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Mensagem do passado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de abril de 2015          

A Editora Boitempo publicou em tradução o romance de Leonardo Padura, “El Hombre que Amaba a los Perros”, com o título de “O Homem que Amava os Cachorros”.
Eu teria preferido “Cães”, porque, ao lidar com uma língua irmã da sua própria, o tradutor deve ter o bom gosto e bom senso de escolher, seja palavras de igual raiz com significado idêntico nas duas línguas, seja palavras que inexistem no idioma original, jamais palavras idênticas com significado diverso. “Cachorro”, em espanhol, é “filhote”. Talvez o tradutor achasse que “cão” é termo do vocabulário “burguês”.
Mas o problema maior não é esse. Dedicada eminentemente à promoção de ideias e autores comunistas, a equipe da Boitempo mostrou que é capaz de traduzir e divulgar um dos grandes romances do século, ganhando algum dinheiro com ele, sem se deixar afetar pelo seu conteúdo no mais mínimo que seja.
É um caso de insensibilidade literária que raia a psicastenia. Pois raramente, no mundo, o comunismo, não nos detalhes do imensurável horror físico que produziu, mas nas profundezas da deformidade psicopática que o inspira, foi descrito em termos tão cruamente realistas como nesse livro: é uma imagem do inferno ou, para usar as palavras do autor, algo que se parece “antes a um castigo divino do que a uma obra de homens”.
Com base em farta documentação, só complementando-a com a especulação imaginativa nos pontos onde isso é indispensável, o livro conta a história dos últimos anos de vida de Leon Trotski e do seu assassino, Ramon Mercader, paralelamente à do narrador, um escritor cubano reduzido à impotência criadora pelas imposições da burocracia castrista empenhada em tudo rebaixar e mediocrizar.
Os três são homens que apostaram tudo no socialismo e aos quais só resta, no fim da história, a consciência amarga da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.
Embora a maior parte do enredo se passe no tempo de Stalin, o romancista não apela ao expediente costumeiro de trocar “comunismo” por “stalinismo”, usado para branquear a imagem do regime nas épocas subsequentes, mas mostra com muita clareza que, de um modo ou de outro, a mistura de violência assassina e mendacidade alucinante que caracterizou o stalinismo se conservou em ação em todos os países comunistas, muitas décadas depois da morte do ditador.
Padura, que nasceu e ainda mora em Cuba, publicando seus livros no México, viveu tudo isso de perto e colocou no personagem do narrador de “El Hombre que Amaba a los Perros” muito da sua experiência pessoal.
Hoje os brasileiros se espantam ante um governo que lhes rouba bilhões de reais enquanto, com a maior cara dura, continua posando de paladino da moralidade, e, rejeitado por noventa por cento da população, ainda se faz de porta-voz do “povo” contra a “elite”.
Se conhecessem algo da história do comunismo, como a trama urdida por Stalin para dar cabo de Trotski, entenderiam que a mendacidade psicopática, em proporções tão vastas que raiam o diabolismo puro e simples, não é uma invenção do PT: é inerente à mentalidade comunista em todas as épocas e lugares.
Os capítulos finais deste livro mostram o próprio assassino de Trotski, Ramon Mercader, consciente de haver jogado sua vida fora numa farsa demoníaca, concebida para fazer de Trotski, então um exilado sem dinheiro e quase sem seguidores, chutado de cá para lá por todos os governos do mundo, o todo-poderoso líder de uma conspiração global para derrubar o governo soviético com a ajuda simultânea – porca miséria! — dos nazistas e dos americanos.
Durante décadas, Mercader foi adestrado para odiar Trotski com todas as suas forças, só para descobrir, depois, que na realidade nada sabia contra ele além de balelas e invencionices absurdas e antinaturais, injetadas em sua cabeça com violência comparável à do golpe de picareta no crânio com que ele deu fim à existência da sua vítima.
Após ter ido parar na cadeia num dos muitos expurgos que eram rotina na política soviética, o próprio agente secreto que treinou e disciplinou a mão assassina de Mercader tem, na velhice, a mesma consciência de ter servido apenas aos caprichos insensatos de um ditador enlouquecido pelo medo, que não se acalmaria antes de haver eliminado da face da Terra todos os seus inimigos reais, hipotéticos, virtuais ou totalmente imaginários.
Especialmente significativa é uma personagem secundária, a mãe de Mercader, Caridad. Mulher frígida que o marido burguês corrompe para ver se desperta nela o desejo sexual, ela se entrega então a uma vida devassa e ao consumo de drogas, chegando a uma tentativa de suicídio.
Só emerge da depressão quando encontra uma saída existencial no comunismo e reestrutura sua personalidade com base nos valores da militância, tornando-se uma combatente fanática, odiando o marido e o capitalismo como se fossem uma só entidade e contribuindo decisivamente para fazer do filho um assassino a soldo de Stalin.
Eu não poderia ter encontrado melhor ilustração para o conceito do outsider como militante, que descrevi em artigo recente neste mesmo jornal (leia aqui).
No fim, o desencanto de Caridad é o mesmo de Ramón e de seu instrutor, com a diferença de que ela não tem nem mesmo a força deles para meditar sobre a insensatez do seu passado.
O vazio, a secura, a tristeza vã e desesperançada que são tudo o que resta a esses homens quando compreendem a pantomima tola e sangrenta da qual se fizeram servidores e agentes, são a mensagem derradeira legada pelo século XX à presente geração, aí incluídos os editores brasileiros incapazes de ouvi-la.
Não é preciso dizer que perseguições em massa, cruéis e insensatas, no mais puro modelo stalinista, aconteceram também na China comunista, em Cuba, no Vietnã, no Camboja, em todos os países-satélites da URSS e por toda parte onde a opinião comunista tenha saído do subsolo psicopático que lhe é natural e conquistado um lugar de respeito na sociedade.
O modelo universalizou-se. A única coisa que varia é a dosagem respectiva da violência e da mendacidade que a fórmula da loucura comunista assume em distintos lugares do mundo.
Nos países onde não tem força bastante para tomar o poder pelas armas, o comunismo apela à estratégia gramsciana do engodo geral e, por isso mesmo, como aconteceu no Brasil, rouba mais do que mata, pelo menos até que o produto do roubo, crescendo até dimensões oceânicas, lhe assegure a posse dos meios de matar.

