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O Emir Sader americano

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de maio de 2010

Fortemente recomendado à minha leitura por um dos homens mais inteligentes que conheço, e aliás também mencionado em How The World Really Works de Alan B. Jones como um dos dez livros fundamentais para a compreensão da nova ordem global (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/061211dc.html), A Century of War: Anglo American Oil Politics and the New World Order, de William Engdahl (Pluto Press, 2004), foi uma decepção desde as primeiras páginas.

Sua tese fundamental é que praticamente tudo o que acontece de mau no mundo é obra da elite financeira americana – os Rockefeller e tutti quanti–, empenhada em expandir ilimitadamente o poderio dos EUA por meio do controle geopolítico de uma fonte essencial de energia: o petróleo.

Um lance decisivo dessa guerra de conquista universal, diz o autor, foi a invasão do Iraque, “parte da agenda americana pós-guerra-fria, em busca da ‘dominação de pleno espectro’”.

Um ano após a invasão de Bagdá, prossegue Engdahl, “tornou-se claro que a guerra pouco tinha a ver com a ameaça das armas de destruição em massa… ou com o proclamado esforço de ‘levar a democracia’ ao até então despótico Iraque”.

“Tornou-se claro” para quem? Para quem tem o New York Times e a CNN como suas principais ou únicas fontes de informação, talvez. Para quem lê livros e sabe o que são documentos de fonte primária, não.

(1) A lista oficial das armas de destruição em massa encontradas no Iraque – suficientes, por si, para destruir muitas cidades americanas –, pode ser lida, junto com provas convincentes da existência das armas não encontradas, nas páginas 97-106 do livro Disinformation: 22 Media Myths that Undermine the War on Terror, de Richard Miniter (Regnery, 2005). “Praticamente – diz Miniter – nenhum dos críticos da guerra que estiveram envolvidos nos esforços para encontrar essas armas disse jamais não haver provas de que o Iraque as possuía.” Foi evidentemente a mídia popular que, para fins de propaganda anti-guerra, colocou essa afirmação em bocas onde ela nunca esteve. A diferença entre dizer que nem todas as armas foram encontradas e que nenhuma foi encontrada é pelo menos tão decisiva quanto a diferença entre dizer “alguém opinou” e “tornou-se claro”. Não é admissível que um estudioso profissional de assuntos militares ignore uma dessas diferenças ou, pior ainda, as duas.

(2) Mesmo os críticos mais ferozes do governo Bush admitem que a democracia prometida ao Iraque foi instalada e está funcionando perfeitamente há cinco anos. Se alguém diz que vai fazer alguma coisa e acaba por fazê-la de fato, só uma má-vontade psicótica pode insistir em proclamar que ele jamais teve a intenção de fazê-la. Pensem o que quiserem de George W. Bush, mas que ele levou a democracia ao Iraque, levou.

Só por esses parágrafos, já se vê que Engdahl, para dizer o mínimo, não é sério. Mas ele complica formidavelmente sua situação quando atribui à elite dominante dos EUA a autoria de catástrofes inumeráveis, como “a ocupação dos campos petrolíferos do Iraque, a guerra em Kosovo e nos Bálcãs, infindáveis guerras civis na África, crises financeiras ao longo da Ásia, o dramático colapso da União Soviética e a subseqüente emergência de uma oligarquia russa”, e, linhas adiante, com a maior inocência, reconhece que “um ano após a ocupação americana de Bagdá, os objetivos da única superpotência mundial estavam sendo questionados como nunca tinham sido desde a guerra do Vietnã. Cenas degradantes de iraquianos torturados lotavam as páginas da mídia mundial. Alegações de corrupção e conspiração, subindo até os mais altos níveis da administração em Washington, tornavam-se lugares-comuns”.

Do confronto dessas duas séries de afirmações temos de concluir que uma oligarquia poderosa o bastante para determinar o curso dos acontecimentos em todo o orbe terrestre não teve, coitadinha, os meios de obter para as suas políticas o apoio dos jornais e canais de TV dos quais ela própria, aliás, possui o controle acionário. Ou acreditamos nessa hipótese imbecil, ou admitimos que Engdahl não é muito honesto na sua tentativa de impingir ao leitor a crenca de que a oligarquia globalista trabalha para a expansão do poderio internacional dos EUA e não de um governo global visceralmente anti-americano. Oligarquia financeira e oligarquia midiática são obviamente a mesma coisa: se os jornais em peso se voltam contra a política militar do governo, é claro que ela perdeu, ou jamais teve, o apoio daquela oligarquia. Mas a ira da grande mídia não se voltou só contra as iniciativas guerreiras do governo Bush: invariavelmente, ela ataca tudo o que seja ou pareça favorável ao crescimento do poder americano ou ao fortalecimento da identidade nacional dos EUA (veja-se o horror ilimitado com que reagiu à nova lei do Arizona contra a imigração ilegal). Que Engdahl inverte as intenções da oligarquia é algo que nem preciso argumentar – David Rockefeller já o fez por mim na página 405 das suas Memórias: “Alguns acreditam que somos parte de uma cabala secreta que trabalha contra os melhores interesses americanos, caracterizando a mim e à minha família como ‘internacionalistas’ e acusando-nos de conspirar para construir uma política global mais integrada… Se essa é a acusação, declaro-me culpado – e orgulhoso de sê-lo.”

