vandalismo que dá para ficar perplexo. Excetuando os jornais de interior, como o do link , você quase não vê ou assiste nada na TV. Portanto , os que moram em cidades grandes não estão sabendo do que ocorre por aqui. Estamos já vivendo uma chavização do campo e parece que ninguém ainda percebeu…”

Falando de mim

Um breve exame das páginas do Orkut dedicadas à nobre e aparentemente dificultosa tarefa de dar cabo da minha reputação é sempre, para mim, uma surpresa renovada. Existem, é verdade, páginas a meu favor, e até superam em número as de esculhambação. Mas estas ganham longe na quantidade de mensagens diárias. A atenção permanente e incansável que aí recebo de inimigos a quem em geral nunca vi e dos quais nada sei – muitos deles ocultos sob pseudônimos exóticos – ultrapassa tudo quanto uma vaidade mesmo demencial poderia exigir. Eles parecem não pensar em outra coisa, noite e dia, senão na minha pessoa que ao mesmo tempo declaram nula, desprezível e sem importância. Não deixam passar nada do que eu diga, mesmo de relance e ao acaso. Jurando indiferença e superioridade olímpicas, enfurecem-se com cada palavra minha, procuram por trás dela os motivos mais torpes e sinistros; vasculham a minha vida e a da minha família e, quando nada aí encontram que lhes pareça útil aos seus propósitos, põem-se a conjeturar as hipóteses mais mórbidas e grotescas para explicar como posso ser tão ruim ao ponto de existir e cínico ao ponto de continuar existindo depois de todos os seus esforços para eliminar esse flagelo. E escrevem, escrevem, escrevem. Escrevem sem parar, anotando cada suspeita fugaz, cada pensamento mau que a meu respeito lhes passe pela cabeça, como se fosse um tesouro digno de ser conservado para as próximas gerações. Não há defeito ou vício que já não me tenham atribuído, de mistura com um crime ou outro, sempre no intuito, dizem eles, de combater as minhas idéias e não a minha pessoa. E nenhum deles, em momento algum, dá jamais sinal de perceber em toda essa atividade verbal diuturna, febril e incansável, nada de anormal, nada de esquisito, nada de doentio. Ao contrário: continuam falando como se fossem o padrão mesmo da normalidade humana, aplicado ao diagnóstico de um monstro disforme e intolerável.

Da minha parte, não posso me impedir de achar no mínimo surpreendente que tantas pessoas se reunam para escrever milhares e milhares de páginas contra alguém que nem as conhece, e depois ainda assegurem fazê-lo porque ele as odeia, e não elas a ele. Também não vejo como achar normal e indigno de espanto o fato de que, desses milhares de atacantes, cada um, ao despejar na rede mais uns litros diários de sua substância mental fervente, se julgue merecedor de uma resposta pessoal detalhada, cortês e polida –, e, não a obtendo, se creia no direito de cantar vitória, proclamando que o alvo dos seus ataques fugiu ao debate. Como se esse alvo tivesse o dever estrito, o máximo interesse e sobra de tempo livre para explicar-se diariamente a um tribunal de fofoqueiros desconhecidos.

Um deles, após assegurar que nada tem contra mim e sim apenas contra as minhas opiniões, declara que espalhei filhos por aí e os deixei ao desamparo. E em seguida se queixa de que não quero debater com ele. Como se coubesse ao difamado defender-se ante o difamador e não a este defender-se ante a justiça.

Se fosse preciso alguma prova da loucura coletiva que se apossou das classes falantes no Brasil de uns anos para cá, só essa já seria mais que suficiente.

No extremo Ocidente do mundo

Quando li num artigo do Demetrio Magnoli que Alain Rouquié apelidou a América Latina de “Extremo Ocidente”, imediatamente me veio à lembrança um parágrafo escrito no século XI pelo filósofo persa Abu Ali al-Hussayn ibn Abd-Allah ibn Sina , ou, com nome latinizado, Avicena ( 980 1037 ). Tenho uma dívida enorme para com esse génio assombroso, que entendeu a lógica de Aristóteles melhor do que ninguém e me pôs na pista da “teoria dos quatro discursos” exposta em Aristóteles em Nova Perspectiva (Topbooks, 1998). Mas não é por isso que o menciono aqui: é porque o filósofo foi também profeta. Este trecho foi extraído da “Narrativa de Hay Ibn Yaqzan”, uma lenda mística que Henry Corbin traduz na íntegra em “Avicenne et le Récit Visionnaire”, publicado por Adrien Maisonneuve em 1954 (edição americana, “Avicenna and the Visionary Recital”, transl. Willard Trask, Dallas, TX, Spring, 1980):

“Na extrema ponta do Ocidente há um vasto oceano, que no Livro de Deus é chamado o Oceano Quente e Lamacento. As correntes que nele deságuam vêm de um país inabitado cuja vastidão ninguém pode circunscrever. Ninguém mora nesse país, exceto estrangeiros que ali desemcarbam inesperadamente. Perpétuas trevas reinam nesse lugar. Aqueles que para lá emigram recebem somente um raio de luz a cada vez que o sol se põe. O solo é um deserto de sal. A cada vez que um povo lá se instala e tenta cultivá-lo, ele o rejeita, o expulsa, e então vêm outro povo ocupar o seu lugar. Alguém começa uma plantação lá? Ela é desperdiçada. Ergue-se uma casa? Vem abaixo. Entre aqueles povos há disputas constantes, ou melhor, batalha mortal. Qualquer grupo que seja mais forte toma as propriedades e os bens dos outros e os força a emigrar. Então ele tenta se estabelecer na região, mas por sua vez colhe somente prejuízo e dano. É assim que eles se comportam. Eles nunca vão parar com isso… É um lugar de devastação, repleto de guerras, disputas, tumultos. Lá a alegria e a beleza só existem quando emprestadas de algum lugar distante.”

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