Os desajustados

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 24 de março de 2015

        

Que o advento do capitalismo colocou a economia no centro e no topo da existência é algo que ninguém pode negar, e é óbvio que a esse tipo de vida só se amoldam com algum conforto interior os entusiastas do dinheiro e os conformistas mais medíocres e sonsos.
Todos os outros, por mais gratos ao progresso técnico e ao conforto material, sentem que no mundo capitalista algo de muito essencial e precioso lhes foi roubado: não adianta você dispor de todos os meios se a vida não tem outra finalidade senão produzir mais meios.
Se o capitalismo obteve mais sucesso nos EUA do que em qualquer outro lugar foi apenas porque aí, desde o início, o esforço de produzir e lucrar veio associado à ética cristã da ajuda ao próximo e ao sonho heroico da conquista do território – dois objetivos de vida mais do que suficientes para animar o espírito de um povo.
O capitalismo puro, reduzido ao esquematismo de uma fórmula econômica, tal como se viu nos romances de Balzac e nas análises de Karl Marx que eles inspiraram, jamais existiu nos EUA até o fim da II Guerra.
O que existiu foi um capitalismo vivificado e embelezado pela religião cristã e pelo espírito de aventura. Tão logo o primeiro desses fatores começou a debilitar-se no cenário cultural, e o segundo perdeu todo sentido no território já integralmente dominado, o capitalismo americano deixou de ser um ideal para se tornar uma máquina de auto-reprodução que prescinde de qualquer outra justificativa além da própria capacidade de reproduzir-se e crescer ilimitadamente.
David Riesman, no clássico The Lonely Crowd (1950), assinala que, a partir desse momento, um novo tipo de personalidade-padrão passou a predominar na sociedade americana em substituição ao homem devoto da era colonial e ao self made man dos tempos heróicos: o homenzinho trêmulo e obediente, perfeitamente ajustado ao mecanismo do qual espera proteção e segurança – o Organization Man (1956), como o chamou William H. Whyte Jr. em outro livro clássico.
Não espanta que desde então a burocracia estatal interferisse cada vez mais na economia e até na vida pessoal dos cidadãos, descaracterizando o capitalismo americano e transformando-o cada vez mais num tipo incipiente de socialismo, onde os interesses do Estado convergem com o das grandes corporações no sentido de realizar, por via burocrática, o império da organização econômica como único padrão e critério de julgamento, a que todos os valores religiosos, morais e culturais devem se submeter.
Na mesma medida, uma ética coletivista passa a predominar sobre o ideal da responsabilidade individual, e a crítica cultural de esquerda ao capitalismo, forçando sob esse pretexto a redução de tudo às exigências da economia que ela mesma condena, se torna uma profecia autorrealizável.
Nos EUA, essa situação construiu-se sobre os escombros da tradição cristã e do espírito aventureiro. Nos países onde não encontrou semelhantes fatores de resistência, esse resultado se obteve de maneira muito mais rápida e direta, em muitos deles com o agravante do subdesenvolvimento, onde o misto de capitalismo incipiente, ineficiência e permanente exasperação socialista reduz a vida a uma “luta contra a pobreza”, que é a versão favelada da luta pela prosperidade.
