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O Evangelho segundo Luiz Mott

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de julho de 2007

O líder gay Luiz Mott, que se diz “Professor Doutor” e talvez o seja mesmo, já que os portadores desses títulos abundam nesta parte do universo, enviou ao jornal eletrônico Mídia Sem Máscara uma carta em que faz restrições literárias e teológicas ao meu artigo “Conspiração de Iniqüidades” (aqui publicado em 25 de junho). Sob o primeiro aspecto, ele o chama de “prolixo e pedante texto”. Achei particularmente adorável esse negócio de “tetexto” logo na entrada de uma reprimenda estilística. Mas deixemos isso para lá. Os professores doutores, no Brasil, escrevem assim mesmo, e de há muito já desisti de fazer algo por eles.

No que diz respeito ao conteúdo, meu artigo, segundo o referido, “ peca pelo abuso dos silogismos e calúnias contra a estratégia do Movimento Homossexual Brasileiro em ter reconhecidos seus direitos elementares de cidadania: do mesmo modo como os pastores e padres não podem nos púlpitos ou nas suas televisões citar e defender os versículos bíblicos que estimulam e abençoam o racismo, a discriminação contra as mulhres e a intolerância religiosa,  assim também, a Lei deve proteger os homossexuais dos ataques e calúnias de quantos abusam do santo nome de Deus para semear o ódio contra cidadãos homossexuais que jamais foram condenados pelo Filho de Deus, Nosso Senhora Jesus Cristo. Portanto, Olavo de Carvalho, o Papa Ratzinger, os pastores fundamentalistas et caterva podem espernear a vontade, pois a história mais cedo que se espera, fará justiça contra esses fariseus, reconhecendo que também os homossexuais são templos do Espírito Santo e revelam, quando discriminados, a verdadeira face de Jesus. É legal ser homossexual!

Eu gostaria de responder a isso, mas creio que não posso fazê-lo. A mensagem, breve o quanto seja, traz tantos pressupostos subentendidos que o simples esforço de elucidar o seu sentido vai consumir praticamente todo o espaço desse artigo.

Em primeiro lugar, se há na Bíblia “versículos que estimulam e abençoam o racismo, a discriminação contra as mulhres e a intolerância religiosa”, então, evidentemente, o delito nefando de homofobia não está só nuns quantos padres, pastores e rabinos que “abusam do santo nome de Deus” , e sim na própria Bíblia. O livro sagrado dos cristãos e judeus, segundo o Professor Doutor Mott, é criminoso em si. O Professor Doutor se faz de humilde e inofensivo, fingindo criticar apenas uns tantos abusados, quando na verdade ataca e criminaliza duas religiões na sua base mesma, na raiz da sua tradição.

O Professor Doutor não prega abertamente a proibição do livro, mas deixa claro que só está disposto a permitir sua leitura em voz alta se ele for expurgado de todos os trechos considerados inconvenientes. A pergunta “Quem fará a seleção?” é ociosa, pois, de um lado, o Professor Doutor já considerou desqualificados para essa função “o Papa Ratzinger, os pastores fundamentalistas et caterva ”, subentendendo por esta expressão latina todos os desafetos do movimento gay ; de outro lado, ele próprio já fixou o critério seletivo: devem ser excluídos todos os versículos desagradáveis aos gays, às feministas, aos abortistas, aos adeptos de religiões fetichistas e animistas, bem como aos não-cristãos e não-judeus em geral, que se sentem barbaramente discriminados ao ouvir dizer que os primeiros são Filhos de Deus e os segundos são o Povo Eleito. Também não é preciso perguntar o que sobrará da Bíblia depois dessa amputação. Não sobrará nada daquilo que hoje se entende por judaísmo ou cristianismo. O resíduo final não soará ofensivo a ninguém, exceto aos cristãos e judeus, esses discriminadores malditos. Com relação aos versículos condenados, o Professor Doutor afirma taxativamente que os sacerdotes “não podem” citá-los ou defendê-los nem mesmo dentro de seus templos respectivos. Notem bem. Ele não diz que eles “não devem” fazê-lo. Ele não diz que eles “não poderão” fazê-lo se for aprovada uma lei que os proíba. Ele diz simplesmente “não podem”, no presente do indicativo. A proibição vigora portanto desde já, independentemente de aprovado ou não o projeto de lei dito “anti-homofóbico”. E não estão proibidos só os versículos anti-homossexuais, mas também os anti-feministas, anti-fetichistas, etc. etc. Estão proibidos não por alguma lei aprovada no Congresso, mas pela decisão soberana do Professor Doutor. Mais ainda: a expressão “não poder” não significa apenas ilegalidade ou proibição. Significa impedimento real, impossibilidade objetiva. Tão logo o Professor Doutor anunciou sua vontade, ela se impõe por si mesma como uma lei cósmica, e contrariá-la se torna tão inviável quanto reverter o curso dos astros ou fazer com que dois mais dois dêem cinco.

