Posts Tagged Diário do Comércio

Blefe retórico

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 05 de junho de 2008

O editorial da Folha de S. Paulo de sexta-feira passada pontifica: “Ao reconhecer a validade da Lei de Biossegurança, STF impediu que uma ética privada, a religiosa, fosse imposta a todos. A declaração pelo STF (…) significa antes de mais nada a vitória da lógica e da razão prática sobre especulações de inspiração religiosa.”

Em três linhas, quatro mentiras.

De um lado, reduzir às dimensões de uma “ética privada” princípios do judaísmo e do cristianismo longamente incorporados às bases mesmas da civilização ocidental é falsificar dois milênios de História. E é dar como realidade presente e universalmente aprovada o mero projeto, acalentado por pseudo-intelectuais ativistas, de um Estado ateu fundado na autoridade absoluta da “ciência”.

A idéia, muito em moda no ottocento graças a vulgarizadores como Ludwig Büchner e Ernest Haeckel, a uma literatura naturalista de pretensões “científicas” (Zola, o nosso Aluízio de Azevedo) e ao anticlericalismo visceral de alguns movimentos revolucionários nacionalistas (Itália, México), foi desmoralizada logo nas primeiras décadas do século seguinte com a entrada em cena de gigantes do pensamento científico e filosófico como Albert Einstein, Max Planck, Werner Heisenberg, Alfred North Whitehead, Edmund Husserl e Karl Jaspers, entre outros. Toda a cultura superior do século XX é uma violenta condenação às pretensões do cientificismo oitocentista. Cinqüenta anos atrás este já parecia morto e enterrado para sempre. Só teve uma grotesca reencarnação nas últimas décadas graças ao surgimento de uma geração de “formadores de opinião”, saídos das fileiras da ciência acadêmica mas prodigiosamente incultos, os quais, ignorando tudo dos debates de cem anos atrás, voltam aos mesmos argumentos já mil vezes desmoralizados, com aquela inocência presunçosa de quem nem de longe percebe o vexame. Imagino, já não digo os editorialistas da Folha, mas seus mentores Richard Dawkins ou Daniel Dennett lendo “A Crise das Ciências Européias” de Husserl ou “Processo e Realidade” de Whitehead. Não entenderiam uma só linha. Dar por pressuposto que as idéias desses idiotas se impuseram universalmente e que já vivemos num Estado determindo por elas é um blefe retórico que só se explica por aquela arrogância pueril de quem não sabe o que faz.

De outro lado, não há lógica nem razão prática na dupla estupidez subscrita pelo STF, de que embriões in vitro são inviáveis e de que as curas miraculosas a surgir da pesquisa com células-tronco embrionárias são promessas viáveis. Todo primeiranista de Medicina sabe que a primeira dessas afirmativas é falsa, e em favor da segunda não há até o momento nenhuma prova, por mais mínima que seja — há apenas a exploração cínica das esperanças de milhões de doentes e seus familiares, esperanças que serão esquecidas e jogadas na lata do lixo assim que a jurisprudência agora firmada alcance o seu único objetivo: liberar o aborto contra a vontade maciça do povo brasileiro, por via de um artifício judicial e contornando o debate parlamentar.

Se não fosse por uns quantos votos contrários que salvam um pedacinho da sua honra, o STF, com essa simples sentença, teria abdicado definitivamente das últimas aparências de instituição respeitável para inscrever-se no rol das entidades militantes empenhadas em implantar no Brasil a Nova Ordem tecnocrático-ateística, cuja receita vem pronta dos organismos internacionais.

Quanto à Folha, seu editorialista poderia ao menos abster-se de usar uma expressão clássica de Kant cujo sentido desconhece. Pois, para o filósofo de Koenigsberg, a razão prática fundamenta-se no reconhecimento da universalidade da lei moral – aquela mesma lei que o jornal, do alto da sua imensurável inépcia, rotula de “ética privada”. Um princípio elementar da vida intelectual é não atribuir a termos consagrados um sentido invertido sem explicar as razões de fazê-lo, supondo-se que alguma exista, o que evidentemente não é o caso quando o autor da coisa usa o termo só para parecer culto e nem tem consciência da inversão. Não deixa de ser significativo do presente estado de coisas que lições de ética nos venham na linguagem simiesca de um pequeno vigarista intelectual.

