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Mais sábios que Deus

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 28 de novembro de 2005

Ao chegar à América em 1623, o governador William Bradford encontrou a colônia de Plymouth numa situação desesperadora: magros, doentes, em farrapos, sem atividade econômica organizada, os peregrinos estavam à beira da extinção. Muitos, depois de vender aos índios todas as suas roupas e demais bens pessoais, tinham lhes vendido sua liberdade: eram escravos, vivendo de cortar lenha e carregar água em troca de uma tigela de milho e um abrigo contra o frio.

Interrogando os líderes da comunidade em busca da causa de tão deplorável estado de coisas, Bradford descobriu que a origem dos males tinha um nome bem característico. Chamava-se “socialismo”.

Os habitantes de Plymouth, revolucionários puritanos exilados, trouxeram para a América as idéias sociais esplêndidas que os haviam tornado insuportáveis na Inglaterra, e tentaram construir seu paraíso coletivista no Novo Mundo. As terras eram propriedade comunitária, a divisão do trabalho era decidida em assembléia e a colheita se dividia igualitariamente entre todas as bocas. O sistema havia resultado em confusão geral, a lavoura não produzia o suficiente e aos poucos a miséria havia se transformado naturalmente em anarquia e ódio de todos contra todos.

A um passo do extermínio, a comunidade aceitou então a sugestão de mudar de rumo, voltando ao execrável sistema de propriedade privada da terra. “Isso teve muito bons resultados”, relata Bradford. “Muito mais milho foi plantado e até as mulheres iam voluntariamente trabalhar no campo, levando suas crianças para ajudar.” O surto de prosperidade que se seguiu é bem conhecido historicamente: ele permitiu que os colonos fincassem raízes na América e começassem a construir o país mais rico do mundo.

Homem de fé, Bradford não atribuiu a salvação da colônia aos méritos dela ou dele próprio, mas à mão da providência divina. O sucesso do sistema capitalista, escreveu ele, “bem mostra a vaidade daquela presunção de que tomar as propriedades pode tornar os homens mais felizes e prósperos, como se fossem mais sábios que Deus”.

Encontrei essa história na coluna de Mike Franc no semanário Human Events . Para mim ela era novidade completa, mas depois descobri que por aqui até os meninos de escola a conhecem. O documento clássico a respeito é o livro do próprio Bradford, Of Plymouth Plantation, 1620—1647 . Uma edição confiável é a de Samuel Eliot Morison (New York, Modern Library, 1967).

A experiência socialista em dose mínima teve no corpo da América o efeito de uma imunização homeopática. A arraigada ojeriza do povo americano às experiências coletivistas dura até os dias de hoje, malgrado as tentativas cíclicas de reintroduzi-las subrepticiamente por meio de manobras burocráticas que escapam ao controle do eleitorado, as quais terminam sempre no fracasso geral e no subseqüente retorno à constatação de Bradford: “Deus, na sua sabedoria, viu um outro rumo melhor para os homens.”

Há muita gente que, não gostando do socialismo, se curva de bom grado à sua pretensa necessidade histórica, sob a alegação de que o povo “precisa passar por isso” para aprender com a experiência. Uma das poucas coisas de que me gabo é nunca ter apelado a essa desculpa idiota para justificar meus erros. Adotei como divisa a máxima atribuída pelo povo gaiato ao ex-presidente Jânio Quadros — “Fi-lo porque qui-lo” — e, sem nada conceder ao fatalismo retroativo, considero-me o único autor de minhas próprias cacas (afinal, a gente tem de se orgulhar de alguma coisa na vida).

O problema com a experiência é a dose: a quantidade de veneno de cobra numa vacina não é a mesma da mordida real. O que educa não é propriamente a experiência, mas a rememoração meditativa depois dela. A condição para isso é que você saia da experiência vivo e não muito danificado. Uma coisa é a miniatura de socialismo numa colônia de peregrinos. Outra são décadas de ditadura socialista em extensões territoriais continentais como a da Rússia e a da China. O Brasil ainda não chegou a esse ponto, mas já passou muito além do limite em que a experiência pode ensinar alguma coisa em vez de lesar o aprendiz para sempre. O vício estatista e coletivista é muito antigo e pertinaz, a intromissão do Estado na economia é muito vasta e profunda para que se possa simplesmente parar tudo de uma hora para a outra e meditar sobre o fracasso da experiência. Nem se pode designar com esse nome o que já se tornou um estilo de vida, uma cosmovisão, uma religião, um imperativo categórico investido de fatalidade quase cósmica: um empresário brasileiro sem subsídio estatal se sente tão desamparado quanto um inglês sem guarda-chuva, um russo sem vodca ou um italiano sem mãe. Inversa e complementarmente, não chegou a ser uma experiência a tentação de capitalismo liberal do brevíssimo governo Collor, punida exemplarmente pelo superego estatista sob o pretexto de crimes jamais provados e abortada na gestão subseqüente pelo escândalo das pseudo-liberalizações monopolistas, que um presidente socialista, patrono da revolução no campo e membro de carteirinha da Internacional temporariamente disfarçado em adepto da liberdade econômica, forçou para dar a seus correligionários o pretexto que queriam para voltar correndo aos braços do Estado-babá.