Se os leitores duvidam que a autoridade do Professor Doutor é divina, onipotente e onipresente, leiam com atenção. Ele acaba de impugnar o texto da Bíblia, e no instante seguinte fala em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só podemos concluir que a fonte de onde ele recebeu a mensagem divina não é a Bíblia nem as tradições baseadas nela. É uma revelação direta, que revoga a anterior e traz ao mundo um novo corpo de mandamentos. Mas, se os senhores, com algum ceticismo, perguntam como chegou ao Professor Doutor essa revelação, é porque não entenderam a dupla afirmativa essencial da sua carta: “ Os homossexuais são templos do Espírito Santo e revelam, quando discriminados, a verdadeira face de Jesus”. Com relação à primeira parte, é claro que templos do Espírito Santo somos todos nós, membros da espécie humana. O Professor Doutor não iria descer do seu pedestal só para repetir uma mensagem velha de dois mil anos. A novidade que ele introduz aí é formidável: os homossexuais são templos do Espírito Santo não enquanto meros seres humanos, mas enquanto homossexuais. Há portanto uma forma especial de ser templo do Espírito Santo, a qual não deriva da condição humana em geral, mas da prática do homossexualismo. O macho da espécie torna-se um templo do Espírito Santo no instante em que vai para a cama com outro igual. A sodomia tornou-se o oitavo sacramento, revelado ao mundo pelo Professor Doutor.

Mas não pensem, por favor, que ele é apenas um profeta a mais, um Jeremias ou Isaías qualquer. Seu verdadeiro estatuto espiritual, infinitamente superior, é elucidado na segunda parte da afirmativa, onde ele declara que o homossexual discriminado – ele próprio, modéstia à parte – “revela a verdadeira face de Jesus”.

Eis aí resolvido o enigma das fontes da revelação. O Professor Doutor não “recebeu” a revelação de parte alguma, ele simplesmente é a revelação, é o Logos encarnado que vem ao mundo castigar os fariseus, rasgar as páginas da Bíblia e instaurar a nova legalidade cósmica com a lista do que pode e do que não pode.

A diferença, a novidade radical desse acontecimento é que Cristo, na sua primeira vinda ao mundo, excluiu categoricamente a possibilidade de mudar uma só letra que fosse da Lei e dos profetas. O Segundo Advento copidesca, modifica e exclui páginas inumeráveis, institui o sacramento da sodomia e destina às penas do inferno todos aqueles que, como os profetas hebraicos, enxerguem nessa prática alguma coisa de errado.

Tão logo compreendido o sentido da mensagem do Professor Doutor, nota-se facilmente que ela não pode ser respondida. Não se discute com a autoridade divina, sobretudo quando ela não vem pelos canais indiretos da profecia e da tradição, mas pela própria presença do Verbo que se fez banhas e foi sacudi-las na Parada Gay.

Tudo o que posso fazer diante de acontecimento de tal magnitude é imergir em profundo silêncio contemplativo.

***

Não poder responder à mensagem do Professor Doutor não impede, no entanto, que eu faça a respeito uma distinção básica entre o paranóico megalômano ostensivo e o camuflado. O primeiro declara abertamente que é Deus. O segundo deixa isso subentendido nas entrelinhas. O primeiro desmoraliza-se a si mesmo instantaneamente. O segundo fascina a platéia com um discurso apenas vagamente incoerente mas ao mesmo tempo envolto na aura misteriosa de uma autoridade desconhecida. Uma vez analisado o discurso, ele se revela, ao contrário do que parecia, uma construção lógica perfeitamente coerente, com um só ponto absurdo: a premissa oculta que o sustenta, a fonte mesma da sua credibilidade. Assim, por exemplo, o Professor Doutor pode ao mesmo tempo impugnar a autoridade da Bíblia e falar em nome do Cristo que a consagrou como definitiva e imutável. Parece incoerente, não é mesmo? Vindos logo em seguida um ao outro, esses dois trechos revelariam na mente do seu autor uma desatenção patológica, uma incompreensão radical do sentido do que ele próprio diz. O Professor Doutor Mott, nesse caso, seria apenas um idiota. Mas, por favor, compreendam que o Professor Doutor é o próprio Cristo reencarnado, e a impressão de incoerência se dissipará no mesmo instante. O megalômano ostensivo é apenas um louco vulgar inflado de mania de grandeza. No megalômano camuflado, a mania de grandeza soma-se à astúcia de um sociopata manipulador, capaz de fazer da sua própria loucura uma fonte de autoridade. Ele é muito mais louco, evidentemente, do que o megalômano vulgar, mas não é nem um pouco idiota, como não o era o Doutor Mabuse. É esperto ao ponto de vender sua loucura, com sucesso, como sabedoria divina.

