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Presenças honrosas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de outubro de 2010

Entre os quase sessenta mil signatários do “Manifesto em Defesa da Democracia”, há decerto um bom contingente de cidadãos – nos quais me incluo – que jamais se deixaram enganar pelo “novo paradigma” imposto à política brasileira desde a ascensão das esquerdas ao primeiro plano do espetáculo nacional. Mas há também uma parcela de celebridades da mídia, do show business, da política e do mundo empresarial, das quais não se pode dizer o mesmo. O próprio site do Manifesto incumbe-se de distinguir os dois grupos, reunindo o segundo nos links “Assinaturas em destaque” e “Artigos em destaque” (v. http://www.defesadademocracia.com.br/categorias/artigos/page/2/).

Significativamente, a quase totalidade dos nomes aí “destacados” são de pessoas que integram uma das seguintes categorias:

(1) Contribuíram ativa e entusiasticamente para a criação do monstro petista e até hoje não lhe fazem restrições – quando as fazem – senão limitadas e pontuais.

(2) Sem ser petistas ou simpatizantes, julgaram a ascensão do PT um fenômeno positivo para a democracia e a defenderam galhardamente contra quem quer que, com base na leitura dos próprios documentos internos do partido, advertisse que se tratava de uma organização revolucionária de alta periculosidade.

(3) Fizeram tudo o que podiam para bloquear ou inibir a divulgação da existência e das atividades do Foro de São Paulo, entidade com que o PT salvou e restaurou o movimento comunista latino-americano, ameaçado de extinção no começo da década de 90.

(4) Repetidamente denunciaram toda veleidade de anticomunismo como uma ameaça temível e um abuso inaceitável, ajudando a criar assim a atmosfera de hegemonia esquerdista na qual o triunfo do PT, como personificação mais pura do esquerdismo nacional, se tornava claramente inevitável (v. meu artigo de setembro de 2004, “Assunto encerrado”, http://www.olavodecarvalho.org/semana/040212jt.htm).

Atribuindo a esses indivíduos um lugar de revevo, o site do Manifesto dá a entender que a presença de suas assinaturas infunde no documento um valor a mais, revestindo-o de uma autoridade moral que a mera quantidade de signatários não poderia lhe conferir.

O critério de julgamento aí subentendido é, por si, toda uma lição de sociologia quanto à mentalidade daquilo que o sr. Presidente chama de “azé-lite”. Basta assimilar essa lição para compreender por que o país chegou ao ponto em que se tornou necessário arrebanhar às pressas sessenta mil pessoas para defender uma democracia que, ainda meses atrás, tantas delas proclamavam firmada e consolidada – vejam vocês – pelo fato mesmo da ascensão petista.

O que os destaques do site evidenciam, desde logo, é que, no sentimento geral da “azé-lite”, o mérito supremo, em política, não consiste em perceber os perigos em tempo de preveni-los, mas em recusar-se obstinadamente a enxergá-los, ou a deixar que alguém mais os enxergue, até quando já nada mais reste a fazer contra eles senão assinar um manifesto – o último recurso dos derrotados.

Com toda a evidência, as opiniões, nesse meio, não valem pelo seu coeficiente de veracidade, de oportunidade estratégica ou de eficácia preditiva, mas, justamente ao contrário, só são admitidas como dignas de alguma atenção – ainda assim parcial e seletiva – quando obtêm finalmente o nihil obstat dos últimos a saber. Um sindicato de maridos traídos não seria talvez tão lerdo e recalcitrante em tomar ciência das más notícias.

Mas a lentidão paquidérmica em admitir os fatos não é causa sui. Ela vem do apego supersticioso da “azé-lite” à lenda de que o movimento comunista não existe e de que toda tentativa de denunciá-lo só pode ser coisa de extremistas de direita, saudosistas da Guerra Fria, loucos de pedra e teóricos da conspiração. Essa lenda foi criada para infundir naquelas pessoas a ilusão de que o fim do regime militar traria magicamente ao Brasil uma democracia estável, de tipo europeu – ilusão necessária, precisamente, para que a gradual mas inevitável ascensão de comunistas e pró-comunistas ao poder absoluto aparecesse a seus olhos como o fruto espontâneo da “evolução democrática” e não como o resultado de um planejamento maquiavélico de longo prazo, que os documentos do PT e do Foro de São Paulo atestam para além de toda dúvida razoável.

