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Leitura indispensável

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 25 de março de 2008

Não é porque foi a minha filha Maria Inês quem traduziu, nem porque fui eu mesmo quem recomendou enfaticamente o livro ao editor Edson de Oliveira, nem mesmo porque as notas, muito boas, são do meu ex-aluno Martim Vasques da Cunha. Não é por nada disso, mas vocês têm de ler – todo brasileiro que deseje entender o mundo de hoje tem de ler – as Reflexões Autobiográficas do filósofo germano-americano Eric Voegelin recém-lançadas pela É-Realizações, de São Paulo.

Seqüência de depoimentos informais gravados por Ellis Sandoz em 1973 e depois publicados em transcrição corrigida pelo próprio Voegelin, as Reflexões têm no entanto um fio condutor bem nítido, desenvolvido coerentemente do princípio ao fim: como um grande estudioso extraiu da própria experiência vivida o tema que seria o das suas investigações até o fim dos seus dias; como planejou e dirigiu a aquisição do vasto repertório de conhecimentos necessários para dar ao assunto um tratamento intelectualmente responsável (incluindo diversas viagens de estudos) e como foi tentando ao longo dos anos várias perspectivas diferentes e modificando a formulação do trabalho até à culminação de seus esforços nos cinco volumes da obra magna Order and History e nas considerações finais recolhidas postumamente em What is History? (1990) e The Drama of Humanity (2004), onde as reflexões do filósofo e erudito se transfiguram em pura sabedoria.

O tema inicial não poderia ser mais importante: a origem intelectual dos movimentos ideológicos de massa e o seu sentido na estrutura geral da vida humana. Voegelin foi testemunha direta da ascensão do comunismo e do nazismo, tendo de fugir às pressas da Áustria sob ocupação alemã quando seus livros sobre a origem do racismo o tornaram odioso ao novo regime.

Tal como Franz Werfel, Luigi Sturzo, Reinhold Niebuhr, Robert Musil e outros escritores que observaram de perto a expansão avassaladora das forças totalitárias, Voegelin logo notou que não se tratava só de movimentos políticos, mas de projetos civilizatórios integrais que ambicionavam modificar radicalmente a natureza humana e o lugar da humanidade na ordem cósmica. Para compreender esse fenômeno era preciso não só rastrear suas origens nas primeiras heresias cristãs, mas tentar enquadrá-lo numa tipologia histórica dos vários modelos de “ordem” surgidos ao longo dos tempos – entendendo-se por ordem não somente a hierarquia de poder mas a estruturação abrangente do sentido da vida.

Rendendo-se com admirável honestidade às novas descobertas historiográficas que se sucediam, Voegelin teve de modificar várias vezes o curso dos seus estudos, chegando a abandonar uma História das Idéias Políticas da qual já tinha escrito nada menos que oito volumes e a alterar de alto a baixo o plano de Order and History a partir do terceiro volume.

Para nós, testemunhas e vítimas de uma nova onda totalitária que se espalha agora pela América Latina, essa autobiografia de erudito e cientista tem o valor e a urgência de um manual de estudos para todos os que se sintam chamados a penetrar intelectualmente a situação de modo a poder exorcisar, um dia, os demônios geradores da confusão sangrenta que metódica e inexoravelmente, como num pesadelo planejado, vai engolfando o nosso continente.

Mas, mesmo em épocas mais tranqüilas, eu recomendaria as Reflexões Autobiográficas como modelo didático de uma vida de estudos. Num país onde as universidades sempre desprezaram sua missão e hoje se empenham ativamente em proibir toda tentativa de cumpri-la, é só em livros como esse que o estudante sério pode encontrar algum guiamento.

Muitas décadas atrás, li outro grande livro, La Vie Intellectuelle , de A.-D. Sertillanges, receituário compacto e formidavelmente claro dos deveres do estudioso, e disse para mim mesmo: “É isso o que eu quero ser quando crescer.” As Reflexões de Eric Voegelin são, de algum modo, o complemento inverso dessa obra: são a fórmula da vida intelectual mostrada não desde seus princípios e métodos, mas desde o exemplo concreto de uma vocação realizada, vitoriosa no sentido mais pleno da palavra.

Colaboracionistas

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 13 de março de 2008

O colaboracionismo de importantes jornalistas brasileiros foi — e é — parte vital da estratégia que permitiu a uma articulação de comunistas e gansgsters dominar meio continente sem encontrar resistência, enquanto a “direita” se deixava entorpecer pelo slogan narcótico de que “o comunismo acabou”, ao ponto de hostilizar quem quer que tentasse alertá-la de que as coisas não eram bem assim.

O longo silêncio da mídia nacional em torno do Foro de São Paulo nada teve de involuntário ou inocente. Que uma confluência acidental de lapsos de atenção possa ter-se repetido em todas as redações de jornais, rádios e TVs do país, dia após dia, ao longo de dezesseis anos, é uma hipótese tão rebuscada, inverossímil e psicótica, que só serve para tornar ainda mais patente aquilo mesmo que deseja ocultar.