A eficácia hipnótica desse tipo de discurso deriva, na verdade, de um truque bem elementar. A mensagem tem de vir simultaneamente em dois planos: o da contradição aparente e o da premissa oculta que a resolve trocando-a por uma absurdidade substantiva. A contradição, entrevista de longe, provoca no ouvinte um vago desconforto intelectual. Mas, se é um ouvinte de boa vontade, disposto a aceitar o orador como guia confiável, ele atribuirá essa contradição a um erro de percepção dele próprio, não do orador, e por mero automatismo apostará na existência de alguma explicação mais profunda que lhe escapa no momento. Como essa explicação profunda existe realmente, mas o ouvinte não sabe que ela é absurda, a absurdidade oculta adquire então a força estupefaciente de um atrativo mágico, de uma fonte de autoridade secreta e inapreensível. Só a análise integral do raciocínio implícito pode desfazer o encantamento, mas raros ouvintes terão a prudência – e os meios intelectuais – de realizá-la.

Se o Professor Doutor houvesse inventado essa técnica ele seria, além de Deus, um gênio. Mas ela é de uso corrente no movimento revolucionário desde o século XIV pelo menos. O homem são sabe quanto é difícil agir com justiça para com seus próximos. Mas desde aquela época têm aparecido milhões de pessoas que se julgam habilitadas a implantar o reino da justiça no planeta inteiro. Implícita nessa promessa está a pretensão de deslocar o Juízo Final da eternidade para o tempo. De passagem mística para o supratempo que transcende o fim da História, o Dia do Juízo torna-se um episódio da própria História, trazido ao mundo pelas mãos humanas dos revolucionários gnósticos. Cada revolucionário é portanto o próprio Cristo vingador, que baixa dos céus com o látego divino para castigar todos os fariseus, entre os quais, é claro, “Olavo de Carvalho, o Papa Ratzinger, os pastores fundamentalistas et caterva ”.

Não há, pois, grande originalidade no ardil empregado pelo Professor Doutor. Original, sim, é o ato falho que ele comete logo no início da sua mensagem, ao imputar ao meu artigo o delito de “abuso de silogismos”. A acusação é monstruosamente extemporânea, pois esse artigo é uma descrição e análise psicológica de certos fatos, e não uma demonstração silogística do que quer que seja. Ao proferi-la, o Professor Doutor nada disse a meu respeito, mas também não atirou no vazio. Acertou em si mesmo. Não pode haver maior abuso da técnica silogística do que usar uma contradição como anzol para fisgar o ouvinte numa premissa oculta absurda, psicótica em sentido estrito.

Para a desgraça da humanidade, esse tipo de discurso é o de uso mais freqüente entre os revolucionários, profetas do mundo novo e justiceiros globais em geral. Tão freqüente, que já o empregam por mero automatismo e rotina, sem nem precisar conscientizar a intenção maligna com que o fazem.

Se o Professor Doutor usa desse ardil demoníaco para se fazer de portador do Espírito Santo, podem estar cientes de que isso é bem mais grave do que todos os pecados sexuais – homossexuais ou heterossexuais, pouco importa — que ele possa ter cometido ao longo da vida. Quando o Apóstolo disse : “Nossa luta não é contra a carne e o sangue, mas contra os principados e as potestades das trevas”, estava aí implícita a seguinte distinção: o que leva o ser humano aos pecados do sexo é o apelo da carne e do sangue. Nenhum crente genuíno e inteligente “combate” esses pecados, nem em si mesmo nem nos outros, mas tenta, com suavidade e paciência, canalizar para algum objetivo espiritualmente legítimo o impulso primário que os move, sabendo, como disse Agostinho, que “as virtudes são feitas da mesma matéria dos vícios”. Mas carne nenhuma e sangue nenhum podem inspirar a um ser humano a idéia satânica de fazer-se passar pelo Verbo Divino encarnado para rasgar as páginas do livro que Ele declarou sagrado e intocável. Essa inspiração não tem nada a ver com sexualidade, homo ou hetero: ela vem diretamente dos principados e das potestades, e estes não podem ser melhorados ou transmutados. Não há alquimia, humana ou divina, que devolva o demônio à sua condição originária de anjo. Espiritualmente, o Professor Doutor está numa encrenca dos diabos, no sentido mais literal da expressão. No fundo, ele sabe disso perfeitamente. Não espanta que deposite suas esperanças não no Deus eterno cuja autoridade ele usurpa, e sim na pretensa justiça da deusa História, essa velha prostituta que muda de clientes a cada geração, servindo a quem lhe pague mais.

