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A dupla face do etanol

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de junho de 2008

O eleitor comum das democracias está habituado a enxergar a luta política como uma concorrência entre programas de governo. Mesmo sabendo que os candidatos podem trair suas promessas depois de eleitos, ele toma seus programas respectivos como expressões fidedignas das forças em disputa, das quais acredita assim possuir um conhecimento apropriado e realista, ainda que genérico e esquemático. Do mesmo modo ele acredita possuir uma visão suficientemente exata da regra do jogo, da estrutura geral em que as forças concorrentes se encaixam e dentro da qual se movem sem modificá-la substantivamente.

Chamar isso de “política” é, no entanto, uma redução metonímica. A política que aparece na realidade histórica e nos bons livros de História abrange um território imensamente mais vasto: é o campo inteiro das relações de poder, das quais somente uma parcela ínfima corresponde ao formalismo da regra democrática. Nenhuma democracia pode funcionar se não admitir, ao lado, em cima ou em baixo da disputa regulamentada, uma série de elementos que nem sempre são propriamente antidemocráticos, mas sim extrademocráticos, isto é, não redutíveis às categorias da disputa democrática. Esses elementos podem operar em concordância com o sentido geral da democracia ou contra ele. Nos dois casos, permanecem mais ou menos invisíveis à pura perspectiva eleitoral.

Uma ilustração clássica encontra-se no livro “A Elite do Poder”, do sociólogo C. Wright Mills. Publicado originalmente pela Oxford Press em 1956, esse estudo buscava responder a duas perguntas: 1) Quem manda realmente nos EUA? 2) Quais são os mecanismos que aí controlam a subida e a descida na escala do poder? Embora bastante incompleto já na época e agora totalmente superado pelo desenrolar dos acontecimentos ao longo de meio século, esse livro foi um exemplo notável de busca da realidade por trás dos formalismos jurídico-eleitorais em que se concentra não só o interesse da mídia, mas a visão que o público em geral tem do fenômeno “poder”.

Esse público não ignora que existem na política os elementos extrademocráticos, mas uma espécie de automatismo mental inerente à estrutura mesma do processo democrático faz com que esses fatores sejam impensadamente classificados, seja na categoria do “ilegal”, seja na do “irrelevante”. No primeiro caso entram, por exemplo, as organizações terroristas e subversivas em geral. No segundo, as tramóias ocultas que afetam o curso do processo sem violar substantivamente a estrutura geral da regra democrática e, no fim das contas, se encaixam nela de maneira mais ou menos indolor.

Mas essa visão “oficial” do processo político não tem nenhuma prioridade cognitiva ante a visão que do mesmo processo têm os revolucionários, os conspiradores e os subversivos em geral, bem como, de outro lado, os mais altos escalões da elite governante que, por seu poder econômico, seu prestígio intelectual ou sua pertinência a organizações semi-secretas de proteção mútua, estejam “acima” do processo eleitoral. Cada um desses pontos de observação fornece uma imagem do processo democrático que vai muito além do recorte visível ao eleitor comum. Uma ciência política digna do nome deve abarcar todos esses pontos de vista, experimentar todas essas perspectivas, articulando-as por fim numa descrição geral que possa ser confirmada no terreno dos fatos e sobreviver ao teste das confrontações dialéticas.

Hoje em dia isso é mais necessário do que nunca, porque vai se tornando cada vez mais clara a presença mundial de uma nova fonte de poder, que se sobrepõe não só às facções em disputa ostensiva, mas até às fronteiras nacionais que delimitam localmente as regras do jogo. Para simplificar, chamamos esse elemento de “elite globalista”. Ele compõe-se essencialmente de banqueiros internacionais que controlam a economia de vários países, mas seu Estado-maior abrange também importantes lideranças intelectuais e políticas que consentem em desempenhar um papel duplo na sociedade, por um lado como porta-vozes ostensivos desta ou daquela corrente política e por outro lado como agentes a serviço discreto da elite globalista – papéis que ora se superpõem e se fundem, ora se afastam e se diferenciam ao ponto de simular uma contradição total.

Como a elite globalista tem planos de escala mundial que se diferenciam numa multiplicidade de subestratégias locais, ela pode facilmente passar por cima de toda a visão “oficial” e midiática da luta política, operando de maneiras que embora nada tenham de secreto, permanecem praticamente invisíveis à opinião pública, produzindo assim resultados históricos que aparentam resultar de uma somatória de coincidências, senão de uma fatalidade histórica anônima, de um decreto de Deus.