Errando e aprendendo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 02 de junho de 2008

Recebo diariamente dezenas de perguntas de alunos, leitores e ouvintes, e tento responder a quantas posso, mas em geral recuso todo pedido de orientação religiosa, quando mais não seja porque não considero que eu mesmo seja o protótipo do sujeito orientadíssimo nessas questões. Há, no entanto, uma regra de interpretação bíblica – portanto, de moral religiosa também – que decorre da natureza mesma da linguagem e que ninguém em seu juízo perfeito pode negar, embora muitos a neguem na prática sem percebê-lo.

Não aprendi essa regra com ninguém, nem decerto fui o primeiro a descobri-la: depois de ter andado por inumeráveis cabeças de crentes ao longo dos milênios, ela acabou por aparecer na minha, espontaneamente, uma certa manhã, depois de eu ter rezado durante meses a Nosso Senhor Jesus Cristo para que tornasse as Suas palavras mais inteligíveis a um jumento como eu. Tenho portanto minhas razões para acreditar que Ele mesmo, sem que eu o notasse, programou o meu cérebro para aceitá-la. Aos santos, profetas e iluminados, Deus fala em voz alta ou em sonhos. Os burros e teimosos da minha espécie só aprendem em estado de sono profundo, quando repousamos totalmente inconscientes e indefesos entre os braços do Senhor, como as criancinhas, e, por momentos, sem qualquer mérito da nossa parte, desfrutamos de um privilégio a elas reservado. Tenho seguido essa regra há anos, e infalivelmente ela me torna as coisas cada vez mais claras, tanto na decifração de trechos da Bíblia como na resolução de perplexidades da vida. No mais, ela é tão natural e óbvia que só não a seguem os que jamais se deram conta dela.

Como geralmente acontece com as verdades mais simples, aquilo que é percebido num relance intuitivo e mudo exige algum requinte lógico para se expor em palavras. Para facilitar a explicação, faço aqui uma distinção entre “normas” e “princípios” – longinquamente inspirada na de Kant e Max Scheler entre ética material e formal, mas sem o mínimo compromisso com a filosofia moral de um ou do outro. Todo sistema moral compõe-se das duas coisas. Normas específicas ordenam ou proíbem um determinado tipo de conduta concreta: não mate, não roube, ajude os órfãos e as viúvas, etc. Quando a ordem não se expressa por um imperativo concreto, mas por uma relação abstrata de proporcionalidade, como numa equação do tipo a/b = x/y, então já não se trata de uma conduta em especial, mas de um princípio que deve ser seguido em todas as condutas, em todas as situações da vida.

As normas específicas, para ser obedecidas, requerem distinções e ressalvas que, partindo da sua formulação geral tipológica, as adaptem sabiamente à situação particular do momento. “Não matarás”, decerto, mas quem se recuse a fazê-lo na guerra ou em defesa do inocente ameaçado pode arcar com a culpa de expor os outros à morte, por omissão. “Não roubarás”, é claro, mas quem tem o direito de se recusar a fazê-lo quando o único meio de transportar um ferido ao hospital é o carro que um proprietário desconhecido esqueceu com a chave na ignição? “Não prestarás falso testemunho”, mas isto não quer dizer que você esteja obrigado a dizer a verdade quando um assaltante lhe pergunta onde o seu patrão guarda o dinheiro, ou quando um truculento comissário do povo lhe pergunta onde a sua aldeia escondeu a colheita. Tendo validade tipológica absoluta, as normas são de aplicação eminentemente relativa: relativa à situação, às intenções, ao caráter das pessoas envolvidas, à interferência de fatores culturais, psicológicos e psicopatológicos altamente complexos, etc. etc. etc. Permanentes na sua obrigatoriedade geral, requerem uma interpretação particular, diferente em cada caso e circunstância. Muitas vezes, pessoas de bem fazem o mal, não porque desejem conscientemente violar a regra moral, mas porque erram na sua interpretação particular.