Seja nesses países, seja no capitalismo americano esvaziado de seus valores culturais, onde quer que a economia subjugue dessa maneira as outras dimensões da vida social, o resultado é aquele tipo de existência sem sentido, no qual só se sentem à vontade, de um lado, os mais materialistas, que regem o espetáculo e, de outro lado, os mais burrinhos, incapazes de aspirar a qualquer coisa mais alta que uma sobrevivência protegida.
É aí que começam a brotar, em número cada vez maior, os desajustados, os revoltados, os outsiders.
Há basicamente três tipos de outsiders. Para abreviar, vou chamá-los de “o fracassado”, “o gênio” e “o militante”.
O primeiro é o desajustado em sentido estrito, incapaz de jogar o jogo e até de assimilar as regras. Por mais que tentem ajudá-lo, fracassa nos estudos, no trabalho e na vida social, caindo logo para a loucura, o vício, o crime. Em muitos países – o Brasil, por exemplo – esse tipo representa mais de dez por cento da população.
O segundo compreende muito bem as regras e sabe usá-las, mas prefere jogar o seu próprio jogo. Buscando no interior da sua alma a raiz do espírito que vivifica e fortalece, ele pode enfrentar no início o isolamento e a rejeição, mas acaba sempre obrigando a sociedade a aceitá-lo como ele é, e não raro a render-lhe homenagem, mesmo a contragosto.
Gênios, sobretudo literários, existiram antes do capitalismo, é claro, mas não eram outsiders. Passaram a sê-lo no tempo de Baudelaire e Flaubert, ou, nos EUA, uns poucos a partir da I Guerra e em massa a partir da II.
O terceiro é um misto, feito de versões diluídas e atenuadas dos outros dois. Tem a fraqueza do primeiro, sem o seu derrotismo, e a ambição do segundo, sem a sua força.
Não compreende a sociedade, mas não aceita que ela o esmague. Junta-se portanto a outros milhares iguais a ele, buscando no apoio do grupo as forças que o gênio encontra em si próprio. Incapaz de transformar-se, jura que vai transformar o mundo.
O número de correligionários é o fator decisivo na vida dos militantes. Quando em minoria, reúnem-se para compensar o isolamento grupal com a reiteração histérica do discurso crítico, que lhes infunde um sentimento forçado de superioridade.
Quando se tornam maioria dominante, esse sentimento se transmuta em critério de normalidade, impondo-se à sociedade inteira e marginalizando como doentes ou criminosos aqueles que ainda permanecem normais no sentido antigo.
A pletora de gênios literários que floresceu no mundo desde o século XIX conferiu ao outsider um prestígio quase sacral, que dos gênios se estendeu por osmose aos loucos e aos militantes, como se a doença de uns e a auto-hipnose grupal dos outros fossem formas de genialidade.
As modalidades de existência mais capengas que existem tornaram-se modelos de perfeição humana.
***
Talvez o sinal mais patente de que a militância revolucionária é uma forma inferior e mórbida de existência é a absoluta impossibilidade que um escritor revolucionário tem de enxergar como seres humanos normais, sem deformações sádicas ou grotescas, os que não compartilham das suas crenças.
A literatura mundial está repleta de personagens revolucionários tratados com simpatia e compreensão por escritores conservadores e reacionários, como Balzac, Dostoiévski, Bernanos, Joseph Conrad ou o nosso Octávio de Faria.
Um reacionário que não seja mau ou ridículo é algo que simplesmente inexiste na literatura comunista. Isso mostra, da maneira mais patente, que a visão do mundo revolucionária é uma fantasia histérica, em que a percepção direta do ser humano, tal como ele aparece na vida real, é sufocada sob o peso do estereótipo ideológico.

