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Sanctus

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de abril de 2010

“The best lack all conviction, while the worst are full of passionate intensity.”
(William Butler Yeats)

As convicções íntimas do nosso presidente nunca foram muito claras. Há até quem diga que ele não tem nenhuma, antes amoldando-se às conveniências e alianças com a ductilidade sem fim da “matéria prima” aristotélica, aquele substrato cósmico vazio de qualidades definidoras, que podia tornar-se qualquer coisa justamente por não ser nada. No entanto, há pelo menos uma coisa em que ele me parece acreditar com fé constante e inabalável: que a espécie humana, em especial sua parcela brasileira, não tem outra finalidade nem razão de existir senão ajoelhar-se e entoar diariamente “sanctus, sanctus, sanctus” diante da imagem dele.

Tenho quase a certeza de que ele acredita nisso, por três razões:

Primeira, porque ele mesmo declarou ser homem sem pecados, equiparando-se a Nosso Senhor Jesus Cristo num momento e num contexto tão estranhos a qualquer possibilidade de ironia, que só restava, para explicar sua conduta, a hipótese da mais completa, ingênua e franca cegueira espiritual. S. Excia., em suma, cumpriu à risca a profecia de Simone Weil: “Estar no inferno é acreditar, por engano, que se está no céu.”

Segunda. Quando assumiu o poder, em 2002, ele ostentava uma glória singular, na qual só viria a ser superado por Barack Hussein Obama em 2008: nenhum candidato presidencial no mundo fôra jamais tão louvado, incensado e glorificado pela mídia universal sem necessidade de apresentar a menor realização que o justificasse. Isso sobe à cabeça, especialmente de quem nada tem dentro dela.

Terceira. Nunca vi um político ou intelectual esquerdista que não alimentasse essa crença a respeito de si próprio, em grau maior ou menor. Todo sujeito que traz no bolso o projeto de “um mundo melhor” acredita-se, por definição, melhor que o mundo existente. Não há razão mais forte para colocar-se acima de todo julgamento humano, nem para sentir que qualquer quantidade de poder que se entregue nas suas mãos é pouca e mesquinha para a realização de objetivo tão nobre, tão excelso. Nosso Senhor disse aos apóstolos: “Vós julgareis o mundo”. Pelo menos desde o século XVIII, não há um só militante ou mero simpatizante revolucionário que, ouvindo essas palavras, não conclua com lógica implacável: “Isso é comigo.” Com candura exemplar, Jean-Jacques Rousseau, após ter abandonado cinco filhos na miséria, mentido a valer e comido as mulheres de seus benfeitores, proclamou que não havia em toda a Europa – a modéstia o impediu de dizer “em todo o mundo” – um homem melhor que ele. Ernesto Che Guevara achava-se um primor de ternura no instante em que estourava os miolos de prisioneiros amarrados. É com o mesmo espírito que hoje tantos indivíduos proclamam ser a sodomia, quando praticada por eles, um rito santificante. E sem dúvida é com idêntica razão que até os adversários de Dona Dilma Rousseff proclamam que ela não merece críticas por ter participado ativamente de assaltos e homicídios: afinal, ela fez isso “por um mundo melhor”. Por definição, o privilégio de redimir-se mediante a simples alegação de boas intenções imaginárias não se estende jamais aos adversários da revolução. Estes, a priori, agem sempre por motivos egoístas e malignos, mesmo quando nada ganhem e, de coração, tudo sacrifiquem por aquilo em que acreditam. O revolucionário, em contrapartida, santifica-se automaticamente pelo simples fato de sê-lo, mesmo quando se locuplete e desfrute gostosamente dos bens alheios, colhidos a pretexto de salvar o mundo.