A expressão “azé-lite” é tardia. Muito antes dela, em 1996, no meu livro O Imbecil Coletivo, eu já havia dado a essa faixa social o nome de “pessoas maravilhosas”, observando que para tornar-se uma delas você deveria antes de tudo acreditar que, embora o comunismo não exista, ser comunista é chique e ser anticomunista é brega.

Agora, na página do Manifesto, até uma pessoa indiscutivelmente maravilhosa como o sr. Luiz Eduardo Soares, que viu na publicação daquele meu livro um sinal alarmante de ressurgimento da abominável direita, sai gritando, tarde demais, contra os “bolcheviques e gambás” (sic) que se apossaram do país.

Pessoa maravilhosa é também o sr. Luís Garcia, que ainda em 2008 (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/090113dc.html) se orgulhava de tudo ter feito para lotar de esquerdistas as páginas de opinião de O Globo e muito se arrependia de haver ali encaixado, mesmo a título de balanceamento fingido, um único direitista que fosse. Num gesto inusitado para um chefe de redação, o sr. Garcia chegou até a puxar, nas páginas do mesmo jornal, uma discussão com esse direitista – que não era outro senão eu –, para alegar que o referido, ao alertar contra o poder crescente do esquerdismo continental, estava era enxergando crocodilos embaixo da cama.

Ainda ontem, crocodilos, gambás e bolcheviques só existiam na minha imaginação perversa. De repente, surgindo do nada, tomaram posse do circo inteiro e assombram as noites das pessoas maravilhosas que riam de quem os enxergava.

Já nem falo dos srs. Hélio Bicudo, Ferreira Gullar, Eliane Cantanhede e tantos outros, que, ajudando a instaurar o mito do monopólio esquerdista do bem e da verdade, criaram as condições indispensáveis para transformar a política brasileira numa disputa de família entre organizações de esquerda, ignorando ou fingindo ignorar que a hegemonia ideológica traz inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, o império do partido único, contra o qual hoje esperneiam com ares de inocência surpreendida.

Todos esses, sem exceção, apostaram suas vidas na mentira mais estúpida e letal que alguém já inventou contra a democracia: a mentira de que é possível um regime democrático normal e saudável sem partidos de direita, ou só com uma direita amoldada servilmente aos propósitos da esquerda. Ao assinar o Manifesto, não têm sequer a honestidade de reconhecer que o assinam contra si mesmos. Num país onde o fingimento é a mais excelsa das qualidades morais, isso é razão suficiente para considerar seu apoio àquele documento uma honra digna de menção especial.

Preparem-se

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de setembro de 2010

A diferença entre eleitorado e militância é a que existe entre um gás e um sólido. O primeiro pode concentrar-se num ponto por alguns momentos, mas acabará se dispersando no ar espontaneamente. O segundo só pode ser movido do lugar mediante algum esforço, proporcional à sua massa e peso.

As próximas eleições vão opor, à solidez maciça e ao peso formidável da maior militância organizada que já houve no país, a substância gasosa de um eleitorado espremido às pressas, anarquicamente, num recipiente que vaza por todos os lados.

A militância, adestrada para praticar com boa consciência todos os crimes necessários à eternização da sua liderança no poder, já deixou claro que considera qualquer tentativa de divulgar esses crimes um atentado contra a democracia e – nestes termos — “contra a liberdade de imprensa”. Não se espantem com a enormidade desta última alegação. Ela só mostra que a inversão revolucionária de sujeito e objeto já se automatizou na mente das massas militantes ao ponto de tornar-se uma segunda natureza. Nenhuma dose de fatos e argumentos pode nada contra isso. Nada pode contra isso o julgamento passageiro e difuso de milhões de eleitores. Militância não é uma tendência de opinião: é uma força física.

O problema, portanto, não é saber quem vai ganhar as eleições: é saber se essa força pode ser controlada pela mera pressão de um gás. Terminado o pleito, das duas uma: ou a militância sairá mais forte, ou mais revoltada. Sua periculosidade é a mesma nos dois casos.

