Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 18 de fevereiro de 2008
“Cultura é o novo nome da propaganda”, explicava o crítico literário português Fernando Alves Cristóvão. Bem, quando ele disse isso, o nome não era tão novo assim. Fazia quase setenta anos que os comunistas haviam reduzido a cultura a instrumento de propaganda e manipulação, rejeitando todos os seus demais usos e significados como superfetações burguesas puníveis, eventualmente, com pena de prisão. A novidade, nos anos 90, era que esse conceito havia se universalizado, tornando-se regra usual em círculos que antes o teriam desprezado como mero sintoma da barbárie comunista. A expressão mais visível desse fenômeno é a mudança drástica do sentido do título de “intelectual”, hoje conferido automaticamente a qualquer um que engrosse por escrito alguma campanha de propaganda político-ideológica, mesmo que o faça em termos intelectualmente desprezíveis e numa linguagem de ginasiano relapso.
O plano de colocar o sr. Lula na Academia Brasileira de Letras, lançado anos atrás pelo falecido cientista político Raymundo Faoro, não foi levado adiante, mas já era um sinal visível de que a acepção elasticamente gramsciana do termo “intelectual” se tornara moeda corrente fora dos meios comunistas estritos. Mais ou menos na mesma ocasião, o sr. William Lima da Silva, líder do Comando Vermelho, por ter escrito um livro de memórias onde alegava que bandidos eram os outros, recebia tratamento de autor respeitável em plena Associação Brasileira de Imprensa, enquanto na Folha de São Paulo a jornalista Marilene Felinto dava estatuto de filósofo ao estuprador e assassino Marcinho VP, que salvo engano tinha também olhos verdes. O silogismo aí subentendido fundia Herbert Marcuse e Antonio Gramsci. O primeiro dizia que os bandidos eram revolucionários. O segundo, que os revolucionários eram intelectuais. Logo, os bandidos eram intelectuais. A ABI e a Folha não eram instituições formalmente comunistas. Apenas tinham-se deixado dominar pela mentalidade comunista ao ponto de obedecer os seus mandamentos sem ter de aderir conscientemente à sua proposta política.
Mas o pior veio uns anos depois, quando a redução da cultura à propaganda começou a parecer natural e desejável aos olhos dos conservadores — ou “liberais”, como são chamados usualmente no Brasil (mais uma curiosa inversão numa república onde tudo cresce de cabeça para baixo, como as bananas). Aconteceu que o conservadorismo brasileiro foi, em essência, uma criação de pequenos empresários. Essas pobres criaturas, acossadas pelo fisco, pelas leis trabalhistas, pela concorrência das multinacionais e pela crença estatal de que os capitalistas só não comem criancinhas porque preferem vendê-las sob a forma de salsichas, estavam tão preocupadas com a sua sobrevivência imediata que mal tinham tempo de pensar em outra coisa. Seu conservadorismo – ou liberalismo – foi assim reduzido à sua expressão mais frugal, ascética e descarnada: a defesa pura e simples do livre mercado, tomado como se fosse uma realidade em si e separado das condições civilizacionais e culturais que o tornam possível.
O primado do econômico, adotado inicialmente por mera urgência prática, acabou adquirindo, por força do hábito, o estatuto de uma verdade axiomática, da qual se deduziam as conclusões mais estapafúrdias e perigosas. Talvez a pior delas fosse a de que o progresso econômico é a melhor vacina contra as revoluções sociais. O fato de que jamais tivesse acontecido uma revolução social em país de economia declinante não abalava em nada o otimismo progressista daqueles risonhos empreendedores, que julgavam o estado geral da nação pelo balancete de suas respectivas empresas e se julgavam tremendamente realistas por isso. Nem os demovia da sua crença a obviedade histórica, já reconhecida pelos próprios marxistas, de que a classe revolucionária não se forma entre os proletários ou camponeses, muito menos entre os miseráveis e desempregados, mas entre as massas afluentes de classe média alimentadas de doutrina comunista nas universidades.
De outro lado, aconteceu que os liberais, ao mesmo tempo que se inchavam de entusiasmo ante a modesta recuperação econômica do país, eram cada vez mais excluídos da representação política. As eleições presidenciais de 2002 ofereceram à escolha do eleitorado quatro candidatos esquerdistas, dos quais nenhum, ao longo de toda a campanha, disse uma só palavra em favor da livre empresa. Nos anos subseqüentes, o partido nominalmente liberal – PFL – adaptou-se às circunstâncias aceitando sua condição de mero coadjuvante da esquerda light , mudou de nome para ficar parecido com o Partido Democrata americano (o partido preferido de Hugo Chávez e Fidel Castro) e nem mesmo resmungou quando foi declarado, pelo presidente petista reeleito, “um partido sem perspectiva de poder”.
Condenados à marginalidade política, mas ao mesmo tempo anestesiados pelos sinais crescentes de recuperação da economia capitalista no país, os liberais apegaram-se mais ainda ao seu economicismo, desistindo do combate nos demais fronts , quando não aderindo ao programa esquerdista em todos os pontos sem relevância econômica imediata, como o gayzismo, o abortismo, as quotas raciais e o anticristianismo militante, na esperança louca de concorrer com a esquerda no seu próprio campo, sem perceber que com isso concediam ao adversário o monopólio da propaganda ideológica e se transformavam em dóceis instrumentos da “revolução cultural” gramsciana.
É compreensível que, nessas condições, toda a atividade mental da “direita” brasileira acabasse se reduzindo às análises econômicas e à propaganda de um produto único – o livre mercado –, perdendo toda relevância no debate cultural e rebaixando-se ao ponto de passar a aceitar como “intelectual representativo” qualquer moleque idiota capaz de dizer duas ou três palavrinhas contra a intervenção estatal no mercado.
Ironicamente, a esquerda, no mesmo período, decaiu intelectualmente ao ponto de raiar a barbárie pura e simples, mas, como os liberais não se interessavam pela luta cultural, continuou desfrutando do prestígio inalterado de suprema autoridade intelectual no país, sem sofrer nenhum abalo mais forte desde a publicação do meu livro “O Imbecil Coletivo” (1996).
Nunca, como ao longo das últimas décadas, o esquerdismo esteve tão fraco intelectualmente: um ataque maciço a esse flanco teria quebrado a máquina de doutrinação esquerdista nas universidades e na mídia, destruindo no berço a militância em formação e mudando o curso das eleições subseqüentes. Mil vezes tentei mostrar isso aos liberais, mas eles só davam ouvidos a quem falasse em PNB e investimentos. Trancaram-se na sua torre-de-marfim economicista e lá se encontram até hoje, perdendo mais terreno para os esquerdistas a cada dia que passa e conformando-se com sua condição de forças auxiliares, destinadas fatalmente a tornar-se cada vez mais desnecessárias à medida que a esquerda não-petista acumule vitórias contra o partido governante.
Fora dos círculos do liberalismo oficial, noto com satisfação algumas iniciativas novas destinadas a formar uma intelectualidade conservadora e liberal apta a oferecer uma resistência séria à “revolução cultural”. Essas iniciativas partem de estudantes, de intelectuais isolados, e não têm nenhum apoio nem dos partidos “de direita”, nem muito menos do empresariado. Mas é delas que dependerá o futuro do país, se algum houver.