O alquimista

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 27 de junho de 2007

O mesmo governo que continua paparicando as Farc enquanto elas ensinam o Comando Vermelho e o PCC a matar cinqüenta mil brasileiros por ano está ocupadíssimo em proteger gays e lésbicas contra o risco temível de ser atingidos, em plena via pública, por versículos da Bíblia.

O mesmo governo que promove o ensino do homossexualismo nas escolas infantis quer defender as almas puras das crianças contra a imoralidade dos programas de TV.

O mesmo governo que com lágrimas nos olhos denuncia mais de um milhão de mortes de mulheres em abortos ilegais informa-nos agora que o número total de abortos ilegais é mais ou menos esse – o que não deixaria muitas mulheres para contar a história.

Esse governo ficou louco ou quer apenas nos enlouquecer a nós?

Aposto, decididamente, nas duas hipóteses. Ele quer nos enlouquecer porque é louco — mas não é louco do tipo que quer que nós nos tornemos. Ele quer infundir em nós a loucura da estupidez, da completa desorientação no espaço e no tempo. Para si ele conserva a loucura da ambição ilimitada, o sonho infame de tornar-se o “poder invisível e onipresente” de que falava Antonio Gramsci, o manipulador supremo de tudo e de todos, o autor secreto do curso da História. Ele quer para nós a loucura que debilita e paralisa, a loucura da impotência. Para ele próprio, a loucura do poder absoluto.

Ninguém jamais compreenderá o governo Lula se não levar em conta a sua dupla agenda, decorrente da sua condição mesma, mil vezes proclamada ante ouvidos moucos, de governo de transição para o socialismo.

Um governo normal joga segundo uma regra preexistente: ele tem metas econômicas, administrativas e sociais declaradas, as quais têm de se transformar em resultados e tornar-se visíveis para ser julgadas, na próxima eleição, pelo mesmo público que aprovou o plano inicial.

Um governo revolucionário joga segundo uma regra futura que só ele conhece. Ele não tem de ser aprovado senão por si mesmo, porque sua finalidade única é justamente impor a nova regra, à qual o público tem adaptar-se sem julgá-la, sem nem mesmo pedir explicações.

Um governo de transição é uma criatura bicéfala que tem de jogar ao mesmo tempo segundo as duas regras, operando a transmutação alquímica que mudará a primeira de realidade vigente em mera aparência, a segunda de vaga hipótese em dura realidade.

Lula é ao mesmo tempo o presidente regularmente eleito para consolidar a democracia e o agente do Foro de São Paulo incumbido de tranformá-la no seu contrário. Quanto mais louco ele parece no primeiro desses papéis, mais hábil e eficiente se revela no segundo, aos olhos de quem é capaz de observá-lo nesses dois planos ao mesmo tempo. Quanto mais insensato o seu desempenho de economista e administrador, mais admirável ele se torna como mago alquimista, transmutador não só do Brasil mas do continente inteiro.

Cada uma de suas ações reflete a ambigüidade do seu papel histórico mas, para o observador atento, serve como índice do progresso alcançado na realização alquímica.

O futuro deste país depende de que o número de observadores atentos cresça antes que a transmutação se complete invisivelmente.

Conspiração de iniqüidades

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de junho de 2007

O movimento profundo da História revela-se menos nas manchetes assustadoras do que em acontecimentos mais discretos que tenham o dom da tipicidade ilimitadamente reprodutível. Fatos espetaculares podem passar sem deixar marcas, mas pequenos gestos repetidos milhares de vezes mudam irreversivelmente os hábitos da psique humana e transformam aos poucos a exceção em regra, o inesperado em rotina cotidiana, o absurdo em banalidade usual.

        Dois episódios menores da semana põem à mostra os germes do futuro Brasil, gerado nos escritórios de engenharia comportamental dos autonomeados governantes do mundo e plantados no solo pátrio pela solicitude devota da militância esquerdista local.