Digo isso por um motivo muito simples. Um partido político existe para concorrer a cargos eletivos, ocupá-los durante um tempo e ceder o lugar aos partidos adversários quando derrotado nas eleições. Cabem nessa definição o PSDB, o DEM, o PMDB e algumas outras agremiações. Mas a militância petista e pró-petista nasceu e se constituiu com objetivos infinitamente mais amplos que os de qualquer desses partidos. Ela atua em todos os fronts da vida social e cultural, visando à mutação completa e irreversível da sociedade — o que implica o controle definitivo, e não temporário, monopolístico, e não compartilhado, dos meios de ação política. Ela não ocupa espaços pelo período de uma gestão, como um candidato eleito: ocupa-os de uma vez para sempre, tomando como ameaça “golpista” qualquer veleidade de removê-la do território conquistado.

Se vencer, o esquema petista vai com toda a certeza proceder ao “salto qualitativo” que está preparando há mais de duas décadas, para substituir, ao governo de transição (que assim se autodefine o governo Lula nas discussões internas do partido), o começo da “construção do socialismo”.

E se perder? Um partido político derrotado prepara-se para a revanche nas próximas eleições: a militância revolucionária, na mesma hipótese, simplesmente se mobiliza para defender as posições ocupadas, para assegurar que o resultado das eleições não venha a abalar em nada o poder de que desfruta, no governo e fora dele. Ora, uma das expressões mais claras desse poder é o domínio que a militância exerce sobre o funcionalismo público federal. O governo pode mudar de mãos, mas o Estado vai continuar petista. Um presidente antipetista terá de escolher: ou vai governar cercado de inimigos, que farão tudo o que puderem para boicotar suas ordens, ou vai tentar demolir a máquina militante que se apossou do Estado. Na primeira hipótese, será assombrado noite e dia pelo espectro da paralisia e do fracasso. Na segunda, vai enfrentar greves, invasões incessantes de prédios públicos, arruaças de toda sorte e eventualmente a possibilidade de uma insurreição armada. Graças ao Foro de São Paulo, esta última hipótese é hoje muito mais viável do que na década de 60, não só no Brasil como na América Latina inteira. As quadrilhas guerrilheiras da época, frouxamente articuladas pela OLAS, Organização de Solidariedade Latino-Americana, eram apenas bandos de crianças, se comparadas ao poderio monstruoso da maior organização político-criminal já montada no continente (sob a proteção da mesma mídia que a ingrata agora acusa de golpista). O que me pergunto é se políticos que morrem de pavor ante a simples hipótese de ser suspeitos de “direitismo” estão preparados para enfrentar qualquer coisa de mais perigoso que uma disputa eleitoral ordeira e pacífica. Se não estão, preparem-se. Vencendo ou perdendo as eleições, preparem-se.

Publicado com o título “O eleitorado e a militância”.

Quem manda nesta coisa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 27 de setembro de 2010

As denúncias que hoje circulam contra o PT, e que tanto enfurecem o sr. Presidente da República, não se comparam, em número e virulência, àquelas que o próprio PT espalhou na mídia e alardeou no Parlamento ao longo de vinte anos, destruindo ou subjugando todas as lideranças políticas que pudessem se opor aos seus intentos. Se hoje um Collor, um Sarney, um Maluf e inumeráveis líderes empresariais beijam a mão do presidente da República (como até o valentão Antônio Carlos Magalhães chegou a beijá-la pouco antes de morrer), é porque o partido dele lhes mostrou quem é o chefe, quem é que manda nesta coisa. E o mostrou a gritos e cusparadas, à força de acusações escabrosas, ameaças terrificantes e escândalos fabricados, tão numerosos e persistentes que os anos 90 ficariam marcados para sempre como a década da bandalheira se depois deles não viessem o Mensalão, os dólares na cuéca, os assassinatos dos prefeitos de Campinas e Santo André, etc. etc., reduzindo toda a corrupção anterior à escala de um roubo de chicletes numa cantina de escola.

Ao queixar-se da mídia, o sr. Presidente se esquece de que foi ela a sua principal aliada não só na destruição maciça de reputações perigosas, mas na construção, simultânea e complementar, da imagem do PT como paladino da justiça, sem o que jamais esse partido poderia ter chegado ao poder em 2002 nas asas da “Campanha pela Ética na Política”, uma apoteose de denuncismo e moralismo hipócrita como raramente se viu no mundo.

