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Lênin e o nosso Lênin

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 21 de dezembro de 2006

Convidado a definir sua posição ideológica, o sr. presidente já deu três respostas: (1) É de esquerda. (2) Nunca foi de esquerda. (3) Foi de esquerda mas já não é mais.

As três juntas exemplificam didaticamente algo que há anos venho tentando em vão explicar à Zé-Lite. Quando lhes digo que Lula é comunista, que Marco Aurélio Garcia é comunista, ou até que Hugo Chávez é comunista, essas cândidas criaturas me respondem: “Mas será mesmo que eles ainda acreditam nisso?” O pressuposto da pergunta é que a filiação ideológica é uma crença subjetiva, mais ou menos de tipo religioso, que para funcionar tem de ser sincera.

Ora, as idéias, as crenças íntimas, só são determinantes do comportamento no caso dos homens intelectualmente diferenciados, capazes de dirigir seus atos desde o centro da sua consciência. Indivíduos mentalmente passivos, fragmentários, não agem desde si próprios, mas desde a estimulação ambiente, desde as pressões e seduções que recebem do seu grupo de referência. Um velho ditado francês ensina: “Quer mudar as opiniões do homem medíocre? Mude-o de lugar.”

Daí esta precaução de método: para saber a filiação ideológica de qualquer político brasileiro, não pergunte em que ele crê, mas com quem ele anda, a quais pressões e injunções ele é sensível, em quais esquemas de ação coletiva está metido.

Os grupos de referência de Lula são dois: a esquerda continental e a alta burguesia com a qual ele passou a conviver depois de eleito presidente. Seus compromissos com o primeiro são antigos, públicos e notórios. Com o segundo, são recentes e discretos: qualquer demonstração de afeto mais ostensiva, e lá vem paulada da esquerda inteira.

A diferença essencial é que, desses dois grupos, só o primeiro tem um projeto estratégico abrangente. A burguesia — mesmo a internacional – contenta-se com afagos a seus interesses financeiros imediatos, apostando, por puro wishful thinking , que a economia acabará ditando os rumos da política. A posição geográfica de Lula na intersecção desses dois grupos define a sua orientação ideológica: satisfazer as exigências econômicas imediatas da burguesia ao mesmo tempo que vai fortalecendo o esquema estratégico esquerdista de longo prazo. Mantém o capitalismo funcionando para alimentar com ele a máquina do poder esquerdista que acabará por dominar o espaço político inteiro. Todo mundo sai contente, sem pensar no amanhã sinistro que está sendo gerado com isso.

Os burgueses querem apenas dinheiro, os revolucionários querem o poder absoluto, a posse integral dos meios de matar. A história provou que é possível satisfazer a ambos. Mas o primeiro a descobrir isso e a usá-lo como arma estratégica foi Lênin. Ele sabia que no fim das contas, o dinheiro é nada, o poder de matar é tudo. Por isso conseguiu implantar a ditadura comunista na Rússia ao mesmo tempo que persuadia os investidores estrangeiros de que não era comunista de maneira alguma. Lula não é Lênin: apenas repete por automatismo, em resposta às pressões do meio, o jogo de ambigüidades que Lênin inventou. Quando Marx disse que a história se repete como farsa, não sabia que estava falando da história do socialismo.

Lógica e trapaça

 

Olavo de Carvalho


Época, 30 de junho de 2001

O abuso da palavra sofisma tornou-se hábito consagrado nos debates nacionais

Dois instrumentos usuais da patifaria intelectual são o entimema erístico e o sofisma. Entimema é um silogismo do qual uma das premissas, considerada óbvia ou de domínio público, vem omitida. Por ser leve e prestar-se bem à expressão literária, é o meio preferencial da persuasão retórica, a argumentação jornalística por excelência, que, não podendo demonstrar o certo ou o razoável, se contenta com o verossímil, isto é, com aquilo que, por afinar-se com as crenças do público, é aceito como verdadeiro sem maiores discussões. O verossímil, com freqüência, é também verdadeiro, mas às vezes não o é. O único meio de testá-lo é explicitar a premissa oculta, transformando o entimema num silogismo completo. Ao fazer isso, não raro descobrimos que a premissa oculta não era óbvia nem de domínio público, mas sim alguma estupidez infame, encoberta para poder extorquir a anuência sonsa da platéia distraída. Neste caso o entimema é dito erístico: erística é a arte da argumentação capciosa, a retórica pervertida dos charlatães.