Não, meus amigos, os revolucionários não pensam como nós outros. A nós cabe o fardo dos nossos pecados, cuja lembrança nos envergonha, nos humilha e nos atormenta. Só alguns poucos dentre nós têm a imensa cara-de-pau de confessá-los em privado a Nosso Senhor e, quando apontados na rua por algum fofoqueiro malicioso, mandá-lo lamber sabão. A maioria, como não tem outra consciência moral senão a opinião alheia, encolhe-se diante do acusador, tanto mais envergonhada e genuflexa quanto mais descabida e pérfida a acusação. Ora, quem neste mundo acusa com a veemência, o vigor, a eloqüência feroz do revolucionário previamente imunizado, como Jean-Jacques, Che, Lula ou Dilma Rousseff, contra a consciência dos seus próprios pecados?

Eis aí a razão do sucesso das ideologias revolucionárias, mesmo e sobretudo entre aqueles que têm tudo a perder com a vitória delas.

A briga que ninguém quer comprar

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de abril de 2010

Em cada momento do tempo, o estado geral de uma sociedade é indicado por uma série de fatores que podem ser medidos e comparados, como por exemplo a renda média, a criminalidade, o aproveitamento escolar, o número de casamentos e divórcios, etc.

A comparação entre esses fatores permite avaliar a importância relativa de cada fato – ou série de fatos – no conjunto da vida social. Por exemplo, o número de crimes e de vítimas, distribuído entre várias regiões, grupos sociais e faixas etárias. O conhecimento geral desse quadro desperta na população o senso das proporções que servirá de régua para medir a credibilidade das opiniões circulantes. Acima das preferências pessoais e grupais, o núcleo factual conhecido por todos é o tribunal de última instância no qual as idéias e propostas serão julgadas conforme sua adequação ou inadequação à realidade.

Ora, só há um canal por onde o conhecimento do quadro geral pode chegar à população: a mídia. O desempenho normal e saudável dessa função pelos jornais depende não somente de que eles divulguem os fatos, mas de que os selecionem e lhes confiram destaque maior ou menor conforme a sua importância real naquele quadro comparativo, de modo que os focos de atenção popular se hierarquizem segundo a importância objetiva dos fatores.

Em toda sociedade há um determinado número de estudiosos que têm acesso a fontes diretas e não dependem da mídia popular para formar sua visão das coisas. Para a população em geral, no entanto, vigora uma espécie de movimento circular: a constância e o destaque com que os fatos são noticiados na mídia tornam-se o padrão de aferição para o julgamento dos fatos subseqüentes divulgados pela mesma mídia. Em suma: a mídia cria sua própria regra de credibilidade, não havendo, para o grosso da população, nenhum outro quadro de referência pelo qual essa credibilidade possa ser julgada.

Até os anos 50-60, cada órgão de mídia neste país, malgrado a multiplicidade de interesses a que devia atender, mantinha-se razoavelmente submisso à ordem objetiva dos fatores, por saber que exageros ou distorções muito visíveis seriam, no dia seguinte, desmascarados por seus concorrentes. Até certo ponto, a imagem geral da sociedade tal como aparecia nos jornais coincidia com o quadro quantitativo real: o que merecia destaque e cobertura continuada era aquilo que, na vida social, tinha alguma importância objetiva.

Quatro fatores contribuíram para libertar a mídia nacional desses escrúpulos de realismo.

O primeiro foi a solidariedade maior entre as empresas, forjada durante o regime militar para a defesa comum contra as imposições do governo. As denúncias mútuas de fraude e de mau jornalismo desapareceram quase que por completo, colocando cada empresa jornalística na posição confortável de poder mentir a salvo de represálias dos concorrentes. Na mesma medida, a disputa de mercado praticamente cessou, distribuindo-se os leitores mais ou menos equitativamente entre as maiores publicações.

O segundo foi a diversificação das atividades lucrativas das empresas jornalísticas, que passaram a depender cada vez menos da aprovação dos leitores. A prova máxima dessa transformação é que essas empresas se tornaram formidavelmente mais ricas e poderosas sem que a tiragem de seus jornais aumentasse no mais mínimo que fosse. Com a escolaridade crescente, o número de leitores potenciais subiu de ano para ano, mas os maiores jornais brasileiros não vendem, hoje em dia, mais exemplares do que nos anos 50. É um fenômeno único no jornalismo mundial.