Sem a transformação da mídia inteira em instrumento da indústria petista do escândalo, o sr. Presidente não teria chegado a ser o sr. Presidente: teria continuado a ser o derrotado que sempre fôra até o momento em que seu partido, superando a velha repugnância da esquerda pela tradição udenista de combate à corrupção, descobriu o poder criador da difamação e da calúnia.

Longe de tratar o sr. Presidente a chicotadas, como ele se queixa de ter sofrido, a mídia, que o criou, sempre procurou poupá-lo e afagá-lo. Vocês já se esqueceram do petismo desbragado da Globo, a mais poderosa rede de TV do país, onde até uns poucos anos atrás não se podia falar do “presidente operário” sem voz embargada e lágrimas mal contidas de comoção cívica?

Naquela época, o sr. Lula não falava de “mídia golpista” nem se queixava de que “oito famílias” monopolizavam a imprensa deste país. Ele deixava isso para os “radicais”, para os jovens enragés que rosnavam no fundo do porão da esquerda, enquanto ele, apadrinhado e beneficiário número um do monopólio, brilhava no palco com sua nova identidade tranqüilizante de “Lulinha Paz e Amor”, pronto a imitar mais tarde o discurso dos enfezados, quando o fim do seu segundo mandato lhe trouxesse a certeza de não precisar mais da ajuda de seus protetores de ontem.

Em setembro de 2004 escrevi: “No tempo de Collor, a conversa vagamente suspeita entreouvida por um motorista indiscreto desencadeou a mais vasta investigação que já se fez contra um presidente. Hoje em dia, seis testemunhas mortas no caso Celso Daniel não abalam em nada a reputação de governantes ungidos pelo dom da inatacabilidade intrínseca.”

Referindo-me às CPIs de 1993, quando os srs. Dirceu e Mercadante berravam acusações do alto das tribunas como se fossem reencarnações de Marat e Robespierre, prosseguia: “É impossível não perceber, hoje, que tudo isso foi apenas um pretexto para aplanar a estrada para o PT, colocá-lo no poder e nunca mais fazer perguntas, aceitando dos novos patrões, com docilidade incuriosa e muda, condutas muito mais suspeitas e extravagantes que as de todos os seus antecessores.”

Assim foi em todos os escândalos do governo Lula. Por mais que se revelassem os crimes dos aliados e colaboradores mais próximos do sr. Presidente, o cuidado obsessivo da mídia era um só: preservar a pessoa dele, aceitar como cláusula pétrea do jornalismo nacional a hipótese louca de que ele nunca, nunca sabia de nada.

É esse o homem que hoje, diante de acusações mais que justas – e dirigidas nem mesmo a ele, mas à sua candidata –, choraminga, num show abjeto de autopiedade histérica, que levou mais chibatadas que Jesus Cristo e, ao mesmo tempo que clama pelo controle estatal da mídia, diz que o exercício do mero direito de cobrar explicações do seu seu partido é “uma ameaça à liberdade de imprensa”.

Vejam a enxurrada de livros investigativos que espalharam acusações temíveis contra Fernando Collor, contra os militares, contra o Congresso, contra as empreiteiras, e comparem-na ao destino do livro que ousou provar a responsabilidade do sr. Presidente no caso do Mensalão: “O Chefe”, de Ivo Patarra, não encontrou um só editor com coragem para publicá-lo. Circula pela internet, como um sussurro proibido.

Liberto de adversários substantivos e elevado ao posto supremo da nação pelos bons serviços da mídia, esse homem se acostumou de tal modo à subserviência da classe jornalística que já não suporta da parte dela a menor desobediência, o menor deslize. E de nada adianta apelar à “opinião pública”. Ele, e só ele, é a opinião pública.

Mas, afinal, quem criou as condições para isso foi a própria mídia. Invertendo o senso moral normal, que desprezava os medalhões de cabeça oca e louvava os pobres estudiosos, ela convenceu o país inteiro de que a coisa mais linda, mais louvável, mais meritória, é subir na vida permanecendo analfabeto. Se você cria um monstrengo desses, não tem muito direito de reclamar quando ele, inflado dos aplausos imerecidos com que você mesmo o alimentou, manda você calar a boca e proclama que quem manda é ele.

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