Já o sofisma é um silogismo aparentemente perfeito, mas construído sobre premissas falsas difíceis de impugnar ou ardilosamente desviado na passagem crucial das premissas à conclusão.

Um público afeito à discussão vulgar, mas sem treino filosófico específico, engolirá sem a menor objeção doses maciças de entimemas erísticos, porém, diante de qualquer raciocínio lógico mais elaborado, facilmente será persuadido a armar-se de desconfiança caipira e a rejeitar como “sofismas” as provas mais sérias e fundamentadas, pelo simples fato de serem mais sutis que seu alimento discursivo habitual. Daí a freqüência com que o rótulo de “sofisma” é usado levianamente pelos patifes para impugnar qualquer raciocínio que leve a conclusões que os desagradem.

Nesses casos, caracteristicamente, jamais a acusação de sofisma vem acompanhada da devida indicação dos erros que a justificariam. Ou o rótulo vem sozinho, solto no ar como uma fórmula mágica, na esperança de que exerça automático efeito difamatório, ou sustenta-se em alegações que nada têm de uma refutação em regra e não passam em geral da expressão sumária de uma opinião antagônica à do argumento rejeitado, isto quando não são, elas próprias, entimemas erísticos da mais baixa qualidade.

Sofisma é termo técnico de lógica e seu uso legítimo requer a explicitação dos erros sofísticos correspondentes. Se, em vez disso, alguém o emprega informalmente como figura de linguagem, só pode ser para rebaixar como sofisma algo que não é sofisma.

Um exemplo recente é o do jovem redator de editoriais num grande jornal, que, nomeando-me “rei do sofisma”, dispara sobre mim a seguinte cobrança: “Por que, em vez de quantificar o placar das mortes, Olavo de Carvalho simplesmente não condena todas as ditaduras (chinesa, cubana, brasileira, chilena etc.)?”

Bem, a resposta é que não faço isso porque regimes de força que matam 300 pessoas em 20 anos, como a ditadura militar brasileira, e regimes que matam 3.200 pessoas por dia – tal foi a média da China comunista – simplesmente não são espécies do mesmo gênero, malgrado a comunidade do nome que os designa. O termo “ditadura”, indicando uma estrutura formal de governo e não o concreto modus agendi pelo qual esse governo se impõe e se mantém – numa gama de opções que vai do simples golpe parlamentar ao holocausto –, não dá conta de uma diferença essencial.

Correspondendo à de autoritarismo e totalitarismo, essa diferença é consagrada na distinção entre homicídio e genocídio, entre a violência esporádica e a extinção planejada de uma raça, classe ou nação. Deduzir da pura coincidência de nomes a identidade de fenômenos tão diversos é óbvia trapaça erística, tanto mais perversa se usada para legitimar o nivelamento moral de males incomensuráveis, clássico expediente erístico da propaganda totalitária.

 

A oportunidade dos liberais

Olavo de Carvalho

Zero Hora (Porto Alegre), 13 de agosto de 2000

A esquerda tornou-se hegemônica porque sabe para onde quer ir e sabe fazer as pessoas pensarem que, ajudando-a a chegar lá, estão indo para onde elas próprias querem. A direita só sabe o que não quer e, mesmo quando luta pelos mais óbvios interesses do povo, dá a impressão de estar agindo no interesse próprio. Isto acontece porque ela própria está enfeitiçada pelo discurso esquerdista e, quando abre a boca para se defender, só sabe repetir palavras que a acusam.

