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Ilustração instantânea

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de fevereiro de 2013

          

       No meu artigo anterior, referindo-me à guarda pretoriana do corporativismo acadêmico, escrevi: “Não é que apenas me julguem sem ter lido meus livros. É que se recusam  terminantemente a lê-los e consideram mesmo ofensiva a sugestão de que deveriam fazê-lo antes de me julgar.” Mal havia eu acabado de enviar o artigo à editora desta página, e um professor de filosofia da PUC do Rio Grande do Sul, por antecipação telepática, já se prontificou a ilustrar a minha afirmativa.
Ricardo Timm de Souza, autor de uns poeminhas horríveis e de  alguns trabalhos acadêmicos não muito ruins embora entremeados de erros de gramática, escreveu que eu era um “marionete do dinheiro, financiado para evitar que as pessoas pensem”.
Como eu lhe perguntasse educadamente quais livros meus ele havia lido para chegar a tão devastadora conclusão, ele esperou 24 horas e respondeu que havia lido o meu prefácio à “Origem da Linguagem” de Eugen Rosenstock-Huessy, e, consultando o prefaciador da edição alemã, este lhe apontara um cochilo biográfico que eu cometera. Embora o erro não se referisse sequer ao autor prefaciado, mas a outro citado de passagem (Franz Rosenzweig), e embora a comunidade inteira dos discípulos e estudiosos de Rosenstock não visse em tão irrisório detalhe o menor motivo para deixar de louvar o meu trabalho e de me convidar para falar na conferência internacional “Planetary Articulation:
The Life, Thought, and Influence of Eugen Rosenstock-Huessy” (http://www.olavodecarvalho.org/english/texts/confer_rosenst_en.htm), a superior escrupulosidade acadêmica do prof. Timm levou-o a extrair desse episódio a generalização acima citada, da qual saio com a fama de picareta subsidiado e cretinizador de jovens incautos. Milhares de depoimentos de meus alunos, dando ciência dos progressos intelectuais que alcançaram nas minhas aulas, bem como o desempenho brilhante de vários deles em atividades editoriais e jornalísticas, de nada valem: o primeiro ranheta acadêmico que aparece chama-os de “olavettes”, e fica assim provado que são bocós teleguiados, reduzidos à mais extrema imbecilidade pela minha influência deletéria.
Como no intervalo entre a minha postagem e a do Prof. Timm alguns alunos dele me cobrissem de insultos e recebessem o troco em doses generosas, o referido aproveitou-se disso para esquivar-se definitivamente da obrigação de ler antes de julgar. Com ares de anjo ofendido, retirou-se da conversação, declarando que eu estava cheio de “ódio” e necessitado de tratamento psicanalítico. Nos posts dos seus alunos, vazios de qualquer conteúdo exceto rotulagens pejorativas e insultos criminosos à minha fé cristã, não havia, é claro, ódio nenhum. Transbordavam de amor e bondade.
Eu não contaria essa história se ela não fosse, como tantas outras, uma amostra significativa do tipo de moralidade intelectual que impera nas universidades brasileiras hoje em dia.
Mais significativo ainda é que um homenzinho auto-investido do direito sacrossanto de insultar sem revide e de proferir julgamentos temerários com uma base factual zero seja também autor de trabalhos sobre a filosofia de Emmanuel Levinas, nos quais ele proclama, fazendo eco ao grande pensador judeu, que “a justiça é a base da verdade”.
Não adianta, portanto, papai e mamãe enviarem o menino para estudar na Alemanha, se não lhe deram educação doméstica suficiente para fazê-lo entender que é feio gargarejar entre pompas acadêmicas as mais belas verdades filosóficas e exemplificar, na vida real, a mais extrema insensibilidade a elas.
Litros e litros de verniz de cultura, mesmo obtidos de boa fonte, não bastam para encobrir a barbárie terceiromundista arraigada no fundo de uma alma vulgar e mesquinha, igual a tantas outras espalhadas pelas cátedras universitárias neste país.
Um dia os estudantes brasileiros vão perceber quem são os verdadeiros “financiados para impedi-los de pensar”. Se querem localizá-los desde já, basta procurá-los entre os entusiastas do lulodilmismo. Afinal, ninguém jamais perdeu dinheiro por falar bem do governo.***Pelos meus cálculos, publiquei uns mil artigos na mídia nacional. Será que, no país que no mundo tem mais professores universitários “per capita”, não existem mil deles capazes de ler um artigo meu cada um — unzinho só –, rebatê-lo com argumentos fulminantes, depois somar todo esse material e assim, mediante um esforço coletivo como a tomada do Palácio de Inverno ou o esfaqueamento de Júlio César, provar ao mundo que sou uma besta quadrada? Não, não existem. Na verdade, toda essa gente reunida não seria capaz de argumentar razoavelmente contra um só artigo meu. A solução que encontram é sair batendo pezinho, fazer-se de superiores, alegar que estão muito ocupados. Não ocupados o bastante, é claro, para impedir-se de fazer a minha caveira pelas costas, nas suas salas de aula, longe da possibilidade de um revide. Isso é a vida universitária no Brasil: pura pose, afetação, teatro, frescura subsidiada com dinheiro público.