        Primeiro acontecimento: Terça-feira passada, um aluno da Escola Estadual Darcy Pacheco, em São José do Rio Preto, SP, ateou fogo aos cabelos da professora Iramar Araújo Sachetini. Sob os risos de toda a classe, só uma aluna correu para ajudar a professora, impedindo-a de sofrer queimaduras desfigurantes. A Secretaria Estadual de Educação anunciou que o menino não será punido, porque seu delito “não foi grave” (sic) e aconselhou seu pai a não transferi-lo para outro estabelecimento, porque isso poderia trazer dano à sua carreira escolar. A aluna que socorreu a professora, no entanto, não tem comparecido às aulas, por medo da represália de seus colegas. Nenhuma medida para protegê-la foi anunciada pela Secretaria ou pela diretoria da escola. A professora, humilhada três vezes — agredida pelo aluno, ridicularizada pela classe e frustrada em seu pedido de punição para o agressor – está desesperada e não sabe a quem recorrer.

        Segundo acontecimento: Os cartazes da campanha Visão Nacional para a Consciência Cristã, com o título “Homossexualismo” é a frase do Gênesis , “E Deus fez o homem e a mulher e viu que era bom”, foram considerados “homofóbicos” e retirados da cidade de Campina Grande, na Paraíba, por ordem da juíza Maria Emília Neiva de Oliveira, da Primeira Vara Cível daquela cidade, a pedido de entidades ligadas ao movimento gay.

        Acontecimentos dessa ordem multiplicam-se diante dos nossos olhos, mostrando a germinação acelerada dos novos valores e princípios que hão de imperar sobre a vida brasileira antes de decorrida uma geração. Rastrear até suas fontes a inspiração ideológica que os determina é enxergar antecipadamente o Brasil em que viverão, não digo os nossos filhos nem nossos netos, mas nós mesmos – ou aqueles de nós que tiverem a imprudência de permanecer no país — nos dias tenebrosos de uma velhice humilhada e impotente. Cabe lembrar aqui a máxima latina “De te fabula narratur”: você é o personagem desta história. É da sua velhice que estou falando.

        Na interpretação desses pequenos acontecimentos vigora um preceito metodológico que já expliquei mil vezes nas minhas aulas de filosofia política: o efeito histórico de fatos dessa natureza transcende de muito o horizonte de consciência dos agentes envolvidos. Para discerni-lo é preciso remontar a fontes ideológicas às vezes bastante longínquas que projetaram na tela a linha inteira de uma seqüência de transformações histórico-culturais na qual aquelas ações em particular se inserem como elos de uma corrente sem fim.

        Por trás dessas duas ações existe a opção por um corpo de princípios morais (ou mais propriamente imorais) cujo sentido os personagens envolvidos, decerto, mal têm a condição de compreender. Para o analista distanciado, é impossível não perceber que esses princípios expressam a repulsa gnóstica pela ordem da realidade e o sonho revolucionário do “mundo às avessas”. A revolta contra esta ou aquela ordem social em particular é sempre e invariavelmente nada mais que um pretexto retórico local para dar curso ao ódio gnóstico contra a realidade enquanto tal em todas as suas expressões possíveis, das quais a mais óbvia é a ordem dos valores que preside a toda sociedade normal, isto é, não-revolucionária (chamo assim a sociedade devotada à manutenção usual do bem comum e não empenhada na sua própria destruição).

        A expressão mais óbvia de toda e qualquer hierarquia social é a “discriminação”: a distinção entre seus membros mais valiosos e menos valiosos, conforme sua contribuição — real ou suposta — à consolidação ou destruição da ordem. Uma sociedade sem discriminações é a mesma coisa que um código penal sem punições. Sociedade é discriminação. As sociedades diferem apenas pelos critérios de discriminação, que vão desde a separação racional entre os elementos benéficos e nocivos até às formas mais extravagantes de exclusão baseadas em temores mitológicos, orgulho racial demente, preconceitos ideológicos de classe etc. Desde o momento em que uma cândida humanidade aceitou como coisa óbvia, normal e improblemática a promessa globalista de erradicar “todas as discriminações”, era claro para todo observador qualificado que a proclamação desse objetivo, manifestamente impossível, ocultava apenas um plano revolucionário destinado a mudar os critérios, a instaurar novas formas de discriminação, necessariamente mais violentas e injustificáveis do que as anteriores. Vale aí o seguinte preceito de método: se um líder político ou grupo militante promete o impossível, das duas uma – ou ele é louco, ou está querendo alguma outra coisa perfeitamente possível que não lhe convém declarar em voz alta. Nos dois casos a promessa tende a conquistar os corações e mentes com mais facilidade do que qualquer projeto viável. A loucura é contagiosa em si; nenhum argumento racional pode contra o arrebatamento da esperança utópica. No segundo caso, a eficiência da transmutação maquiavélica mede-se pela multiplicação da força do atrativo utópico pelo poder formidável da ação camuflada, imune a suspeitas.