A dúvida, se alguma existe, fica totalmente esclarecida quando Engdahl diz a que veio: o que ele propõe é deter ou pelo menos desacelerar o crescimento de “um poder que já não é sustentável nem saudável para os EUA nem para o resto do mundo”. É o mesmo programa da Rússia, da China e dos potentados árabes, bem como… dos Rockefellers e similares. Foi para realizá-lo, como aliás está sendo realizado, que a oligarquia americana apoiou e continua apoiando Barack Obama quando ele propõe o desarmamento unilateral dos EUA, a dissolução da identidade americana numa pasta “multicultural” ou a completa inação ante a corrida armamentista iraniana, a espionagem chinesa onipresente e a ocupação da América Latina pelas forças do comunochavismo. Se isso é “expansão do poderio dos EUA”, também deve sê-lo a sistemática demolição do parque industrial americano, em que aquela elite se empenha há décadas com uma volúpia destruidora de fazer inveja ao vírus da Aids.

Não espanta que, com perspectiva que tem ou finge ter das coisas, Engdahl faça tanto sucesso na televisão russa, onde volta e meia reaparece com ares de grande expert em geopolítica mundial. Para mim, ele é uma espécie de Emir Sader americano: o homem que descreve “o mundo às avessas”.

Publicado no Diário do Comércio com o título de “O mundo às avessas”

A direita que a mídia criou

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de abril de 2010

Na mesma semana em que a Folha de S. Paulo se arrogava o direito de passar pito no Diário do Comércio, posando de fiscal da idoneidade jornalística alheia, uma senhora aparecia na MTV criticando a Igreja Católica, com base na autoridade intelectual que emanava da sua condição de prostituta aposentada: o celibato clerical, ensinava a criatura, é uma indecência, pois nasceu do desejo vil de preservar o patrimônio da Igreja. Esses dois episódios – que em espírito são um só – ilustram como é difícil, nos dias que correm, distinguir entre realidade e paródia. O segundo deles dá a entender que os mártires e santos se deixaram devorar por leões e canibais por mero interesse financeiro, ao passo que as prostitutas se entregam à lubricidade da clientela por puro amor ao próximo. É uma teoria, não é? Mas o primeiro sugere algumas considerações mais amplas, cuja ligação com o episódio em si talvez não apareça à primeira vista, embora tenham tudo a ver com ele.

O jornalismo é o irmão menor da ciência histórica; seus métodos são em essência os mesmos dela, apenas aplicados às pressas e com menos rigor. A pesquisa dos documentos, a crítica das fontes, a confrontação de testemunhos, a conjeturação de nexos, a reconstituição narrativa ou interpretativa da ordem dos fatos, tudo faz do jornalista, quando o é de verdade, uma espécie de historiador-mirim.

O simples fato de que o currículo das faculdades de jornalismo não inclua sequer uma versão abreviada das disciplinas históricas fundamentais já basta para mostrar que aquelas instituições de ensino não servem para absolutamente nada além de dar a uma elite de pseudo-intelectuais ativistas o controle do mercado de trabalho nas redações.

Quando digo isso, sempre aparece algum espertinho alegando que a obrigatoriedade do diploma universitário no jornalismo foi instituída pelo governo militar, nada tendo portanto a ver com estratégia esquerdista de dominação. Como se o governo não tivesse se esmerado em atender às pressas todas as exigências da esquerda que pudessem, a seu ver – tremendo engano! –, ser neutralizadas ideologicamente, acabando por dar de bandeja aos esquerdistas alguns preciosos instrumentos de agitação e propaganda. Ainda lembro, como se fosse hoje, a voracidade com que a militância esquerdista se apossou das cátedras de Educação Moral e Cívica, instituídas pelo governo na esperança louca de disseminar o patriotismo e as virtudes. Com as faculdades de jornalismo aconteceu a mesma coisa: tudo o que é feito na ilusão da neutralidade ideológica torna-se canal para a difusão da ideologia que mais francamente se assuma como tal. Nada mais patético do que um governo autoritário ideologicamente tímido, de uma timidez que acabou por se incrustar na medula mental da nossa burguesia como um tumor incapacitante, reduzindo à condição de apêndice da esquerda o que possa ter restado de uma “direita” que nem quando estava no poder ousava dizer seu nome.

Nesse processo, aliás, o jornalismo gerado nas faculdades teve um desempenho admirável. Admirável de safadeza. Na mesma medida em que a “direita” não se assume como tal, é a mídia maciçamente esquerdista que se encarrega de chamá-la assim, com insistência obsessiva, de modo que o direitismo só subsiste no imaginário público como rótulo infamante associado precisamente às pessoas que mais o rejeitam, ao passo que os esquerdistas raramente aparecem com rótulo, sendo sempre designados na mídia por suas profissões ou cargos sem identidade ideológica explícita (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/091007dc.html). A imagem do país na mídia torna-se assim uma inversão simétrica da realidade: a ideologia que tudo controla desfruta de uma confortável invisibilidade protetora, ao passo que sua inexistente adversária é exibida ante os olhos de todos como a encarnação mesma do ideologismo militante.

