O Dia de Ação de Graças, que se festeja desde o século XVI mas foi instituído como data oficial por George Washington, é um dos últimos motivos remanescentes para os EUA não se tornarem de vez uma nação de meninos mimados odientos, empenhados em vingar-se de seus benfeitores. Malgrado as tentativas de inocular neles a amargura e a revolta, em geral os americanos continuam gratos de viver num país tão rico e generoso, de modo que em seus corações o sentimento de amor a Deus se mescla indissoluvelmente com o amor à pátria. Nos EUA, é às vezes difícil saber onde termina a religião e onde começa o civismo. Instituindo o Thanksgiving Day em 3 de outubro de 1789, George Washington escreveu: “É dever de todas as nações reconhecer a providência de Deus Todo-Poderoso, obedecer à Sua vontade, ser gratas aos Seus benefícios e humildemente implorar Sua proteção e favor.” Essas palavras já respondiam antecipadamente àqueles que negam a origem judaico-cristã das instituições políticas americanas.
Como alguns amigos americanos me pediram que celebrasse o Thanksgiving com eles escrevendo umas linhas sobre o sentimento de gratidão, decidi tomar como ponto de partida o que pode haver de menos cristão ou judaico: as idéias do filósofo Peter Singer, o professor de Princeton que não vê grande diferença entre matar uma galinha para comê-la e estrangular um bebê para jogá-lo no lixo.
A ética do prof. Singer é baseada num conjunto de argumentos bem simples e razoáveis:
1. Causar sofrimento é induscutivelmente um mal.
2. Causamos necessariamente sofrimento aos animais quando os matamos e comemos.
3. Não há nenhuma prova de que a sobrevivência de um animal à custa do sofrimento de outro seja um bem.
4. Vivemos, portanto, do mal, sobretudo quando pretendemos ver na nossa própria sobrevivência à custa dos outros um bem.
5. Se somarmos ao sofrimento que causamos ao reino animal o mal que nos infligimos uns aos outros desde a origem dos tempos, veremos que o mal impera no mundo em quantidades tais que não sobra nenhuma razão plausível para supor que um Deus bom tenha criado tudo isso.
À primeira vista, não há como refutar esses argumentos. Ao contrário, tudo o que podemos fazer é aceitá-los e prosseguir raciocinando com base neles, em busca de uma ética que não feche os olhos à dura realidade que eles expressam.
Desde logo, não há nenhuma prova de que os vegetais não sofram tanto quanto os animais quando os arrancamos do solo, cortamos, assamos e comemos. Desde a publicação de The Secret Life of Plants de Peter Tompkins e Christopher Bird em 1973, até o estudo mais recente de Anthony Trewavas, “Green plants as intelligent organisms” (2005), têm-se acumulado indícios de que as plantas possuem algumas habilidades cognitivas e afetivas. É verdade que nem toda a comunidade científica aceita essas provas, mas o simples fato de que a discussão se arraste sem conclusões unânimes nos impõe por sua vez a conclusão de que seria uma temeridade afirmar, sem mais, que comer vegetais é um ato moralmente inofensivo.
Muito menos existem provas de que alimentar-se exclusivamente de vegetais torna os seres humanos melhores ou menos violentos. Adolf Hitler era vegetariano, e a história da mais vegetariana das civilizações, a indiana, é um cortejo de horrores que prossegue no século XX com o massacre de muçulmanos pelos hindus quando da independência da Índia e com a matança sistemática de cristãos hoje em dia.
De um ponto de vista singeriano, portanto, nenhum ser vivo – animal ou vegetal – pode moralmente ser trucidado e comido pelas criaturas humanas. Isso equivale a afirmar que comer, no sentido mais geral da palavra, é um pecado e um crime. Mas, se todo mundo houvesse se refreado de cometer esse crime desde o começo da história humana, não haveria história humana nenhuma e não estaríamos aqui discutindo esse adorável assunto. A conclusão inapelável que se segue é que, no sentido mais geral, a vida humana é um pecado e um crime – conclusão que a própria Bíblia subscreve sob o nome de “a Queda”.
Não há, pois, uma oposição formal entre o cristianismo e as idéias do prof. Singer. O que há é uma diferença de escala, pois o prof. Singer baseia toda a sua ética na observação do que se passa no mundo material submetido a determinações quantitativas, entre as quais a necessidade de alimentos, ao passo que a Bíblia inclui a totalidade desse mundo no quadro imensuravelmente maior da infinitude divina.