        O novo critério de discriminação que se está sendo implantando no Brasil pode ser estudado numa seqüência de documentos que vêm desde a propaganda gnóstica dos séculos XIII e XIV até as doutrinas da escola de Frankfurt, do desconstrucionismo, do feminismo radical, do movimento gay , etc. Ao longo do tempo, a corrente de ódio insano à ordem do real, nascendo em pequenos grupos de fanáticos religiosos, vai se avolumando e se transformando numa enorme e complexa estratégia de poder, até o ponto em que a desordem e a destruição se tornam elas mesmas os princípios fundantes de uma nova ordem em que todos os meios de ação prática criados pela razão são subjugados e postos a serviço da absurdidade e do mal. É o Império do Crime. Os leitores, por favor, resguardem-se de entender essa expressão como sinônimo apenas de uma ordem social regida por grupos criminosos. Não se trata do império dos criminosos , mas do império do crime enquanto tal: uma ordem social na qual tudo aquilo que os milênios consideraram abominável ou desprezível é entronizado como obrigação máxima e cláusula pétrea, proibindo e criminalizando tudo o que a humanidade anterior sempre considerou bom, correto e desejável. O amor familiar é condenado como camuflagem da violência doméstica e da pedofilia, enquanto os estupradores e pedófilos autênticos são protegidos como vítimas da sociedade má. A devoção religiosa é estigmatizada como disfarce de todas as paixões mais baixas, enquanto estas, na sua versão mesmo a mais crua e direta, são elevadas à categoria de padrões normativos obrigatórios. Todas as relações humanas, denunciadas como “véu ideológico” estendido sobre relações de poder, são trocadas, ao som de fanfarras, pela manifestação brutal do poder explícito, celebrado como salvador e humanitário. Todo o universo criado, onde o império relativo do bem mantinha o mal sob controle, é acusado de ser um imenso engodo, e o império do mal explícito é aclamado como única e definitiva encarnação da bondade, como reino da justiça.

        No curso da inversão, apela-se ao ressentimento latente de todos os grupos e indivíduos que, justa ou injustamente, tenham recebido uma cota menor de benefícios da ordem social vigente. Pelo simples fato de pertencer a um deles, cada indivíduo se sente agora identificado ao Cristo vingador, portador do Juízo Final que abrirá as portas ao reino da bem-aventurança eterna após o castigo dos maus. O fato de que ninguém pertença exclusivamente nem inteiramente ao grupo dos injustiçados ou ao dos injustos, mas de que todos participem necessariamente de um e de outro em graus variados e sob aspectos diversos, é totalmente escamoteado. Fica proibido mencionar que a mulher oprimida pelo marido é não raro a opressora da empregada, que o homossexual afetado de coitadice pode ser ao mesmo tempo um feroz explorador dos pobres, que o trabalhador vítima da miséria deprimente pode acumular também as funções de espancador da mulher e dos filhos; e assim por diante. Por um momento, no entusiasmo da propaganda, todos têm impressão de que se trata de “nós” contra “eles”. Ninguém percebe que, sempre e invariavelmente, sob algum aspecto que escapa à sua atenção no momento, cada um de “nós” é também “um deles”. Mas o confronto com essa dura realidade pode ser adiado para depois da festa revolucionária, quando vier a hora de pagar as contas.

        “Summum jus, summa injuria”, diziam os juristas romanos: a justiça perfeita é a perfeita injustiça. A promessa da justiça universal é uma só e mesma coisa que o império do crime. Assim como na esfera política todos que serviram nos primeiros postos das grandes revoluções foram sempre os primeiros a ser perseguidos e assassinados pela nova ordem que elas constituíram, assim também os que se presumem beneficiários da transmutação gnóstica de valores serão destruídos implacavelmente pelo próprio poder que imaginam ter conquistado.