Mas a maior prova de que o bloqueio de notícias foi intencional é que ele persistiu até mesmo depois das duas confissões públicas do sr. Luís Inácio Lula da Silva quanto às suas atividades clantestinas no Foro, e só veio a ceder um pouquinho quando o próprio PT deu o sinal verde, com o vídeo do seu III Congresso, no momento em que o segredo já não lhe era mais necessário nem conveniente. Mesmo liberada, a notícia ainda permaneceu parcialmente retida até que uma crise diplomática, alardeada nos principais jornais do mundo e sublinhada por uma declaração explícita do sr. Hugo Chávez em pessoa sobre suas conversas com Lula e Raul Reyes no quadro do Foro (v. http://www.youtube.com/watch?v=DzxOK21kXms&feature=related ), tornou impossível continuar abafando um escândalo de dimensões continentais.

O fato de que agora, rompido o silêncio, aqueles mesmos sonegadores de notícias sejam ouvidos sobre o assunto como autoridades sérias e isentas, em vez de ser desmascarados e investigados como cúmplices do maior concurso de crimes já observado na América Latina, mostra que o regime de privação cognitiva que eles impuseram ao país alcançou o efeito desejado: tornou a vítima estúpída e crédula o bastante para submeter-se voluntariamente, de novo e de novo, ao mesmo tratamento que a incapacitou de início, como um drogado acaba por se tornar servo devoto e amoroso do traficante que o mata aos pouquinhos.

E eles, é claro, aproveitam-se disso para dar um upgrade à fraude consagrada, passando da omissão simples à mentira ativa. Forneço dois exemplos, escolhidos a esmo. A sra. Eliane Cantanhede, na ânsia de limpar retroativamente a reputação da liderança esquerdista comprometida pelas últimas notícias, assegura-nos que “Lula rompeu com o Foro de São Paulo seis anos atrás” – quando o próprio Lula já confessou ter continuado a participar do Foro muito tempo depois de eleito presidente da República, além de atuar nele ainda hoje através do sr. Marco Aurélio Garcia (v. Lula, réu confesso e Saindo do armário). O sr. Demétrio Magnoli, que até mesmo Veja respeita como um expert na matéria, proclama que as Farc se afastaram do caminho revolucionário para dedicar-se ao banditismo puro e simples – e tem a cara de pau de dizer isso no instante mesmo em que a esquerda latino-americana em peso se junta para proteger a narcoguerrilha e legitimá-la como movimento político, prova cabal de que não enxerga nela uma quadrilha de delinqüentes comuns.

Para os deformadores de opinião, impedir que a boa imagem do esquerdismo seja arranhada pela revelação de seus crimes é um dever que está infinitamente acima da honestidade, virtude simplória demais para o seu gosto requintado.

Quando estreei como foquinha, quarenta e tantos anos atrás, o cínico desencanto dos velhos profissionais que diziam “Nós, jornalistas, somos prostitutas” me soava insuportavelmente ofensivo. Hoje ainda me parece ofensivo. Ofensivo às prostitutas.

Discurso requentado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 27 de dezembro de 2007

No começo da década de 90, a ilusão triunfalista do “fim do comunismo” produziu nos liberais brasileiros a mais desconcertante das mutações: fez com que daí por diante eles concentrassem suas baterias na propaganda das vantagens da economia de mercado e na apologia abstrata do Estado de Direito, como se não lhes restasse outro inimigo a enfrentar. A esse programa acrescentou-se apenas, a partir de 2002, o combate à corrupção petista – muito mais brando e educado do que aquele que o PT havia travado contra os governos Collor e FHC. Se esse mesmo período foi também o da ascensão da esquerda ao controle hegemônico do Estado e da sociedade, só um cérebro monstruosamente letárgico poderia ver aí só coincidência.

Ao desmantelamento parcial e aparente da URSS seguiu-se, na América Latina, a fundação do Foro de São Paulo. Quando as Farc, em carta ao PT, celebram essa fundação como o acontecimento providencial que salvou da extinção o movimento comunista no continente, elas sabem muito bem do que estão falando: partidos legais e organizações criminosas de esquerda são hoje os dominadores incontestes da América Latina.

Isso aconteceu precisamente no período em que os liberais, desejando limpar-se de toda contaminação com a imagem de um passado conservador, não só se abstinham de toda menção ao perigo comunista, mas não escondiam sua má vontade hostil ante quem quer que ousasse tocar no assunto. Se, numa disputa política, um dos lados está disposto a todos os sacrifícios para reconquistar o terreno perdido e o outro se sente comprometido a jamais denunciar o que o adversário está fazendo, não é preciso ser muito esperto para saber quem vai ganhar a briga. Mas os liberais já a perderam, e a maioria deles ainda se recusa a entender o porquê.

Não percebem, essas angélicas criaturas, que toda a sua retórica não pode fazer nenhum mal à esquerda, a qual já se apossou dela quase que por inteiro, ao ponto de ser acusada, por alguns de seus membros mais loucos e por seus próprios agentes de desinformação empenhados em espalhar falsas pistas, de haver se bandeado para a direita.

O inimigo que hoje se perfila diante dos liberais e conservadores do continente não é um nebuloso “populismo”, não é um mero estatismo administrativo, não é um adocicado burocratismo social-democrata de estilo europeu: é o marxismo-leninismo, é o bom e velho comunismo de sempre, hoje com uma estratégia mais abrangente e flexível do que nunca e com adversários mais tímidos e bobocas do que seus sonhos mais róseos poderiam jamais ter concebido.

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