Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 4 de janeiro de 2011
As declarações recentes da Igreja Anglicana do Brasil em favor do Projeto de Lei 122/06 fornecem-nos o exemplo completo e acabado da duplicidade de linguagem a que é preciso recorrer quando se defende o indefensável. Embora o estilo bífido seja o mais notório hábito do demônio, seu emprego não merecendo respeito nem tolerância sobretudo quando praticado em nome da religião, isto não implica, da parte de seus usuários, nenhuma intenção consciente de ludibriar o ouvinte ou leitor. Ao contrário: nos dias que correm, aquela ambigüidade sorrateira, perversa, que encobre com as mesmas palavras as ações mais opostas e contraditórias, já se tornou em muitas pessoas um vício automatizado e quase que uma segunda natureza. Isso não as desculpa de maneira alguma: o mal não se faz menos detestável porque uma rotina entorpecente o tornou indiscernível do bem.
Em si, o documento não tem aquele mínimo de consistência que o tornaria merecedor de uma resposta; está abaixo da possibilidade de ser debatido; só pode ser analisado como sintoma de vícios de pensamento que hoje em dia são gerais e endêmicos na sociedade brasileira.
O objetivo nominal com que se apresenta é contestar, com ares de quem passa pito, algumas objeções correntes àquela proposta legislativa, especialmente as que a vêem como instrumento destinado a limitar severamente a liberdade de expressão.
“Crítica comum ao PLC n.º 122/06 é a de que o mesmo proibiria as pessoas de ‘criticarem a homossexualidade’ (sic) e que implicaria numa ‘ditadura’, numa ‘mordaça’ àqueles que ‘não concordam’ com o ‘estilo de vida homossexual’. Contudo, essas colocações se pautam ou em um simplismo acrítico ou em má-fé de seus defensores.”
Contra essa objeção, alega a Igreja Anglicana que naquele projeto de lei “não há criminalização específica da discriminação não-violenta por orientação sexual ou por identidade de gênero”. Assim, estaria resguardado o direito à crítica: “Opiniões respeitosas, embora críticas, à pessoa homossexual não configurarão crime por força do PLC n.º 122/06”.
Se o leitor suspira aliviado diante dessas observações, faria melhor em notar que elas significam o oposto do que parecem dizer. Prossegue o documento: “Criticar a homossexualidade e não a pessoa homossexual concreta implica em (sic) um discurso segregacionista … que se equipara a discursos de ódio que não pode ser tolerado.” A redação abominável mal esconde o sentido ameaçador daquilo que pretende vender como inofensivo: você pode criticar o homossexual por qualquer outra coisa – por usar uma gravata berrante, por cometer tantos erros de português quanto o porta-voz da Igreja Anglicana ou por soltar gases no elevador – mas nunca por sua conduta homossexual. Pior: não pode falar mal do homossexualismo em si, genericamente, sem qualquer referência a uma pessoa concreta, pois ser contra o homossexualismo é “discurso de ódio”, obviamente punível pelo PLC-122/06. Mais claramente ainda, o documento afirma que todas as modalidades de discriminação serão castigadas, ainda que “sejam tais ações perpetradas por motivação moral, ética, filosófica ou psicológica.” Quer dizer: a motivação moralmente elevada e a alta elaboração intelectual da crítica ao homossexualismo não a tornarão menos criminosa, nem menos punível.
Notem que aí o conceito de discriminação abrange quatro ações possíveis: agredir, constranger, intimidar e vexar. Vexar, prossegue o documento citando o Dicionário Houaiss, é “causar vexame ou humilhação, sendo vexame tudo o que causa vergonha ou afronta”. Ora, qualquer ensinamento que tente mostrar a um cidadão o caráter imoral ou pecaminoso da sua conduta, mesmo que o faça nos termos mais gentis e carinhosos do mundo, não tem como deixar de lhe infundir um sentimento de vergonha. Mais que vergonha, culpa e arrependimento, que não vêm sem humilhação. Em suma: a simples pregação moral que tente induzir um indivíduo a abandonar as práticas homossexuais já está catalogada de antemão como crime e nivelada às ações de “agredir, constranger e intimidar”.
A permissão de “opiniões respeitosas, embora críticas” é com toda a evidência uma armadilha destinada a proibir toda e qualquer opinião crítica, mesmo moralmente digna e fundada em motivos intelectualmente relevantes.
A própria escolha do adjetivo revela a ambigüidade maliciosa do autor do escrito. “Opiniões respeitosas”, diz ele. Respeitosas a quem e a quê? Respeitosas à pessoa humana somente ou respeitosa aos seus hábitos homossexuais também? É evidente que, se alguém considera um hábito respeitável, não tem por que criticá-lo do ponto de vista moral; se o critica, é porque não o considera respeitável de maneira alguma. Dito de outro modo: você pode criticar o homossexual, desde que aceite sua conduta homossexual como respeitável e superior a críticas e desde que se abstenha de dizer até mesmo alguma palavra contra a homossexualidade em geral.
Chamar isso de mordaça é eufemismo. Mordaça impede apenas de falar, não de pensar. O PL-122/06 não é uma mordaça: é uma camisa-de-força mental que impõe a todos os possíveis críticos do homossexualismo uma obrigação psicológicamente impossível, a de criticar sem críticas. Muito mais que restringir a liberdade de expressão, estrangula a liberdade de pensamento. É uma lei propositadamente absurda, feita na base da estimulação contraditória para instilar na população um estado de perplexidade apatetada, temor irracional e obediência canina. Se esse monstrengo jurídico digno da Rainha de Copas nasceu da pura confusão mental de seus autores ou de um propósito maquiavélico de reduzir o público à menoridade mental, é algo que se pode conjeturar. As duas hipóteses não se excluem – nem no projeto em si, nem na sua apologia anglicana.