Em terceiro lugar, a obrigatoriedade do diploma universitário promoveu a uniformização cultural e ideológica da classe jornalística, de modo que já não há diferenças substantivas entre os climas de opinião nas várias redações de jornais e revistas. Na homogeneidade geral, as exceções individuais tornam-se irrelevantes.

Por último, as influências intelectuais que vieram a dominar as faculdades de jornalismo, deprimindo a confiança nos velhos critérios de objetividade e enfatizando antes a função dos jornalistas como “agentes de transformação social”, acabaram transmutando maciçamente as redações em grupos militantes imbuídos de uma agenda político-cultural e dispostos a implementá-la por todos os meios. Por isso é que, de milhares de profissionais de mídia que ocultaram a existência do Foro de São Paulo por dezesseis anos, só um, um único, mostrou algum arrependimento. Os outros, inclusive os autonomeados fiscais da moralidade jornalística alheia, preferiram, retroativamente, ocultar a ocultação – e não perderam um minuto de sono por isso.

Some-se a tudo isso um quinto fator, de dimensões internacionais: o tremendo desenvolvimento, nas últimas décadas, das técnicas de engenharia social e da sua aplicação pelos meios de comunicação.

Quem pode impedir que empresas mutuamente solidárias, libertas até mesmo do temor ao público, tendo a seu serviço uma massa bem adestrada de “transformadores do mundo” e um conjunto de instrumentos de ação tão discretos quanto eficientes, mandem às favas todo senso objetivo das proporções e se empenhem em criar uma “segunda realidade”, uma nova ordem dos fatores, totalmente inventada, legitimando de antemão qualquer nova mentira que lhes ocorra distribuir amanhã ou depois?

Nessas condições, toda presunção de “objetividade jornalística”, personificada ou não nessa moderna versão do bobo-da-côrte que é o ombudsman, tornou-se hoje apenas um adorno publicitário sem qualquer eficácia real na prática das redações.

O total desprezo pelos critérios quantitativos de aferição da importância das notícias tornou-se, portanto, a norma usual e corriqueira em todas as maiores publicações. Não havendo padrão de medida exterior pelo qual o jornalismo possa ser julgado, os jornais passaram a viver de um noticiário autofágico e uniforme, publicando todos as mesmas coisas, com igual destaque, e confirmando-se uns aos outros no auto-engano comum.

Não há um só jornal ou grande revista, por exemplo, que gradue o destaque dado à denúncias de padres pedófilos pelo exame comparativo de casos similares em outros grupos sociais. Esse exame mostraria, acima de qualquer possibilidade de dúvida, que o número de delitos é muito, muito menor entre padres católicos do que em qualquer outra comunidade humana, embora o destaque dado na mídia a esses casos induza a população a crer o contrário. Em artigo recente, o sociólogo italiano Massimo Introvigne mostrou que, num periodo de várias décadas, apenas cem sacerdotes foram denunciados e condenados na Itália, enquanto seis mil professores de educação física sofriam condenação pelo mesmo mesmo delito. Introvigne citou os professores de educação física apenas como grupo-controle. Poderia ter mencionado dezenas de outros: no conjunto, os casos de padres pedófilos revelariam ser as raridades que são, contrastando dramaticamente com a disseminação alarmante do crime de pedofilia na sociedade em geral. Eu mesmo, examinando as estatísticas alardeadas pela campanha anticlerical na Irlanda, e tirando delas as conclusões aritméticas que os autores do documento maliciosamente se recusavam a tirar, mostrei que, em cada escola católica daquele país, ocorrera não mais de um caso de pedofilia a cada dezesseis anos. Chamar isso, como a mídia o chama, de “pedofilia epidêmica”, é evidentemente uma fraude, mas como pode a população percebê-lo se não tem acesso a outro critério comparativo senão aquele que lhe é fornecido pela própria mídia segundo o recorte de uma agenda politicamente interesseira?