Um cadáver no poder (II)

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 29 de janeiro de 2015

 

Volto à análise da Teologia da Libertação.
Se a coisa e até o nome que a designa vieram prontos da KGB, isso não quer dizer que seus pais adotivos, Gutierrez, Boff e Frei Betto, não tenham tido nenhum mérito na sua disseminação pelo mundo. Ao contrário, eles desempenharam um papel crucial nas vitórias da TL e no mistério da sua longa sobrevivência.

Os três, mas principalmente os dois brasileiros, atuaram sempre e simultaneamente em dois planos. De um lado, produzindo artificiosas argumentações teológicas para uso do clero, dos intelectuais e da Cúria romana. De outro lado, espalhando sermões e discursos populares e devotando-se intensamente à criação da rede de militância que se notabilizaria com o nome de “comunidades eclesiais de base” e viria a constituir a semente do Partido dos Trabalhadores. “Base” é aliás o termo técnico usado tradicionalmente nos partidos comunistas para designar a militância, distinguindo-a dos líderes. Sua adoção pela TL não foi mera coincidência. Quando os pastores se transformaram em comissários políticos, o rebanho tinha mesmo de tornar-se “base”.

No seu livro E a Igreja se Fez Povo, de 1988, Boff confessa que foi tudo um “plano ousado”, concebido segundo as linhas da estratégia da lenta e sutil “ocupação de espaços” preconizada pelo fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci. Tratava-se de ir preenchendo aos poucos todos os postos decisivos nos seminários e nas universidades leigas, nas ordens religiosas, na mídia católica e na hierarquia eclesiástica, sem muito alarde, até chegar a época em que a grande revolução pudesse exibir-se a céu aberto.
Logo após o conclave que o elegeu, em 1978, o papa João Paulo I teve um encontro com vinte cardeais latino-americanos e ficou muito impressionado com o fato de que a maioria deles apoiava ostensivamente a Teologia da Libertação. Informaram-lhe, na ocasião, que já havia mais de cem mil “comunidades eclesiais de base” disseminando a propaganda revolucionária na América Latina. Até então, João Paulo I conhecia a TL apenas como especulação teórica. Nem de longe imaginava que ela pudesse ter se transformado numa força política de tais dimensões.