        Na dialética da transmutação há um detalhe retórico digno da maior atenção: os efeitos reais a ser obtidos jamais podem ser proclamados em toda a sua crueza. Sua verdadeira índole deve ser ocultada sob pretextos extraídos do mesmo corpo de valores que se deseja destruir. A desordem deve ser justificada em nome da ordem, o crime em nome da lei, a brutalidade em nome dos mais delicados sentimentos. Nos dois exemplos acima isso fica bem nítido. Atear fogo aos cabelos de uma pessoa é arriscar desfigurá-la para o resto da vida. Esse resultado teria sido alcançado se uma aluna em particular, vencendo o temor dos risos gerais, não socorresse a vítima em tempo. Se as autoridades incumbidas de educar o agressor proclamam que seu delito “não é grave” e que a carreira normal do estudante não pode ser afetada pelo detalhe irrisório de haver colocado em risco a saúde e a vida de outrem, a premissa oculta a que esse argumento faz apelo é a natural benevolência adulta para com os adolescentes; benevolência que nasce da mesma estrutura familiar e da mesma ordem tradicional de valores que através dessa apologia da delinqüência se pretende precisamente destruir. Os bons sentimentos da própria vítima são usados como justificativa ex post facto do crime. Evidentemente a Secretaria da Educação, ao minimizar a gravidade do delito, reforça o coro de risos da platéia juvenil, ensinando aos gaiatos sádicos que não é feio rir daquilo que a autoridade revolucionária não acha grave. Por um momento, o agente da transmutação deve ocultar de si próprio o maquiavelismo da tática que emprega, pois, se o trouxesse à luz da consciência, perceberia instantaneamente a monstruosidade criminosa do seu procedimento, mil vezes mais feio que o do próprio garoto incendiário. Invertendo a ordem da justiça, punindo com humilhação e discriminação a professora e a aluna que a socorreu, a Secretaria da Educação constitui-se, aos olhos do observador realista, em organização criminosa de altíssima periculosidade, imbuída da tarefa de espalhar entre a juventude o amor ao crime e o desprezo cínico pelas vítimas.

        No caso da sentença dada pela juíza paraibana, está claro que é aplicação antecipada de uma lei ainda em votação. Descriminalizar umas condutas e criminalizar outras é a natureza mesma da transmutação revolucionária. A aprovação dos diplomas legais correspondentes é apenas um formalismo jurídico que, no curso do processo, pode ser perfeitamente dispensado em favor da imposição brutal que dá vigor imediato às leis hipotéticas desejadas pelo grupo militante.

        O processo legislativo torna-se assim apenas um adorno legal acrescentado ao verdadeiro e único poder legiferante, que é a militância organizada, equipada do único argumento juridicamente válido: a capacidade de intimidar.

        Notem que a frase proibida é uma das primeiras da Bíblia. Mal os cristãos começam a tomar consciência de uma trama destinada a criminalizar o Livro Sagrado e, antes que acabem de acordar para o que pode vir a acontecer, já aconteceu. Antes que você acabe de ler o convite para o duelo, o atacante já o desventrou com uma punhalada. Não é coincidência nem engano. Propor uma novidade fingindo querer discuti-la democraticamente, e ao mesmo tempo já tratar de impô-la na prática como se estivesse universalmente aprovada — eis o estilo de ação mais antigo e invariável dos movimentos revolucionários.

O detalhe particularmente cínico do episódio é que a expressão tranqüila, respeitosa e até solene de desaprovação moral de um costume erótico, desacompanhada de qualquer insulto ou palavra constrangedora, é criminalizada como conduta anti-social, ao passo que o ataque direto e brutal ao sentimento religioso da maioria dos brasileiros, por meio da chalaça grosseira e da blasfêmia intencional como se viu na passeata gay em São Paulo , é protegido pela justiça como um direito elevado e nobre. A grande mídia reforça o assalto à religião, subscrevendo a classificação da campanha evangélica como “crime de homofobia” sem esperar que a lei o faça e legitimando como direito civil o ultraje público aos sentimentos religiosos da multidão e a interrupção proposital de ritos religiosos, crime previsto e condenado pelo Código Penal no seu artigo 208. Despreza-se a lei existente, aplica-se a inexistente.

Não imaginem que haja nisso uma absurdidade acidental, um ato falho freudiano, um ponto fraco na estratégia revolucionária. A incongruência da situação é calculada meticulosamente para desorientar e paralisar a vítima ou para induzi-la a reações inadequadas que a coloquem em posição ainda mais vulnerável. Exemplo disso em escala internacional é a hedionda campanha antijudaica baseada numa retórica deliberadamente paradoxal: acusar os judeus de racismo e legitimar o anti-semitismo como reação das pobres vítimas da prepotência israelense. O judeu ao qual de repente se imputa o mesmo crime que matou seis milhões de seus patrícios sofre uma injustiça tão extrema, tão intolerável, que tudo aí o induz à reação excessiva e inconseqüente, apta a atrair sobre ele as antipatias gerais. A Anti-Defamation League (ADL) se fez vítima dessa síndrome ao mover uma campanha alarmista, exagerada e objetivamente injusta contra o filme de Mel Gibson, A Paixão de Cristo , irritando os fãs do cineasta e arriscando mesmo romper a aliança judaico-cristã da qual depende a própria sobrevivência do Estado de Israel. Uma nova campanha, recém-lançada, acerta muito mais o alvo e mostra que a ADL, refeita da febre anti-Gibson, aprendeu a identificar melhor as fontes do perigo genuíno (v. DeOlhoNaMidia.org).