Mutatis mutandis, o número e a gravidade das ocorrências entre os Legionários de Cristo – mesmo sem contar as peculiaridades organizacionais que destaquei no meu artigo anterior – são tão maiores que os dos casos registrados em qualquer outra instituição católica, que tratar delas sem sublinhar a diferença, antes reduzindo-as a exemplos de “pedofilia católica” como quaisquer outros, é falsificar por completo a visão dos fatos.

Uma coisa é a realidade da vida social, outra a sua imagem na mídia e nos debates públicos. A segunda pode estar muito deslocada da primeira, fazendo com que a atenção pública se aliene da realidade ao ponto de a população tornar-se incapaz de compreender o que está acontecendo. O deslocamento completo assinala um estado de psicose social.

Massimo Introvigne tem razão ao dizer que a campanha contra a Igreja Católica sob o pretexto de denúncias de pedofilia é um caso de “pânico moral”. Mas a sociologia só lida com fatores gerais, impessoais, anônimos. Não lhe cabe rastrear origens históricas, nem sondar o coeficiente de premeditação e planejamento criminoso na produção desses fenômenos. Só a investigação histórica, judicial e, é claro, jornalística, pode elucidar esse ponto e identificar os culpados por uma das campanhas caluniosas mais vastas e pérfidas de todos os tempos. Hoje há documentação suficiente para isso. O que falta, inclusive na Igreja Católica, é vontade de comprar essa briga.

A ideologia de Ridley Scott

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de abril de 2010

Quem vê o filme de Ridley Scott, The Kingdom of Heaven, sai do cinema com a impressão de que o cristianismo medieval foi apenas uma ideologia sanguinária de fanáticos, tiranos e ladrões. Nesse quadro, as virtudes do “perfeito cavaleiro” Balian não poderiam ter nascido dos valores religiosos que historicamente criaram a ética de cavalaria personificada nelas, mas aparecem antes como a antítese desses valores e de todo o cristianismo: Balian, duque de Ibelin, só é moralmente superior aos brutamontes ávidos de riqueza e poder que o cercam porque, em pleno ano de 1194, encarna os ideais da democracia iluminista do século XVIII e o multiculturalismo do século XXI. A Jerusalém que ele quer e defende – a mesma com que sonham aqueles dois outros primores de bondade, o rei leproso e o comandante muçulmano Saladino – é substancialmente a da ONU: um território neutro, supranacional e supra-religioso, onde uma legislação laica assegura a paz entre os diversos grupos de crentes, reduzindo o significado espiritual da cidade a uma questão de “diferenças culturais” que não devem se sobrepor aos interesses superiores da ordem pública. Tal é o “reino de Deus na Terra” como o entendem o duque de Ibelin e o diretor do filme.

Praticamente toda a visão que a modernidade tem da História – pelo menos aquela que se transmite nas escolas e na midia – é constituída de anacronismos, mas raramente eles foram levados ao extremo de fazer de um cavaleiro medieval uma aparição antecipada de Voltaire e Bill Clinton.

A percepção invertida do tempo, à qual o indiscutível talento cinematográfico de Ridley Scott dá feições de realidade verossímil, é a base mesma da mentalidade revolucionária cujo megafone supremo, desde o advento das comunicações de massa, é a indústria do show business. O arremedo de “vida intelectual” que viceja entre astros e estrelas desse ramo multibilionário da economia é o terreno mais propício para aquilo que Willi Münzenberg chamava de “criação de coelhos”: a disseminação de absurdidades politicamente úteis entre tagarelas vaidosos que as transmutam em grandes espetáculos para a completa imbecilização do povo e a glória dos projetos de poder em pauta no momento.

Não é por acaso que, em contrapartida, as belas qualidades morais do general banido Maximus, no filme anterior de Scott, The Gladiador, não precisassem ser explicadas por nenhum deslocamento histórico de sete, oito ou nove séculos, mas aparecessem diretamente como expressões do culto romano dos antepassados. Não somente Scott nada tem contra a religião estatal de Roma, mas esta é, a rigor, a fórmula ancestral do multiculturalismo laico hoje em dia apregoado como remédio universal contra a violência e a guerra (escrevi um livro inteiro sobre isso, não escrevi?).