Em 1984, quando o cardeal Ratzinger começou a desmontar os argumentos teóricos da “Teologia da Libertação”, já fazia quatro anos que as “comunidades eclesiais de base” tinham se transfigurado num partido de massas, o Partido dos Trabalhadores, cuja militância ignora maciçamente quaisquer especulações teológicas, mas jura que Jesus Cristo era socialista porque assim dizem os líderes do partido.

Dito de outro modo, a pretensa argumentação teológica já tinha cumprido o seu papel de alimentar discussões e minar a autoridade da Igreja, e fora substituída, funcionalmente, pela pregação aberta do socialismo, onde o esforço aparentemente erudito de aproximar cristianismo e marxismo cedia o passo ao manejo de chavões baratos e jogos de palavras nos quais a militância não procurava nem encontrava uma argumentação racional, mas apenas os símbolos que expressavam e reforçavam a sua unidade grupal e o seu espírito de luta.
O sucesso deste segundo empreendimento foi proporcional ao fracasso do trio na esfera propriamente teológica. É possível que na Europa ou nos EUA um formador de opinião com pretensões de liderança não sobreviva à sua desmoralização intelectual, mas na América Latina, e especialmente no Brasil, a massa militante está a léguas de distância de qualquer preocupação intelectual e continuará dando credibilidade ao seu líder enquanto este dispuser de um suporte político-partidário suficiente.

No caso de Boff e Betto, esse suporte foi nada menos que formidável. Fracassadas as guerrilhas espalhadas em todo o continente pela OLAS, Organización Latino-Americana de Solidariedad, fundada por Fidel Castro em 1966, a militância se refugiou maciçamente nas organizações da esquerda não-militar, que iam colocando em prática as ideias de Antonio Gramsci sobre a “ocupação de espaços” e a “revolução cultural”. A estratégia de Gramsci usava a infiltração maciça de agentes comunistas em todos os órgãos da sociedade civil, especialmente ensino e mídia, para disseminar propostas comunistas pontuais, isoladas, sem rótulo de comunismo, de modo a obter pouco a pouco um efeito de conjunto no qual ninguém visse nada de propaganda comunista, mas no qual o Partido, ou organização equivalente, acabasse controlando mentalmente a sociedade com “o poder invisível e onipresente de um mandamento divino, de um imperativo categórico” (sic).

Nenhum instrumento se prestava melhor a esse fim do que as “comunidades eclesiais de base”, onde as propostas comunistas podiam ser vendidas com o rótulo de cristianismo. No Brasil, o crescimento avassalador dessas organizações resultou, em 1980, na fundação do Partido dos Trabalhadores, que se apresentou inicialmente como um inocente movimento sindicalista da esquerda cristã e só aos poucos foi revelando os seus vínculos profundos com o governo de Cuba e com várias organizações de guerrilheiros e narcotraficantes. O líder maior do Partido, Luís Inácio “Lula” da Silva, sempre reconheceu Boff e Betto como mentores da organização e dele próprio.

Nascido no bojo do comunismo latino-americano por intermédio das “comunidades eclesiais de base”, o Partido não demoraria a devolver o favor recebido, fundando, em 1990, uma entidade sob a denominação gramscianamente anódina de “Foro de São Paulo”, destinada a unificar as várias correntes de esquerda e a tornar-se o centro de comando estratégico do movimento comunista no continente.

Segundo depoimento do próprio Frei Betto, a decisão de criar o Foro de São Paulo foi tomada numa reunião entre ele, Lula e Fidel Castro, em Havana. Durante dezessete anos o Foro cresceu em segredo, chegando a reunir aproximadamente duzentas organizações filiadas, misturando partidos legalmente constituídos, grupos de sequestradores como o MIR chileno e quadrilhas de narcotraficantes como as Farc, que juravam nada ter com o tráfico de drogas mas então já costumavam trocar anualmente duzentas toneladas de cocaína colombiana por armas contrabandeadas do Líbano pelo traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar.