Não é preciso ser muito inteligente para compreender que tudo aquilo que é quantitativo e finito, ainda que imensamente grande, está contido no infinito como um grão de areia no fundo do oceano. O infinito não tem limitações de espécie alguma e é, ao mesmo tempo, a única coisa que tem de existir necessariamente. Pretender que o universo quantitativo e finito seja a medida última da realidade é autocontraditório, pois uma coisa só termina onde faz fronteira com outra, de modo que a idéia mesma de finitude supõe a existência do infinito para além do finito. O universo finito está submetido à Segunda Lei da Termodinâmica, ou entropia, não tendo como subsistir se não for continuamente realimentado e regenerado pelo infinito. Mais ainda, o infinito não pode nem mesmo ser considerado só do ponto de vista quantitativo, pois a quantidade é em si mesma uma limitação. O infinito transcende todas as determinações quantitativas e só pode ser concebido como uma pletora de qualidades positivas ilimitadas, o Supremo Bem de que falava Platão. Nenhum argumento racionalmente defensável pode ser apresentado contra a existência do Supremo Bem, pois todos resultam em atribuir infinitude àquilo que eles mesmos admitem como finito. O Supremo Bem é, ao mesmo tempo, a Suprema Realidade.
Vistos na escala do infinito, todos os males do mundo finito, por imensos que sejam, são anulados no mesmo instante. Não se pode conceber uma única privação ou limitação que, na escala do infinito, não esteja compensada automaticamente pela profusão ilimitada das qualidades correspondentes.
A Bíblia descreve a Queda, precisamente, como o instante em que os seres humanos perderam de vista a escala da infinitude, passando a considerar o mundo finito como o horizonte último da realidade e, por isso mesmo, as coisas finitas como o objeto exclusivo dos seus desejos. As constantes menções pejorativas do discurso religioso aos “desejos carnais” evocam popularmente a atração entre os sexos, mas essa atração não pode ser boa nem má em si mesma, pois ela tanto pode significar a obsessão pela posse sexual de um corpo determinado quanto a abertura para o desejo do amor infinito por trás da sua concretização temporária na afeição entre dois seres humanos. Segundo o clássico Dicionário Etimológico de Ernout e Meillet, a palavra “carne”, do latim caro, vem de uma raiz osco-úmbria que significa “cortar” ou “fazer em partes”, a qual subsiste de maneira mais clara no grego karenai, no irlandês scaraim e no lituano skiriu, todos com o sentido de “cortar” ou “separar”, bem como no próprio latim curtus, que originou os termos portugueses “cortar”, “curto” e, por fim “castrar”. O desejo carnal que a Bíblia condena é a afeição hipnótica pelo bem terreno amputado, cortado, separado da sua raiz na infinitude. É o desejo cego de uma coisa ilusória que só pode resultar, por sua vez, na separação entre a consciência humana e o fundo divino da realidade – um fenômeno que condensa em si as características de alienação, ou afastamento, e de castração ou autocastração espiritual. A castração consiste na perda da capacidade gerativa, portanto também regenerativa. Na escala do infinito, tudo aquilo que é consumido, perdido, extinto ou gasto no domínio da matéria e do tempo é instantaneamente reconquistado e recriado na eternidade. A eternidade é a infinita regeneração de tudo. Tudo aquilo que entrou na existência por um momento, ainda que brevíssimo, não pode nem voltar a existir no tempo nem desaparecer da eternidade: o que um dia foi “ser”, não pode voltar ao “nada”, porque o nada nunca foi. Considerado no entanto em si mesmo, separado do infinito, o mundo finito é o mundo da contínua extinção, o mundo da entropia. A castração espiritual consiste em perder o sentido da regeneração perpétua, por meio do corte entre o finito e o infinito – a prisão no mundo da “carne”. Nesse mundo, um simples pé de alface que você coma é uma perda irreparável. Bilhões de galinhas, carneiros, vacas e porcos sacrificados em vão na mesa da espécie humana são provas sangrentas da universalidade do mal e do absurdo.
O prof. Singer tem toda a razão no que concerne ao mundo finito. Mas, curiosamente, em vez de voltar-se em seguida com gratidão para o infinito que tudo cura e regenera, ele usa o mal do mundo finito como prova da inexistência do infinito. Isto não faz sentido, já que o finito não pode sequer ser concebido em si mesmo como totalidade sem referência ao infinito. Quer dizer: o prof. Singer condena o mundo finito no instante mesmo em que o glorifica como realidade última, suprimindo o infinito. Mas, como vimos, é essa mesma supressão que torna o mundo finito mau e insuportável, uma imagem do inferno. O prof. Singer tranca-nos no inferno e depois nos acusa de viver no inferno.
Seus argumentos contra o mundo finito são verdadeiros, mas, na escala do infinito, tornam-se banais e irrelevantes. Nossa existência só tem sentido e valor quando reconhecemos a limitação do finito e, erguendo os olhos ao infinito, admitimos que essas limitações são também limitadas, passageiras e, em termos absolutos, ilusórias: só a infinitude divina é real de pleno direito – e é ela que torna a nossa vida possível, suportável e cheia de sentido, ao contrário do festival macabro de interdevoração que nos descreve o Prof. Singer. O sentimento de gratidão à infinitude divina não é um ritual religioso, embora possa sê-lo também: ele é, na base, a única atitude sensata dos seres humanos que reconhecem a estrutura da realidade e não se deixam hipnotizar por pesadelos demoníacos, mesmo que venham de Princeton. Dar graças ao Senhor é obrigação de todas as criaturas pensantes e de todas as nações.