Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 29 de julho de 2015
Estruturas representativas abrangentes só podem ser compreendidas e julgadas como totalidades. O fisicalismo ingênuo, apegando-se aos detalhes mais visíveis, deixa sempre escapar o essencial. A Física de Aristóteles foi rejeitada no início da modernidade porque dizia que as órbitas dos planetas eram circulares e porque sua explicação da queda dos corpos não coincidia com a de Galileu.
Só no século XX o mundo acadêmico entendeu que, retiradas essas miudezas, o valor da obra persistia intacto justamente porque não era uma “física” no sentido moderno do termo e sim uma metodologia geral das ciências. Quatro séculos de orgulhosas cretinices científicas haviam tornado incompreensível um texto com o qual ainda se pode aprender muita coisa (v. as atas do congresso da Unesco Penser avec Aristote, org. M. A. Sinaceur, Toulouse. Érès, 1991).
Toda a simbólica natural da qual o cristianismo só pode prescindir em prejuízo próprio desapareceu de circulação porque, visto com os olhos do fisicalismo ingênuo, o debate entre geocentrismo e heliocentrismo parecia colocar fora de moda o desenho medieval das sete esferas planetárias, uma concepção cosmo-antropológica enormemente complexa e sutil.
Expelido do universo intelectual respeitável, o simbolismo natural só sobreviveu como fornecedor ocasional de figuras de linguagem com que os poetas sentimentais da modernidade, carentes de toda compreensão espiritual e extasiados na contemplação do próprio umbigo, projetavam nas formas da natureza visível as suas emoçõezinhas. Georges Bernanos escreveu em L’Imposture algumas páginas devastadoras contra esse empobrecimento do imaginário moderno.
Os estudiosos que conservaram o interesse pelo velho tema tornaram-se esquisitões marginalizados não só pela classe universitária como também pela própria intelectualidade católica, mais interessada em fazer boa figura ante o fisicalismo acadêmico do que em defender o patrimônio simbólico da religião.
Uma obra notabilíssima como Le Bestiaire du Christ. La Mystérieuse Emblématique de Jésus-Christ, Bruges, Desclée de Brouwer, 1940), em que o arquiteto Louis Charbonneau-Lassay foi de igreja em igreja copiando e explicando cada símbolo animal de Nosso Senhor Jesus Cristo na arquitetura sacra medieval, passou quase despercebida dos meios católicos (mas, como veremos adiante, foi muito valorizada por autores muçulmanos).
Mesmo escritores que compreendiam a cosmologia medieval só ousavam falar dela em termos de valor estético, ao mesmo tempo que ofereciam as genuflexões de praxe ante a autoridade do fisicalismo acadêmico.
Um exemplo característico foi C. S. Lewis, que montou o edifício das suas Crônicas de Narnia sobre o modelo de uma escalada espiritual pelas sete esferas planetárias mas manteve essa chave simbólica cuidadosamente escondida até que ela fosse descoberta, após a morte do autor, pelo erudito Michael Ward (v. Planet Narnia. The Seven Heavens in the Imagination of C. S. Lewis, Oxford University Press, 2008):
“Seguindo-se à sua conversão — escreve Ward –, Lewis naturalmente considerava as religiões pagãs menos verdadeiras do que o cristianismo, mas, olhando-as sem referência à verdade, sentia que elas possuíam uma beleza superior. A beleza e a verdade podiam e deviam ser distinguidas uma da outra, e ambas da bondade.” (P. 27.)
Não deixa de ser uma ironia que, restaurando na arte justamente aqueles elementos da simbólica pagã que a cultura da Europa medieval havia absorvido e cristianizado, Lewis ao mesmo tempo se opusesse tão frontalmente à doutrina escolástica segundo a qual o belo, o verdadeiro e o bom – Unum, Verum, Bonum, na fórmula de Duns Scot – eram essencialmente a mesma coisa.
A timidez cristã ante os dogmas da modernidade chega a ser obscena.
O filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd – no mais, um pensador de primeira grandeza — foi um pouco além da timidez.
Alegando que a dialética hegeliana de tese, antítese e síntese só se aplica às coisas relativas, e que tão logo entramos no domínio do absoluto o que vigora é o antagonismo irrecorrível e a necessidade da escolha, ele condena a filosofia escolástica – portanto a cosmologia medieval inteira – por não ter banido completamente os resíduos culturais do paganismo (exigência impossível que, é claro, o próprio calvinismo também não cumpriu).
Nesse panorama, não estranha que o patrimônio simbólico desprezado e varrido para baixo do tapete fosse rapidamente colhido por intelectuais muçulmanos interessados, sim, numa restauração da cultura cristã tradicional, mas sob o guiamento e controle sutil… de organizações esotéricas islâmicas.
Ninguém, absolutamente ninguém na Europa cristã desde o século XVI dominou e explicou tão magistralmente o simbolismo espiritual cristão e demonstrou tão valentemente o seu valor cognitivo, e não só estético, como o fizeram René Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Jean Borella e outros autores meio impropriamente chamados “perenialistas”.
Todos eles membros de tariqas – organizações esotéricas islâmicas –, e empenhados em abrir na dura carapaça do fisicalismo moderno um rombo por onde pudesse se introduzir a influência intelectual islâmica e avolumar-se até à conquista da hegemonia, usando o tradicionalismo cristão como força auxiliar, mais ou menos como Jesus, na versão islâmica do Segundo Advento, será rebaixado a segundo-no-comando dos exércitos do Mahdi.
Autores não diretamente ligados ao esoterismo islâmico que exploraram o mesmo veio, como Matthila Ghyka, Ananda K. Coomaraswamy e Mircea Eliade, sempre foram devedores intelectuais dos “perenialistas”.
Se hoje em dia a velha cosmologia readquire aos poucos o seu estatuto de conhecimento profundo, necessário e respeitável, multiplicando-se em todas as universidades do mundo civilizado os estudos a respeito, não há como deixar de reconhecer que isso foi devido, sobretudo, à obra de Guénon, de Schuon e de seus seguidores.
“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a chave de abóbada”, profetiza a Bíblia. A profecia ainda não se cumpriu totalmente, mas é óbvio que só a restauração da cosmologia simbólica pode ser a chave de abóbada numa reconstrução da cultura cristã. Apenas, os muçulmanos perceberam isso antes dos intelectuais cristãos e trataram de utilizá-lo em proveito próprio.
Temos uma dívida para com Guénon, Schuon e tutti quanti? É claro que temos. Eles nos devolveram o que era nosso, mesmo fingindo que era deles. Está na hora de praticar com eles aquilo que um velho ditado – islâmico, por sinal – recomenda: “Não perguntes quem sou, mas recebe o que te dou.”
Se o Papa, em vez de fazer isso, prefere esboçar um vago reconhecimento dos direitos de propriedade islâmicos sobre o simbolismo cristão da natureza, é que ele ainda padece daquela timidez auto-humilhante que reluta em afirmar vigorosamente o primado da cristandade nessa área.