Quando Lula foi eleito presidente do Brasil, em 2002, o Foro de São Paulo já havia se tornado a maior e mais poderosa organização política em ação no território latino-americano em qualquer época, mas sua existência era totalmente desconhecida pela população e, quando denunciada por algum investigador, cinicamente negada. O bloqueio chegou ao seu ponto mais intenso quando, em 2005, o sr. Lula, já presidente do Brasil, confessou em detalhes a existência e as atividades do Foro de São Paulo. O discurso foi publicado na página oficial da Presidência da República, mas mesmo assim a grande mídia em peso insistiu em fingir que não sabia de nada.

Por fim, em 2007, o próprio Partido dos Trabalhadores, sentindo que o manto de segredo protetivo já não era necessário, passou a alardear aos quatro ventos os feitos do Foro de São Paulo, como se fossem coisa banal e arqui-sabida. Somente aí os jornais admitiram falar do assunto.

Por que o segredo podia agora ser revelado? Porque, no Brasil, toda oposição ideológica tinha sido eliminada, restando apenas sob o nome de “política” as disputas de cargos e as acusações de corrupção vindas de dentro da própria esquerda; ao passo que, na escala continental, os partidos membros do Foro de São Paulo já dominavam doze países. As “comunidades eclesiais de base” haviam chegado ao poder. Quem, a essa altura, iria se preocupar com discussões teológicas ou com objeções etéreas feitas vinte anos antes por um cardeal que levara a sério o sentido literal dos textos e mal chegara a arranhar a superfície política do problema?

Nos doze anos em que permaneceu no poder, o PT expulsou do cenário toda oposição conservadora, partilhando o espaço político com alguns aliados mais enragés e com uma branda oposição de centro-esquerda, e governou mediante compras de consciências, assassinatos de inconvenientes e a apropriação sistemática de verbas de empresas estatais para financiar o crescimento do partido.

A escalada da cleptocracia culminou no episódio da Petrobrás, onde o desvio subiu à escala dos trilhões de reais, configurando, segundo a mídia internacional, o maior caso de corrupção empresarial de todos os tempos. Essa sucessão de escândalos provocou algum mal-estar na própria esquerda e constantes reclamações na mídia, levando a intelligentsia petista a mobilizar-se em massa para defender o partido. Há mais de uma década os srs. Betto e Boff estão ocupados com essa atividade, na qual a teologia só entra como eventual fornecedora de figuras de linguagem para adornar a propaganda partidária. A TL havia assumido, finalmente, sua mais profunda vocação.

Quem quer que leia os escritos de Gutierrez, Boff e Betto descobre facilmente as suas múltiplas inconsistências e contradições. Elas revelam que esse material não resultou de nenhum esforço teorizante muito sério, mas do mero intuito de manter os teólogos de Roma ocupados em complexas refutações teológicas enquanto a rede militante se espalhava por toda a América Latina, atingindo sobretudo populações pobres desprovidas de qualquer interesse ou capacidade de acompanhar essas altas discussões.
Os boiadeiros chamam isso de “boi-de-piranha”: jogam um boi no rio para que os peixes carnívoros fiquem ocupados em devorá-lo, enquanto uns metros mais adiante a boiada atravessa as aguas em segurança.

Intelectualmente e teologicamente, a TL está morta há três décadas. Mas ela nunca foi um movimento intelectual e teológico. Foi e é um movimento político adornado por pretextos teológicos artificiosos e de uma leviandade sem par, lançados nas águas de Roma a título de “boi de piranha”. A boiada passou, dominou o território e não existem piranhas de terra firme que possam ameaçá-la.

Sim, a TL está morta, mas o seu cadáver, elevado ao posto mais alto da hierarquia de comando, pesa sobre todo um continente, oprimindo-o, sufocando-o e travando todos os seus movimentos. A América Latina é hoje governada por um defunto.

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