Por isso mesmo, Deus não nos forneceu só regras de conduta, mas também os princípios gerais que devem nortear a sua interpretação. Esses princípios, por serem formais como equações e não se referirem a nenhuma situação concreta, são de validade absoluta e incondicional em todas as situações e servem de pedra-de-toque para aferir a interpretação que damos às normas concretas. Nos Dez Mandamentos, essa distinção é clara. Quando alguém lhe pergunta qual o mínimo necessário para entrar no céu, Jesus responde: “Amarás o teu Deus acima de todas as coisas e amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Os Dez Mandamentos compõem-se portanto de dois princípios e oito regras. Os princípios são as chaves que determinam o sentido das regras em cada caso. Se um sujeito comete adultério, ele infringe uma regra, mas, se você o aponta à execração nas ruas em vez de perdoá-lo e aconselhá-lo em particular como esperaria que fizessem com você caso o pecado fosse seu, você peca muito mais que o adúltero, pois viola um princípio. Deus perdoa os adúlteros, os mentirosos, os ladrões e até os assassinos, mas não perdoa quem não perdoa. Posso estar enganado, mas suspeito que no inferno há menos adúlteros do que cônjuges virtuosos que lhes negaram o perdão.

Ao longo da Bíblia encontram-se muitos princípios formais secundários, derivados dos dois primeiros. São autênticos mapas da mina para a alma atormentada que, nas complexidades da existência, quer fazer o certo mas não sabe o que é o certo. Um desses princípios – o mais freqüentemente esquecido, pelas minhas contas – foi enunciado por S. Paulo Apóstolo: “Experimentai de tudo e ficai com o que é bom.” Não me canso de meditar essa sentença, e as profundidades que nela encontro preencheriam muitos livros, se eu fosse capaz de escrevê-los.

Vejam. São Paulo, ao longo de suas cartas, enunciou muitas regras de conduta, mais pormenorizadas do que aquelas contidas nos Dez Mandamentos. Se você lê essas regras, já sabe portanto o que, segundo o ensinamento do Apóstolo, é bom e é mau. Para que, então, a necessidade de “experimentar”? A distinção mesma entre princípios e regras contém implicitamente a resposta. Para que você evite uma conduta má, não basta saber que, tipologicamente, isto é, genericamente, ela está enquadrada na classificação de “má”. A conduta humana não se dirige por abstrações, mas pela percepção direta e sensível das situações. É preciso que você “veja” com seus próprios olhos o mal e o bem. Seres humanos não aprendem só por ouvir dizer – mesmo que a Palavra ouvida seja a de Deus: eles aprendem pela experiência, pela demorada, trabalhosa e dolorosa distinção entre o bem e o mal não em definições gerais simples, mas em situações alucinantemente complexas e ambíguas da vida real. O símbolo do pão, na Eucaristia, significa as virtudes morais, práticas, assim como o vinho significa as virtudes espirituais, de ordem puramente interior. “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto” quer dizer exatamente isso: o pouco de bom que possa haver em nós virá misturado ao mal, e terá de ser separado dele aos poucos, através da experiência, da tentativa e do erro, como numa longa decantação alquímica. Deus pode, é claro, preservar você deste ou daquele pecado por um ato da Graça, mas Ele não está obrigado a fazer isso, muito menos a imunizá-lo de antemão contra todos os pecados possíveis. Ademais, que graça maior você pode receber de Deus além da Sua promessa de justificar os erros tão logo, no caminho da experiência, eles sejam francamente admitidos como tais?

Se o Apóstolo distingue entre a experiência e sua conclusão seletiva, ele subentende que nem tudo o que for experimentado será bom, mas que tudo deve ser experimentado sempre em vista do aprendizado e do bem, não do vulgar desejo de experimentar por experimentar, nem de uma dúvida forçada, artificiosa. Platão dizia que “verdade conhecida é verdade obedecida”. Tão logo você enxergou nitidamente que certa conduta é má, tem de evitá-la por todos os meios. Até lá, tem uma certa margem de erro justificado, como exigência inerente à própria noção de aprendizado, com a condição de confessar o erro tão logo o tenha percebido como tal e de não teimar nele depois disso. Quando você descobriu o que é bom, não o largue por dinheiro nenhum deste mundo.

Eu, que sou burro e não presto, e além disso sou relapso e preguiçoso, enxerguei um pedacinho muito pequenininho do bem, que comparado à minha ilustre pessoa é do tamanho do infinito. Enxerguei-o graças ao conselho paulino. Daí advém a parte estável e séria da minha alma, parte miúda mas muito melhor que o conjunto dela, o qual espero ir melhorando aos poucos até o último dia, conforme outros bens vão rebrilhando aqui e ali entre as obscuridades da minha mente. Vou por partes, decerto. Sou paciente e tolerante comigo mesmo enquanto estou na confusão e na dúvida, mas, tão logo vejo as coisas com claridade, não dou mais moleza ao meu mesquinho ser. Passo num instante dos auto-afagos à palmatória.