É precisamente esse processo que se denomina, com um termo que hoje tem nos estudos de comunicação jornalística uma acepção técnica precisa, “a espiral do silêncio” (v. Elisabeth Noelle-Newmann, The Spiral of Silence, The University of Chicago Press, 1993): uma das facções é levada sutilmente a abdicar da própria voz, deixando à inimiga o privilégio de nomeá-la, defini-la e descrevê-la como bem entenda. Auto-hipnotizada pelo mito da neutralidade ideológica, a direita brasileira entregou-se a essa operação com a passividade de um cadáver na mesa do médico-legista. Com uma diferença: nenhum cadáver é idiota o bastante para achar que faz isso por esperteza.

Para além de Hobbes

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de abril de 2010

Ante a condenação judicial do homeschooling, devo lembrar ao demeritíssimo que mesmo no Leviatã, a tirania absoluta inventada por Thomas Hobbes, os súditos conservavam “o direito de comprar, vender ou relacionar-se de outra forma; de escolher seu próprio domicílio, sua própria dieta, sua profissão, e de educar seus filhos conforme bem lhes pareça”.

O signatário daquela obscenidade não se conforma com tão liberais concessões à autonomia dos súditos: para ele, o Estado tem o direito de impor a todas as crianças a forma e o conteúdo da educação, passando por cima da autoridade dos pais mesmo quando estes tenham comprovado, como Cleber e Bernadeth Nunes comprovaram, sua capacidade de educá-las melhor do que o Estado jamais poderia fazê-lo.

Alegando “abandono intelectual”, o Estado exigiu, para prová-lo, que os filhos do casal, David e Jonatas, se submetessem a provas escolares — até aí, tudo bem –, mas manejou as provas de modo a torná-las bem mas difíceis do que aquelas a que são submetidos, nas escolas oficiais, os alunos da mesma idade dos dois meninos. Não eram provas, eram uma armadilha. Só com essa manobra, a autoridade já provou sua condição de litigante de má-fé e deveria ter recebido a punição judicial correspondente. Em vez disso, David e Jonatas submeteram-se humildemente ao jogo sujo. Não só passaram, mas revelaram possuir, com 13 e 14 anos, os conhecimentos requeridos para ser aprovados em qualquer vestibular de Faculdade de Direito do país. Provado, portanto, que não havia abandono intelectual nenhum, qual o passo seguinte da autoridade? Desprovida de seu argumento inicial, apelou ao Plano B e condenou o casal Nunes de qualquer modo. Qual foi esse plano? Alegar que, sem escola, os meninos, mesmo intelectualmente preparados, são deficientes em “socialização”. Mas, se o problema deles era socialização, para que testar-lhes a capacidade intelectual em primeiro lugar? E qual a prova de que lhes falta socialização? O juiz não forneceu nenhuma: sua palavra basta. O que ele forneceu, sim, foi a prova de que Cleber e Elizabeth Nunes já estavam condenados de antemão, per fas et per nefas, para a glória do Estado onipotente e exemplo de quantos pais sonhem em retirar seus filhos do bordel pedagógico oficial para dar-lhes uma educação que preste.

O processo montado contra o casal Nunes foi fraudulento na inspiração, no encaminhamento e nas conclusões. Nem a justiça, nem a racionalidade, nem o interesse sincero na educação dos dois meninos passaram jamais pelas cabeças dos autores dessa farsa abjeta. Tudo o que elas quiseram foi impor a onipotência pedagógica do governo como um fato consumado, uma cláusula pétrea, um dogma indiscutível.

E por que o fizeram? Porque o governo necessita desesperadamente apossar-se das mentes das crianças, para usá-las como instrumentos na criação da sociedade futura, moldada nos cânones ditados pela ONU, pela Fundação Rockefeller, pela Fundação Ford, pela Fundação MacArthur e outras tantas organizações bilionárias firmemente decididas a implantar no mundo uma nova ordem socialista — um socialismo diferente, onde o controle estatal da economia, falhada a experiência soviética da intervenção direta, se fará pela via indireta e sutil do controle da conduta, da modelagem das consciências, da engenharia social onipresente e onipotente.

Nem os tiranos da antigüidade, nem os monarcas absolutos da Idade Clássica, nem Thomas Hobbes, nem Maximilien Robespierre, nem talvez o próprio Karl Marx imaginaram jamais estender o poder do Estado aos meandros mais íntimos da alma infantil, para fazer dela a escrava dos planos de governantes insanos.

Mas, para o nosso governo, isso é indispensável. Que será da revolução continental se as nossas crianças não forem amestradas, desde a mais tenra idade, nas belezas sublimes das invasões de terras, no ódio aos velhos sentimentos religiosos, no culto dos estereótipos politicamente corretos e na prática devota da sodomia?

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