Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 28 de junho de 2016
Nada pode estar tão distante de alguma outra coisa como o intercâmbio intelectual genuíno está do debate político-partidário e ideológico tal como se trava na nossa mídia e nas nossas instituições universitárias.
Não é exagero dizer que, fora de uns círculos privados muito pequenos, quase microscópicos, o intercâmbio intelectual desapareceu deste país. Desapareceu a tal ponto que o debate político tomou o seu lugar e acredita piamente ser ele.
Grosso modo, a diferença consiste no seguinte: o intercâmbio intelectual pressupõe a efetiva interpenetração das consciências, a participação comum dos interlocutores num mesmo conjunto de experiências cognitivas.
O debate político (no sentido acima) compõe-se apenas da adesão ou repulsa superficiais a “teses” ou “opiniões” estereotipadas, no mais das vezes apenas inventadas e projetivas, às quais pareça bonito, no momento, lançar flores ou pedradas.
No intercâmbio intelectual, a compreensão e o enriquecimento mútuos são muito mais importantes do que a concordância ou discordância, que em geral acabam sendo quase sempre parciais e condicionais.
No debate político, concordar ou discordar é tudo, com o agravante de que a adesão ou repulsa não é nunca puramente intelectual, mas se multiplica pela exaltação ou condenação morais, que, dirigidas aos alvos convenientes, valem também, por extensão ou por inversão, como descarada “captatio benevolentiae” para fazer do opinador um modelo de virtudes, a personificação suprema da democracia, do patriotismo, do progresso, do socialismo, dos sentimentos cristãos ou de qualquer outro valor que se imagine compartilhado pela audiência.
Não é preciso dizer que, no debate político brasileiro, o compartilhamento de experiências cognitivas é não apenas desnecessário, mas inconveniente.
Compreender as idéias, as intenções profundas ou, mais ainda, a alma do interlocutor pode paralisar o impulso de deformar, caricaturar e falsificar, que, em tão nobre atividade humana, é a essência e a meta do que se pretende.
Numa sociedade normal, há os dois tipos de debates, mas permanecem em terrenos distintos, e a presença vizinha do intercâmbio intelectual, que é de conhecimento público tanto quanto o debate político, funciona como um freio aos arrebatamentos erísticos e demagógicos deste último.
Desaparecendo o intercâmbio intelectual, o debate político, sem parâmetros regulatórios exceto o Código Penal, os interesses empresariais e partidários em jogo e os padrões de gosto de uma platéia volúvel e ignorante, se encontra livre para impor-se como modelo de todas as discussões possíveis e até recobrir-se da aura de “atividade intelectual” aos olhos de quem nunca teve – nem viu — atividade intelectual nenhuma.
Não deixa de ser sintomático que, nessa atmosfera, as regras de polidez mais vulgares, grosseiras e pueris – mesmo elas constantemente violadas pelos seus propugnadores – se transfigurem no símbolo convencional, no sucedâneo mais aceitável de elevação intelectual e moral.
Foi assim que tipos como os srs. Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino, Marco Antonio Villa, Caio Blinder e outros tantos vieram a parecer intelectuais, quando até mesmo no exercício do mero jornalismo são tão claramente deficientes, sem comparação possível com os seus antecessores de três ou quatro décadas atrás.
Para quem cresceu lendo os artigos de Julio de Mesquita Filho, Nicolas Boer, Gustavo Corção, Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Arnaldo Pedroso d’Horta e muitos outros do mesmo calibre –todos eles intelectuais de pleno direito exercendo “ad hoc” as funções de jornalistas –, ler o que se publica hoje sob o nome de “comentário político” é ver diariamente a devastação cultural brasileira encarnada com plena fidelidade aos traços simiescos que a definem.