Filósofos no exílio

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de setembro de 2011

O exílio voluntário ou forçado – mais freqüentemente voluntário – parece ser um destino mais comum entre os filósofos do que entre qualquer outro grupo de intelectuais criadores. Sócrates só não foi embora de Atenas porque achou que estava velho demais para aceitar essa oferta do tribunal que o condenou. Preferiu a morte. Platão retirou-se para uma cidade vizinha, na esperança de que suas idéias pudessem inspirar o governo local, e só voltou para Atenas porque o plano fracassou. Aristóteles passou praticamente toda a sua vida ativa longe da terra natal. Descartes não escreveu um único livro na França; tudo na Holanda, onde morou por vinte anos. Spinoza não saiu do país, mas correu para longe de Amsterdam, onde os rabinos o haviam condenado por heresia. John Locke escreveu sua obra principal em Paris, e David Hume foi redigir seu Tratado nas vizinhanças do colégio de La Flèche, o mesmo do qual Descartes procurara guardar distancia. Emil Cioran, espremido numa mansarda em Paris, implorava aos visitantes que não falassem romeno com ele, pois isso atrapalhava o esforço insano que ele desenvolvia para se tornar o maior prosador francês do século (conseguiu). E nem menciono a infinidade de filósofos que fugiram da perseguição comunista e nazista, indo se instalar em Paris, em Londres, na Flórida ou na Califórnia. A lista ultrapassaria de muito as dimensões deste artigo. Muitos deles, passado o perigo, não conseguiram se adaptar de novo no país de origem, preferindo permanecer para sempre na pátria adotiva.

Em comparação, pintores, músicos e romancistas parecem necessitar da atmosfera nativa, longe da qual sentem definhar sua inspiração. Quem pode imaginar Dostoievski ou Tolstói afastados para sempre da Rússia, Dickens morando em Miami, Giovanni Verga sem a Sicília ou William Faulkner longe do seu querido e abominado Deep South? Talvez o símbolo mais característico da ligação do escritor com sua terra natal tenha sido George Webber, o herói de You Can’t Go Home Again, de Thomas Wolfe, que saiu buscando sua alma no vasto mundo e só a encontrou ao voltar para casa. Soljenitsin, liberto da opressão comunista depois de décadas de sofrimento, premiado e instalado num hotel suíço de cinco estrelas, queixava-se de que ali não podia escrever, porque não ouvia ninguém em volta falando russo.

Toda regra, é claro, tem exceção. Kant jamais ultrapassou as fronteiras da sua pequena Koenigsberg, mas não sei se o faria caso tivesse saúde para isso. Benedetto Croce era tão apegado à sua Nápoles que, comentavam os amigos, conhecia cada pedra das ruas da cidade. Os dois maiores filósofos romenos – Petre Tsutsea e Constantin Noica – não saíram do pais: o primeiro ficou na cadeia, o segundo em prisão domiciliar. Não sei aonde teriam ido parar se a polícia relaxasse a vigilância.