Também não é coincidência que, em The Kingdom of Heaven, embora as duas grandes religiões em disputa sejam ambas estigmatizadas verbalmente como causas de todos os males, só uma delas seja mostrada na tela como autora de crimes. Claro, para o multiculturalismo, todas as religiões são iguais, mas umas são mais iguais que as outras: é preciso tomar todo o cuidado para não ofender a sensibilidade muçulmana. Caso contrário, como seria possível alegar a sanha homicida da Al-Qaeda e do Hamas como prova da periculosidade das religiões em geral e, como remédio, buscar a extinção, não de todas elas, mas de uma em particular, que por coincidência, por mera coincidência, não é o islamismo e sim o cristianismo? O fato de que este seja o maior fornecedor de vítimas para a violência islâmica e de que não lhe ofereça outra reação senão melosos apelos à paz mundial não afeta em nada a lógica multiculturalista, na qual os feitos de Bin-Laden, os homens-bomba ou o regime de terror de Saddam Hussein provam de maneira inequívoca a maldade da Santa Inquisição e a necessidade imperiosa de banir da sociedade decente os últimos sinais visíveis da fé cristã. A ânsia louca de dar alguma aparência de razoabilidade às conclusões práticas dessa silogística infernal levou o governo dos EUA a classificar como terroristas os grupos cristãos que, sem jamais ter matado um mosquito por isso, acreditam dever preparar-se para o fim do mundo acumulando alimentos e armas; ao mesmo tempo, o uso da palavra “terroristas” para qualificar os autores de atentados homicidas contra milhares de americanos é proibido oficialmente como ofensivo – quase tão ofensivo quanto dizer “Merry Christmas” em vez de “Happy Holidays” ou rezar o Pai Nosso em público, coisa que em várias cidades dos EUA pode dar cadeia exatamente como no Irã ou na Arábia Saudita. Mais ainda, tal como o estrangulamento repressivo da religião nacional, o favorecimento ao inimigo estrangeiro não fica só em palavras: os criminosos protegidos com desvelo paternal contra o termo que mais precisamente os qualifica são retirados das prisões militares para ser levados a julgamento em tribunais civis, com todos os direitos de cidadãos americanos. É a ideologia de The Kingdom of Heaven em ação: quando a obstinação diabólica de levar a mentira às suas últimas conseqüências se torna uma política de Estado, já não é mais possível distinguir entre a ordem pública e a alucinação psicótica.

Mas não é sem motivo que o cristianismo se tornou o bode expiatório da modernidade. No século XVIII, centenas de guias iluminados prometeram que, com a extinção da fé cristã, uma nova era de paz e tolerância se espalharia sobre a Terra. No tempo decorrido desde então, os movimentos políticos ateístas e os Estados laicos já mataram, em guerras e ditaduras, não menos de 250 milhões de pessoas – 1.250 vezes mais do que a famigerada Inquisição espanhola matara em quatro séculos –, e instituíram, mesmo nas chamadas democracias, sistemas de controle social mais opressivos do que o mais rígido inquisidor ou o mais ambicioso tirano da antigüidade poderiam ter desejado. O sonho utópico da modernidade revelou-se um pesadelo sangrento que em dois séculos ultrapassou, em horror e misérias, todos os males que o “fanatismo religioso” possa ter produzido ao longo de toda a história anterior. Como limpar a imagem da utopia e restaurar a credibilidade da promessa? Só atribuindo os crimes da modernidade a “resíduos” de épocas anteriores, como se meros resíduos pudessem ser mais letais do que a substância ativa. Que esse argumento implique fazer de Stalin um dos doze Apóstolos, de Mao Dzedong um novo São Luís e de Hitler um papa da Renascença é algo que não desencoraja no mais mínimo que seja o raciocinador iluminista: não há limites para o absurdo, quando se aposta nele a salvação da humanidade.

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