No momento, um dos pontos importantes da estratégia globalista é quebrar a espinha dorsal da soberania americana, que ela vê, com razão, como um dos obstáculos maiores à implantação do seu querido projeto de governo mundial. Estrangular a economia americana e ao mesmo tempo desencadear ondas de anti-americanismo por toda a parte são, pois, dois aspectos de um mesmo esquema. Para implementá-lo, a militância ecológica – um dos tentáculos mais fortes do polvo globalista – pode ser usada de duas maneiras simultâneas, opostas e complementares. No âmbito nacional americano, ela demoniza as companhias de petróleo e fornece o argumento “moral” para que o Congresso hoje dominado pela esquerda light proíba a perfuração de novos poços. Isto produz artificialmente a elevação dos preços da gasolina – cuja culpa é em seguida imputada à ganância das empresas – e aumenta a dependência americana de fontes exteriores cada vez mais hostis aos EUA. A pressão da militância ecológica leva diretamente ao esforço para substituir a gasolina pelo etanol. Mas, ao mesmo tempo, o etanol, consistindo sumariamente em queimar comida para manter os carros em movimento nas estradas, pode parecer bastante odioso nos países mais pobres. Aí a militância ecológica fornece aos estrategistas do globalismo um serviço complementar, paradoxal só em aparência: os grupos de esquerda no Terceiro Mundo – no nosso caso, o MST – são mobilizados contra o projeto de substituir a gasolina pelo etanol, apresentado como imposição intolerável do “imperialismo americano”. Só assim se compreende por que a esquerda é ao mesmo tempo favorável e desfavorável ao etanol, conforme o ângulo de onde pretenta atacar os EUA. A dupla face do etanol é uma das amostras mais evidentes da tática de bater com as duas mãos, tão característica do movimento revolucionário ao longo dos séculos. Comparada à simplicidade esquemática da luta eleitoral, a verdadeira política é uma rede de esquivas e subterfúgios que parece nascer mais da astúcia satânica que da racionalidade humana.

O queridinho da elite global

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 12 de junho de 2008

Nada mais significativo do retardamento mental brasileiro do que a insistência mecânica, repetitiva, psicastênica, no mote: “Estarão os EUA maduros para aceitar um presidente negro?” A chantagem psicológica embutida nessa pergunta é tão óbvia, tão grosseira, tão primária (“ou você vota em Obama ou confessa que é racista”), que por aqui até mesmo os mais devotos porta-vozes do candidato democrata procuram evitá-la, deixando-a para jornaizinhos de estudantes e grupos de esquerda sem a mínima expressão eleitoral. Tomando como modelo o discurso desses jornaizinhos, a “grande midia” nacional revela todo o seu provincianismo, a sua radical incapacidade de superar os slogans anti-americanos mais bobocas dos anos 50.

Afinal, por que os americanos deveriam, só para provar “maturidade”, eleger presidente o representante de uma comunidade étnica que mal chega a doze por cento da sua população? No Brasil, os negros e afrodescendentes são quase metade do contingente demográfico, e nunca um deles foi comandante das Forças Armadas nem ministro das Relações Exteriores. Nem mesmo candidato à presidência. Em Cuba jamais houve sequer um ministro negro, mas o estoque de negros nas prisões é um dos mais altos do mundo.

O que singulariza o sr. Barack Obama e explica a onda de badalação em torno dele não é a cor da sua pele, nem a soma de seus duvidosos talentos. Alan Keyes – meu candidato, se eu votasse nas eleições americanas – é duas vezes mais preto que ele, mil vezes mais culto e dez mil vezes mais honesto, e nem por isso deixou de ser boicotado ao ponto de ter de sair do Partido Republicano e lançar-se como candidato independente. Embora tenha considerável apoio entre os conservadores, foi excluído de todos os debates e jamais aparece na “grande mídia”.

As diferenças específicas do sr. Barack Obama são as seguintes:

1. Desde William Z. Foster e Earl Browder, que na década de 40 concorreram pelo Partido Comunista e tiveram votações irrisórias, Obama é o esquerdista mais radical que já se apresentou a uma eleição presidencial americana.

2. Ele apóia todas as medidas globalistas voltadas à destruição da soberania americana. Os círculos globalistas devolvem a gentileza, financiando-o generosamente.

3. Ele é o primeiro candidato presidencial que se apresenta com uma biografia nebulosa, contraditória e, a rigor, incompreensível, sendo menos uma pessoa historicamente identificável do que um amálgama de lendas e subterfúgios capaz de se amoldar às projeções mais desencontradas que a imaginação do eleitor possa lançar sobre ele. É, em toda a extensão do termo, uma figura construída, um fantoche.