No mais, o exílio dos filósofos tem mesmo todo o jeito de ser uma constante, ou quase. Um motivo óbvio para isso é o impulso de manter distância da cultura natal para descontaminar-se dela por dentro e olhá-la com independência. Distância externa e interna, portanto. Toda filosofia tem pretensões de validade universal e, se alguma inspiração obtém do meio originário, logo busca se desvencilhar dele para entrar num diálogo com homens de todos os lugares e de todas as épocas.

O exílio filosófico também não e só espacial, mas temporal. O filósofo não pode ser um mero “homem do seu tempo”: tem de abrir-se a influências vindas de séculos remotos, que o libertarão da prisão mental da sua época e, através dele, lançarão as sementes de um futuro às vezes bem longínquo. Sto. Tomas adquiriu sua formação mais de Aristóteles que de qualquer dos seus contemporâneos. Só veio a receber a atenção universal que merecia depois da Encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII (1879). Leibniz deixou-se impregnar profundamente de uma filosofia escolástica que os homens do seu século desprezavam e julgavam extinta para sempre. Graças a isso, teve intuições cujo acerto magistral só a ciência do século XX viria confirmar. Martin Heidegger foi mais influenciado pelos pré-socraticos do que mesmo por seu mestre imediato, Edmund Husserl (ele próprio um exilado voluntário). E René Descartes, malgrado seus ocasionais arroubos de ineditismo, acabou mostrando um agudo senso da supratemporalidade ao confessar: “Os antigos peripatéticos não disseram uma palavra que não fosse nova, nem eu alguma que não fosse velha.”

O que sobrou da religião

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de maio de 2010

Se há neste mundo um fato bem comprovado, é a percepção extra-sensorial durante o estado de morte clínica. Um corpo inerte, sem batimentos cardíacos ou qualquer atividade cerebral, desperta de repente e descreve, com riqueza de detalhes, o que se passava durante o seu transe, não só no quarto onde jazia, mas nos outros aposentos da casa ou do hospital, que de onde estava ele não poderia ver nem se estivesse acordado, bem de saúde e com os olhos abertos. Isso já se repetiu tantas vezes, e foi atestado por tantas autoridades científicas idôneas, que só um completo ignorante na matéria pode teimar em permanecer incrédulo. Mas mesmo alguns daqueles que reconhecem a impossibilidade de negar o fato relutam em tirar a conclusão que ele impõe necessariamente: os limites da consciência humana estendem-se para além do horizonte da atividade corporal, inclusive a do cérebro. A relutância em aceitar isso mostra que o “homem moderno” – o produto da cultura que herdamos do iluminismo – se identificou com o seu corpo ao ponto de sentir-se amedrontado e ofendido ante a mera sugestão de que sua pessoa é algo mais. É evidente que aí não se trata só de uma convicção, de uma idéia, mas de um transe auto-hipnótico incapacitante, de um bloqueio efetivo da percepção.

Esse estado é implantado nas almas pela tremenda pressão anônima da coletividade, que as mantém em estado de atrofia espiritual mediante a ameaça do escárnio e o temor – imaginário, mas nem por isso menos eficiente – da exclusão. Infinitamente multiplicado e potencializado pelo sistema educacional e pela a mídia , o que um dia foi mera idéia filosófica, ou pseudofilosófica, incorpora-se nas personalidades individuais como reflexo de autodefesa e, na mesma medida, restringe a autopercepção de cada qual ao mínimo necessário para o desempenho nas tarefas imediatas da vida socio-econômica. É tudo uma profecia auto-realizável: se a evidência avassaladora da percepção extracorporal é negada, não é só porque as pessoas não acreditam nela – é porque se tornaram realmente incapazes de vivenciá-la de maneira consciente. Vivem alienadas da sua experiência psíquica mais profunda e constante, encerradas num círculo de banalidades no qual o triunfalismo “cultural” e “científico” da mídia popular infunde uma ilusão de riqueza e variedade.