Mas os cristãos, pessimamente informados sobre as perseguições que seus correligionários sofrem no mundo e iludidos pela segurança aparente oferecida por um governo de falsos crentes, estão totalmente despreparados para lidar com a armadilha psicológica que a malícia revolucionária preparou para pegá-los.

O próprio conteúdo dos cartazes mostra a ingenuidade das suas reações. Eles não se voltam contra a prepotência ditatorial das pretensões gays , mas contra o homossexualismo em si. Já expliquei, aqui, o erro fatal aí embutido (v. as partes finais do artigo “Conseqüências mais que previsíveis”, http://www.olavodecarvalho.org/semana/070604dc.html ). Todo o uso estratégico do homossexualismo como arma revolucionária baseia-se na idéia de primeiro nivelar como igualmente respeitáveis a fé religiosa e um simples desejo de determinado tipo de prazeres sexuais, depois sobrepor este àquela e por fim esmagar por completo os direitos da consciência religiosa. Ao responder com uma apologia da heterossexualidade, os adversários do gayzismo se submetem passivamente ao engodo nivelador, transformando a discussão inteira em confronto de orientações sexuais e dando assim ao adversário a vitória no primeiro round . O heterossexualismo, enquanto tal, não é moralmente superior ao homossexualismo. A quase totalidade das condutas heterossexuais numa sociedade permissiva é francamente imoral. O espertalhão que traça a mulher do vizinho é heterossexual. O professor que abusa de suas alunas é heterossexual. O patrão que intimida a empregada para levá-la para a cama à força é heterossexual. O sedutor que promete casamento e foge depois do orgasmo é heterossexual. E é heterossexual, por definição, o estuprador de mulheres. Consideraremos todas essas condutas mais toleráveis que a de dois garotos que se trancam num banheiro de escola para trocar carícias gays ? Teremos perdido totalmente o senso das proporções? O que se deve defender contra a propaganda gay não é o heterossexualismo em si, mas sim a superioridade intrínseca da devoção religiosa em comparação a qualquer conduta sexual que seja. Rebaixar a um mero confronto de orientações sexuais uma questão infinitamente mais alta, infinitamente mais decisiva para o destino da humanidade, é cair numa armadilha sórdida, preparada com requintes de maquiavelismo por engenheiros comportamentais que contavam com essa reação das vítimas para mais facilmente as poder qualificar como preconceituosas, machistas e, por definição, culpadas de “homofobia”.

Nos dois casos, estamos diante de uma dose incalculável de malícia, de perversidade psicológica que raia a sociopatia pura e simples, e isto não da parte dos militantes vulgares que esbravejam nas ruas, mas da parte de seus mentores intelectuais e políticos espalhados nos altos escalões do governo, nas cátedras universitárias, nas diretorias dos órgãos de mídia.

        Todo aquele que acha que é possível enfrentar essas coisas mediante discussões polidas, senão mediante apelos lacrimosos às mesmas autoridades que dirigem o processo, é mais que tolo, é doente de ingenuísmo covarde e de estupidez criminosa que fazem da vítima a cúmplice maior do seu próprio estupro e assassinato. No fim, não se pode dizer que não vigore aí algum tipo de justiça: aqueles que querem matar matam aquele que pede que alguém o mate.

        As revoluções sociais são uma conspiração de iniqüidades de parte a parte. Não é raro que as vítimas, trêmulas de medo ante o agressor, se deixem iludir pela esperança louca de conquistar sua afeição mediante gestos de subserviência ou de aplacar sua fúria mediante a oferta de propinas. Também não é raro que, na ânsia de seduzir o agressor, voltem sua ira contra aquele que o denuncia (isso já me aconteceu tantas vezes que já perdi a conta).

        Se fosse preciso ilustrar a loucura completa dessas reações, bastaria lembrar o caso recente do empresário Wagner Canhedo, preso pela posse de um miserável revólver calibre 357 que aqui na América qualquer um pode comprar na esquina sem licença nenhuma. Canhedo jamais recusou ajuda aos partidos de esquerda. Eles o perseguem precisamente por isso.

Nos partidos comunistas há uma norma tradicional de senso comum. Se alguém dá dinheiro ao partido, das duas uma: ou é um “companheiro nosso” ou é “alguém que quer nos enganar”. Na primeira hipótese, está sob total controle e isto o partido pode averiguar facilmente; na segunda, o sujeito entra imediatamente na lista dos inconvenientes a ser eliminados na primeira oportunidade. Quem quer que espere aplacar revolucionários mediante oferta de vantagens financeiras é candidato à morte certa e não de todo imerecida. A injustiça perfeita é tão inexistente quanto a perfeita justiça.

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