4. Ele é o primeiro candidato presidencial americano que jamais teve um emprego produtivo. Só trabalhou como ativista. É um comedor de subsídios por natureza, e não espanta que seu programa de governo consista essencialmente de quatro coisas: aumentar impostos, elevar as despesas estatais até às alturas da catástrofe pura e simples, estrangular a indústria americana por meio de mais leis restritivas e bloquear sob lindos pretextos ecológicos a exploração de petróleo, tornando os EUA ainda mais dependentes da OPEC.

4. O círculo de proteção erigido em torno dele pela grande mídia é tão sólido que mesmo sucessivamente desmascarado pelas mentiras tolas que profere e pela revelação de suas ligações com toda sorte de terroristas e vigaristas, ele continua sendo tratado como alma pura e santa. Tal como Lula, ele foi adotado pela elite globalista e investido do dom da impecância eterna, imune à sujeira da sua vida real, que todo mundo conhece mas que é proibido levar em conta. O manto de proteção estendido sobre ele chega mesmo ao Brasil, onde até um colunista supostamente conservador como Ali Kamel canta louvores ao candidato com base tão-somente nas suas intenções declaradas, abstraindo, como se fossem zeros à esquerda, toda a sua atividade anterior e os inumeráveis trechos francamente racistas dos seus dois livros.

5. Somado a essas qualidades, o fato de ser negro é somente um detalhe útil, que não precisa nem deve ser explorado muito abertamente. A chantagem é tanto mais eficiente quanto mais sutil.

Uma nova fachada do Foro de São Paulo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 09 de junho de 2008

À primeira vista, a União de Nações Sul-Americanas, Unasul, não é nada mais que a implementação de um preceito constitucional. No seu artigo 4, parágrafo único, a Constituição brasileira determina: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”

Na verdade, será uma autoridade supranacional, um órgão do governo mundial, com poderes para impor o socialismo a todo o continente sem que os povos e nações envolvidos possam deter o processo ou interferir nele no mais mínimo que seja.

Os motivos que me levam a dizer isso são muitos.

Desde logo, a implantação do governo mundial a partir de sucessivas integrações regionais é um plano em avançado estado de realização, conforme admitiu já dois anos atrás um relatório do Council on Foreign Relations (v. Os Inventores do Mundo Futuro).

Das várias integrações regionais pretendidas, a primeira e mais bem sucedida até agora, o modelo para todas as vindouras, é a União Européia, e esta funciona exatamente do modo como estou dizendo. Hoje em dia, setenta por cento das decisões de governo na Europa são tomadas em Bruxelas, sem que os eleitores dos vários países possam dar um pio ou tenham sequer os meios de informar-se a respeito. O processo democrático nas nações européias está hoje limitado às questões menores e de curto prazo, nas quais tem de cingir-se às linhas gerais determinadas pela UE. A Europa é hoje uma ditadura administrada localmente por democracias de brinquedo encarregadas de ratificar suas decisões, seja impondo-as sem dar satisfação ao eleitorado (como no caso da poligamia britânica), seja legitimando-as por meio de uma nova modalidade de consulta popular, farsesca até o último limite da palhaçada: quando o referendo decide contra a vontade da UE, é considerado provisório e então se faz outro, e outro, e outro, cansando o eleitorado até forçá-lo a dar a resposta desejada, que então se torna definitiva (foi assim que se impõs a liberação do aborto em Portugal, por exemplo). A constituição da UE, para admitir uma nova nação-membro, exige provas de que o regime vigente nela é suficientemente democrático, mas, como observou o sociólogo Ralf Dahrendorf, a própria UE, caso pedisse ingresso nela mesma, jamais passaria no exame.

Quem quiser estudar esse assunto, que leia “The European Union Collective”, de Christopher Story (London, Edward Harle), e sobretudo o estudo recente de John Fonte, “Global Governance vs. the Liberal Democratic Nation-State: What Is the Best Regime?”, apresentado quarta-feira última no Bradley Symposium 2008 do Hudson Institute em Washington D.C. (v. 2008 Bradley Symposium Fonte Essay), do qual voltarei a falar no fim deste artigo.