O “mundo real” no qual essas pessoas acreditam viver é o dualismo galilaico-cartesiano, já totalmente desmoralizado pela física de Einstein e Planck, mas que a mídia e o sistema escolar continuam impondo à alma das multidões como verdade definitiva: tudo o que existe nesse mundo são as “coisas físicas” e, em cima delas, o “pensamento humano”, as “criações culturais”. De um lado, a realidade dura da matéria regida por leis supostamente inflexíveis, nas quais se fundamenta a autoridade universal e inquestionável da “ciência”; de outro, a pasta mole e dúctil do “subjetivo”, do arbitrário, onde toda opinião vale o mesmo. Dessa esfera “subjetiva” faz parte a “religião”, que é o direito de crer no que bem se entenda, com a condição de não proclamá-lo jamais verdade objetiva ou valor universal.

Nessas condições, o próprio exercício da religião torna-se uma caricatura grotesca. Tanto quanto o ateu, o homem religioso de hoje em dia acredita piamente na existência de uma esfera material autônoma, regida por leis próprias que a ciência enuncia, só de vez em quando rompidas pela interferência do “milagre”, do “inexplicável”, do “divino”. Por mais que a filosofia esculhambe com o “Deus dos hiatos” (aquele que só age por entre as brechas do conhecimento científico), ele é o único que restou no altar das multidões de crentes. Oficializada pelo establishment governamental, universitário e midiático, a rígida separação kantiana de “conhecimento” e “fé” tornou-se verdade de evangelho para a maioria das almas religiosas, embora ela seja, em si, perfeitamente herética à luz da doutrina católica, interpondo um abismo infranqueável entre dimensões cuja interpenetração, ao contrário, é a própria essência da concepção cristã do cosmos. É novamente a profecia auto-realizável em ação: à percepção mutilada do eu individual corresponde uma religião mutilada, e vice-versa.

Quando digo percepção mutilada, estou afirmando, taxativamente, que a imagem do eu como algo que reside no corpo ou se identifica com ele é fantástica, ilusória, doente. Ela impõe à consciência limitações que não são de maneira alguma naturais, muito menos necessárias. Todas as tradições espirituais do mundo, todas as disciplinas sapienciais começam pela constatação óbvia de que o eu não é o corpo, não “está” no corpo mas de certo modo o abrange como o supra-espacial transcende e abrange o espacial (este é balizado por certas relações matemáticas que, em si, não estão em parte alguma do espaço). Mas uma coisa é compreender isso por pura lógica, outra bem melhor é poder constatá-lo no fato vivo da percepção extra-sensorial em casos de morte clínica. Bastaria, a rigor, um único episódio desse tipo para dar por terra com a balela de que o cérebro, isto é, o corpo, “cria” a cognição, o pensamento, a consciência. Mas os episódios são milhares, e o desinteresse dos crentes por esse tipo de fenômenos (mais estudados por ateus, adeptos da New Age e budistas do que por católicos, protestantes, ou mesmo judeus crentes) denota que a mente religiosa já se conformou com um estado de existência diminuída, em que a alma supracorporal, condição fundamental do acesso a Deus, só passará a existir no outro mundo, por alguma transmutação mágica da psique corporal, em vez de constituir já nesta vida a nossa realidade pessoal mais concreta, mais substantiva e mais verdadeira, presente e atuante nos nossos atos mais mínimos como nas nossas vivências mais elevadas e sublimes.

Durante milênios cada ser humano, ao pronunciar a palavra “eu”, referia-se de maneira imediata e automática à sua alma imortal, a única que podia orar e responder por seus próprios atos ante o altar da divindade. Dessa alma, a psique corporal era uma parte e função menor, voltada ao meio material e social tão-somente, alheia a todo senso do eterno e, a rigor, incapaz de pecado ou santidade, apenas de delitos e virtudes socialmente reconhecidos. A partir do momento em que a psique corporal foi assumida como realidade autônoma, cada indivíduo só se enxerga a si mesmo como membro de uma espécie animal e como “cidadão”, amputado daquela dimensão que fundamenta o senso último de responsabilidade e cultivando, em lugar dele, o mero instinto da adequação social, adornado ou não de “moral religiosa”. Imaginem a diferença que isso faz, por exemplo, na compreensão que você tem da Bíblia: se você não a lê com sua alma imortal, talvez fosse melhor não lê-la de maneira alguma, porque a lê com a carne e não com o espírito.

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