Não conheço outro método, nem recomendo este a quem saiba de outro melhor. Aos demais, digo com o Apóstolo: Experimentem.

Aritmética do engodo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de maio de 2008

Desde que o assassinato da menina Isabella apareceu na mídia, o comentário esquerdista do episódio tem sido invariavelmente o mesmo: é imoral fazer alarde em torno de uma só criança assassinada, num país onde os menores de idade vítimas de homicídio se contam aos milhares.

A nuance ideológica aí subentendida é que o individualismo burguês reserva sua compaixão para o caso singular para não ter de enxergar o problema social por trás dele.

Jamais ocorre a esses sapientíssimos denunciadores da alienação capitalista a hipótese de que o caso singular desperte a violenta emoção coletiva justamente por ser um símbolo condensado do problema social, a gritaria em torno dele expressando portanto um estado de consciência alerta e não de alienação.

Intelectuais de esquerda jamais hesitam em torcer a realidade como se fosse roupa no tanque, para extrair dela um pouco de água suja que possam mostrar ao mundo como prova da maldade burguesa e, en passant , da sua própria superioridade moral.

Por isso mesmo não me surpreendi nem um pouco ao ler, na Folha Online , que, segundo Jean Pierre Langellier, articulista de Le Monde , os brasileiros, um povo malvado que “bate os recordes de violência com 50 mil homicídios por ano”, derrama lágrimas de crocodilo por uma criança enquanto a cada dez minutos um menor de 14 anos é assassinado neste país. Fazendo as contas — seis crianças por hora, 144 por dia, 52.560 por ano – tínhamos aí um fenômeno aritmético assombroso: anualmente, morriam assassinados 50.000 brasileiros, dos quais 52.560 eram crianças. Diante disso, pensei seriamente em voltar atrás nas críticas que um dia fizera à teoria do matemático alemão Georg Cantor segundo a qual existem infinitos maiores e menores. Pelo menos no Brasil, segundo a Folha Online , um subconjunto podia ser maior do que o conjunto que o abrange. Com o detalhe especialmente notável de que adultos, velhos e adolescentes maiores de 14 anos jamais eram assassinados nesta parte do universo. Todos escapavam ilesos à violência geral, e as criancinhas ainda tinham um superavit de 2.560 cadáveres.

Horas depois, veio o desmentido: a Folha confessava o erro, admitindo que o pobre Langellier não dissera “a cada dez minutos”, mas “a cada dez horas”. O número de crianças assassinadas por ano baixava drasticamente de 52.560 para 876.

Isso era certamente um alívio para o leitor, mas não melhorava em nada a situação do articulista do Monde nem da Folha Online . O sentido geral do artigo seguia a linha oficial do argumento esquerdista: enfatizar a “violência doméstica”, minimizando o papel dos quadrilheiros armados na produção nacional de cadáveres. Esse mote foi posto em circulação pela campanha do desarmamento civil, mas, falhado o seu objetivo originário, tem servido para uma infinidade de objetivos suplementares, entre os quais abortar preventivamente a possibilidade de uma revolta popular contra o banditismo e os agentes do Foro de São Paulo que o acobertam. Lançando as culpas da violência na “elite branca racista” e na maldita instituição da família, esse discurso prepara o terreno para a implantação de leis raciais e do casamento gay , sugerindo implicitamente – e às vezes explicitamente – que entre outros inumeráveis benefícios essas medidas trarão a paz a um país atormentado pela violência e pelo crime. Tão natural esse modo de pensar pareceu ao redator da Folha Online , que um automatismo inconsciente o levou a multiplicar por sessenta o número de crianças assassinadas, enfatizando o caráter eminentemente homicida da instituição familiar, mesmo ao preço de estourar as leis da aritmética.