Todo comunista sabe que, no vocabulário da sua ideologia, a expressão “luta pela democracia” tem um significado específico, bem diferente do que tem na linguagem corrente: designa uma etapa do processo revolucionário, a ser superada imediatamente após sua consecução e transformada o mais rápido possível em comunismo explícito. Mas, precisamente, as outras pessoas não sabem disso — e, quando se aliam aos comunistas no combate por um objetivo qualquer, por exemplo “direitos civis”, não fazem a mínima idéia de que seus esforços para a obtenção dessa meta específica já foram enquadrados na estratégia mais vasta de seus aliados, à qual acabarão servindo sem perceber.

Por isso mesmo, na luta pela redemocratização do Brasil, o retorno à normalidade democrática foi apenas uma parte dos objetivos alcançados — a parte menor e secundária. A maior e principal foi a hegemonia comunista do processo. Pelos frutos os conhecereis: hoje a esquerda detém não somente noventa por cento do eleitorado nos grandes centros, mas domina a máquina de denúncias e investigações com que destrói, com provas ou sem provas, a reputação de quem a incomode. Em resultado, a guerra contra a corrupção não diminuiu a corrupção em nada, mas fez subir até às nuvens o poder de manipulação esquerdista da opinião pública. Do mesmo modo, campanhas sentimentalóides contra a miséria — feitas com o único propósito de absorver na estratégia esquerdista o aparato nacional de assistência social — não atenuaram em nada a pobreza, mas abriram perspectivas deliciosamente ilimitadas para a dominação moral das consciências pelo “establishment” esquerdista. Pelos frutos os conhecereis.

Para fazer face ao assalto esquerdista generalizado, a direita liberal não conta senão com um recurso ideológico específico e limitado: a apologia da economia de mercado. Os liberais são tão eficientes e valorosos na luta por esse item único quanto são omissos e indefesos em tudo o mais. Ante o avanço simultâneo do adversário em todas as frentes, apegam-se à defesa de uma cidade, de um bairro, de um edifício, com o desespero de quem deu a guerra por perdida e já não deseja salvar senão esse último símbolo da sua honra guerreira.

Para complicar, a insistência exclusiva nesse item joga os liberais contra outras correntes de opinião que, sendo tão anticomunistas quanto eles, identificam liberalismo com dominação globalista e olham com temor e desconfiança a possibilidade de maior ingerência estrangeira nos assuntos nacionais. Entre o comunismo que abominam e o neoliberalismo que temem, essas correntes estão hoje isoladas e sem ação. Como nelas há muitos militares, os comunistas já perceberam sua importância vital e fazem esforços diuturnos para conquistá-las. Mas não o conseguiram ainda. Para os liberais ganharem a simpatia delas, basta que saibam distinguir entre o autêntico liberalismo que defendem e a fraude do “neoliberalismo” imperialista, intenvencionista (e, no fundo, socialista) dos srs. Clinton e Blair. O “establishment” globalista mundial está hoje francamente à esquerda. Essa é a melhor oportunidade para um diálogo entre liberais e nacionalistas, de modo a impedir que estes acabem colaborando, por falta de opção, com o velho jogo stalinista de vender o comunismo com embalagem de nacionalismo.

Eu seria o último a desejar a extinção da esquerda ou a sua redução à completa impotência. Já vi esse filme e não gostei. É preciso que exista uma esquerda, que exista uma direita, que ambas consintam em jogar o jogo democrático do rodízio eleitoral e que ninguém se utilize da democracia como meio provisório de chegar a… alguma outra coisa. Não tem sentido falar em estabilidade democrática e ao mesmo tempo fazer da democracia um trampolim para outro tipo de regime, sobretudo para aquele que, eufemisticamente, se autodenomina “democracia popular”. O que não pode continuar é essa situação aberrante em que só um dos lados fala, só um dos lados acusa, só um dos lados faz e acontece e, ao mesmo tempo, esse mesmo lado se queixa e se faz de coitadinho, choramingando contra o “discurso único”, como se o único discurso em circulação, fora do estreito círculo dos profissionais da economia, não fosse o dele próprio.

Independentemente de decidir se no Brasil do futuro cada um de nós ficará com a direita, com a esquerda ou fora de ambas, fortalecer a direita liberal é hoje o dever número um de quem, tendo conhecido a ditadura neste país ou em qualquer outro, sabe quanto vale a democracia.

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