Em terceiro lugar, o núcleo gerador da planejada integração latino-americana já existe e está em pleno funcionamento há dezoito anos: é o Foro de São Paulo. O nível de integração aí alcançado pode-se medir pela extensão da rede de proteção mútua entre partidos legais de esquerda e organizações de narcotraficantes e seqüestradores, a qual opera em praticamente todas as nações da América Latina, assegurando a total impunidade para os criminosos que ajam no interesse da estratégia continental esquerdista. O livro organizado por Paulo Diniz Zamboni, “Conspiração de Portas Abertas: Como o Movimento Revolucionário Comunista Ressurgiu na América Latina através do Foro de São Paulo”, recém-lançado pela É-Realizações, São Paulo, 2008 , dá uma descrição geral do fenômeno. Atualizações importantes são os artigos “O XIV Foro de São Paulo rasga a sua cartilha”, de Alejandro Peña Esclusa e “XIV Encontro do Foro de São Paulo: refundação ou branqueamento?”, de Graça Salgueiro.

A completa inexistência de fronteiras nacionais para o Foro de São Paulo e a eficácia assustadora da sua gestão secreta dos assuntos continentais ficaram mais que comprovadas quando o sr. Luís Inácio Lula da Silva, em seu discurso de 2 de julho de 2005, no 15º. aniversário do Foro, admitiu que o resultado do referendo venezuelano de 15 de agosto de 2004 foi criado pela intervenção camuflada dele próprio e de outros membros da entidade. O poder de controle exercido pelo Foro sobre o debate público pode ser medido pelo fato de que o sr. Luís Inácio, mesmo depois dessa confissão oficial, jamais foi sequer interpelado no Parlamento ou na mídia sobre sua interferência ilegal nos assuntos de um país vizinho. O Foro faz o que quer, e ninguém em torno ousa sequer levantar perguntas.

A integração latino-americana opera também no nível ostensivamente criminal, mas, mesmo quando a colaboração entre as Farc, o MIR chileno e as quadrilhas locais chegou a produzir no Brasil o recorde macabro de 50 mil homicídios por ano, a existência da trama de cumplicidades que permitiu alcançar esse resultado continuou tabu nos debates parlamentares e na mídia em geral. Nos meios políticos e empresariais, toda menção ao assunto é ainda considerada uma impolidez pecaminosa. O Foro já é a autoridade transnacional, supranacional, ante a qual as nações se curvam com obediência reverente e silenciosa, nada ousando falar nem pensar contra uma entidade tão sublime. Para que, depois disso, será preciso um órgão encarregado de realizar a “integração”? A Unasul não fará senão estender um manto de legalidade aparente sobre o fato consumado, com a ajuda das devidas conveniências comerciais de parte a parte, apaziguando as consciências dos que se calaram ao longo de quase duas décadas ante o avanço da prepotência e do crime em escala continental.

***

Na conferência de John Fonte, que em uma hora me ensinou mais sobre política internacional do que eu teria aprendido lendo um ano inteiro do New York Times ou cem anos de edições da Folha de S. Paulo, um dos detalhes mais importantes foi a citação de um conselho dado pelo jornalista e cientista político Strobe Talbott a Bill Clinton, conselho que lhe valeu a nomeação para secretário de Estado assistente em 1994. Para vencer a resistência dos americanos à proposta de dissolver a soberania nacional dos EUA, Talbott recomendava “vender o multilateralismo como se fosse não somente um imperativo econômico, mas um meio de preservar e ampliar a liderança americana no mundo”. Toda a política exterior de Clinton está contida nessa fórmula: dissolver o poder nacional americano fingindo ampliá-lo. Como as iniciativas globalizantes se tornaram desde então bastante intrusivas e prepotentes, a nação americana acabou levando a culpa de tudo o que se fazia contra ela. Um efeito colateral disso, na América Latina, foi o de dar credibilidade retroativa e reforçada ao velho discurso “anti-imperialista” da esquerda soi disant nacionalista – representada no Brasil, por exemplo, por um Aldo Rebelo ou um Manuel Cambeses Jr. –, fazendo com que a opinião pública das nações atingidas pelo avanço do globalismo se voltasse às cegas contra os EUA, encobrindo e protegendo as verdadeiras fontes da opressão. Os serviços prestados pelo nacionalismo de esquerda ao globalismo têm sido amplamente recompensados através da ajuda cada vez mais intensa que as organizações esquerdistas recebem de entidades como as fundações Ford e Rockefeller, sem falar em George Soros. O caso da reserva Raposa Serra do Sol ilustra isso de maneira particularmente clara, e ninguém compreenderá as resistências, poucas e débeis, que a iniciativa provocou entre esquerdistas se não atentar para o fato de que procuram encaixar a reação nacionalista no velho esquema do “anti-imperialismo”, jogando-a contra os EUA e ajudando a demolir a única resistência nacional que ainda pode fazer face ao avanço globalista.

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