Mas, embora realizada com uma aritmética menos louca, a mesma intenção já estava no artigo original de Langellier. Ao confrontar o número de crianças assassinadas com o total dos homicídios brasileiros, ele enfatizava que a maior parte da primeira cifra era produzida pela “violência doméstica”, sugerindo que esta desempenhava um papel essencial, dramático, no quadro da criminalidade brasileira. Mas façam as contas. Dos 50 mil brasileiros assassinados anualmente, 876 são crianças. Segundo o Censo de 2000 (v. www.ibge.gov.br), os menores até 14 anos no Brasil são 50.266.123: um terço da população nacional. Ora, se o grupo etário que constitui um terço da população nacional fornece a quinquagésima-sétima parte do total de vítimas de homicídios, está claro que esse grupo não é, de maneira alguma, um alvo preferencial de violência no conjunto da criminalidade nacional, não é nem mesmo um alvo estatisticamente significativo. Mesmo se aquelas 876 vítimas tivessem sido todas assassinadas por seus pais – o que está longe de ser o caso –, seria ainda monstruosamente desproporcional atribuir à brutalidade da família contra as crianças um papel relevante no quadro da violência nacional. Ainda que o assassinato de uma só criança seja em si mais revoltante do que quaisquer crimes cometidos contra adultos – e o escândalo em torno do caso Isabela é expressão natural dessa revolta –, isso só torna ainda mais injusto e insultuoso retratar a família brasileira como um ambiente de terror assassino, como se o perigo maior viesse dela e não de bandidos treinados e armados pelas Farc.

Esse mesmo intuito de desviar para “a sociedade” as culpas que pertencem ao banditismo organizado e ao esquema revolucionário latino-americano que o protege apareceu, da maneira mais visível, onde, em condições normais, menos se esperaria encontrá-lo: no ato público promovido pela ONG “Comunidade Cidadã” no dia 16, nominalmente para homenagear as vítimas da onda de terror espalhada pelo PCC nas ruas de São Paulo em maio de 2006 (v. Carta aberta à sociedade paulistana).

Após um velório realizado ante 493 caixões de defunto, o ponto culminante do evento foi a entrega de um Manifesto da entidade aos representantes do poder público. Ao longo desse documento, altamente significativo da mentalidade ativista em nossos dias, não aparece nem uma única vez a expressão “PCC” nem se faz qualquer menção aos autores do crime. Em compensação, fala-se muito da “exclusão”, da “exploração dos negros pelos brancos” e da malvada sociedade adulta que “tem medo dos jovens” e se dedica a extingui-los, sobretudo, é claro, quando são de raça negra. Em seguida pede-se a punição “dos culpados”, sem distinguir nem de longe entre os culpados daquele crime em especial e os de tudo o mais que a “Comunidade Cidadã” detesta.

A conclusão, implícita mas altamente eloqüente, é que não houve nenhum massacre de brasileiros pelos bandidos do PCC: houve, sim, a matança de negros pelos brancos, de pobres pelos ricos e privilegiados, de jovens progressistas por adultos conservadores e reacionários.

Quando uma facção política tem a hegemonia cultural e ao mesmo tempo o domínio do Estado, isto é, o controle simultâneo da circulação de idéias e dos meios de ação política, ela pode fazer milagres, agindo unificadamente sobre toda a sociedade por meio de uma rede de conexões tão sólida quanto invisível, de modo que todas as correntes de causas, indo para qualquer lado que seja, levem sempre a água ao mesmo moinho, façam rodar sempre a mesma engrenagem, fortaleçam sempre quem já é o mais forte: um grupo de organizações esquerdistas promove a solidariedade continental às Farc, as Farc armam o PCC, o PCC mata 493 pessoas inocentes e, fechando o círculo, outras organizações esquerdistas íntimamente associadas às primeiras tiram proveito publicitário do massacre, debitando as culpas das ações da esquerda na conta de um bode expiatório atônito, que por medo e por humanitarismo sonso ainda consente em colaborar paternalmente com o empreendimento, como um Judas de sábado de aleluia que, para se fazer de simpático, se malhasse a si próprio.

A articulação da violência com a sua exploração ideológica em favor dos seus próprios mentores e controladores é prática usual no movimento revolucionário pelo menos desde o século XVIII. Sempre que a operação se repete, o fator decisivo para o seu sucesso é a credulidade sonsa de uma sociedade que se deixa passivamente inculpar pelo mal que o próprio acusador lhe faz.

Até quando os líderes políticos e empresariais nominalmente não esquerdistas ou até anti-esquerdistas consentirão em participar dessa farsa masoquista? Quando perceberão que estão sendo manipulados por indivíduos amorais, maquiavélicos, sem princípios nem o mais mínimo sentimento de honra?

Veja todos os arquivos por ano