A imersão do Brasil na poção miraculosa do estatismo já durou tempo demais para que um mergulho ainda mais profundo e duradouro possa valer como experiência didática, exceto no sentido em que é didático trancar-se numa jaula com um tigre faminto para averiguar se come gente.

Mas até essa advertência é tardia: já demos esse mergulho, já estamos dentro da jaula. O tigre já está lambendo os beiços. Os que quiserem esperar para só tirar conclusões quando ele começar a palitar os dentes não terão tempo para isso, pois estarão espetados no palito, reduzidos à condição de fiapos de si mesmos.

Não há covardia mais torpe que a covardia da inteligência, a burrice voluntária, a recusa de juntar os pontos e enxergar o sentido geral dos fatos. Toda a chamada “oposição” nacional é culpada desse pecado que terminará por matá-la. Não faltam aí políticos e intelectuais que protestem contra afrontas isoladas, mas não há um só que consinta em apreender a unidade estratégica por trás delas, clara e manifesta, no entanto, para quem tenha algum estudo, por modesto que seja, da técnica das revoluções sociais.

Muitos são os que se sentem insultados pela proposta indecente de cursos especiais para o MST em universidades públicas, com concessão de diploma superior e dispensa de exame escrito, tendo em vista o direito dos doutores ao analfabetismo, já consagrado como um mérito na pessoa do sr. presidente da República e em parte na do próprio ministro da Cultura (seja isto lá o que for). Mais ainda são os que se revoltam contra a obstinada impossibilidade de punir qualquer mandatário petista, mesmo com provas cabais de crimes incomparavelmente superiores ao de um juiz Lalau, de um Maluf e de um P. C. Farias, todos somados.

O que não percebem é que, em ambos os casos, se trata da aplicação de um mesmo princípio básico da estratégia revolucionária, que é a progressiva substituição do sistema de legitimidades vigente por um novo sistema fundado na solidariedade partidária mafiosa. Não se trata nem de sugar vantagens ocasionais para o MST, nem de proteger improvisadamente um criminoso vermelho de colarinho branco. Estas são apenas oportunidades para a aplicação do princípio. Ao postular abertamente vantagens ilícitas para seus protegidos ou festejar descaradamente a impunidade do corrupto-mor, o esquema esquerdista dominante está enviando à nação uma mesma mensagem, que os analistas de plantão podem não perceber, mas que cala fundo no subconsciente do povo e impõe, com a força do fato consumado, o império da nova lei. Traduzida em palavras, a mensagem diz: “A velha ordem constitucional acabou. O Partido-Príncipe está acima de todas as leis. Ele é a fonte única de todos os direitos e obrigações.”

Em todas as revoluções socialistas, essa mudança do eixo da autoridade é ao mesmo tempo o mecanismo básico e o objetivo essencial. Na Rússia, anos de boicote à administração oficial e de parasitagem das suas prerrogativas pelos sovietes antecederam a proclamação explícita de Lênin ao voltar do exílio: “Todo o poder aos sovietes”. Há décadas o MST, que tem uma estrutura e composição interna absolutamente idênticas às dos sovietes – não constituindo uma organização agrícola, mas um todo político-militar complexo, com especialistas em todas as áreas, do marketing à técnica de guerrilhas – já vem habituando a opinião pública a aceitar passivamente a sua cínica usurpação de direitos auto-legados, passando por cima da lei. Desde o instante em que o governo do sr. Fernando Henrique Cardoso – cúmplice consciente de um processo que ele conhece mais do que ninguém – aceitou alimentar com uma pletora de verbas públicas uma entidade legalmente inexistente, estava instaurado o direito à ilegalidade em nome da superior legalidade revolucionária. Destruindo voluntariamente a ordem estabelecida, o sr. Cardoso teria sido objeto de impeachment se sua pantomima de “neoliberal” não tivesse entorpecido as lideranças políticas e empresariais hipoteticamente direitistas, tornando-as insensíveis ao desmantelamento da ordem, porque era preferível que viesse “de um de nós” em vez do espantalho petista. Cardoso elegeu-se com o simples endosso da frase “Esqueçam o que eu escrevi”. Poucos meses depois, seu conluio com o MST trouxe a prova de que ele próprio não se esquecera de nada.

Com a ajuda de uma popularíssima novela da Globo, as invasões de terras foram então legitimadas: a entidade sem registro recebia o registro daquilo que roubava. Muito mais importante do que a posse das terras era, para o MST, essa imposição da sua vontade como força superior às leis. Era, já, a transferência tácita do poder aos sovietes.

As terras podiam não servir de grande coisa, excluída a sua posição estratégica ao longo das estradas, nem sempre boa para o plantio, mas apta a paralisar o país numa futura e talvez até desnecessária hipótese insurrecional. Usá-las para plantar jamais entrou em consideração exceto no mínimo suficiente para jogar areia nos olhos da opinião pública. A prova é que, transformado pelo roubo oficializado no maior proprietário de terras que já houve neste país, o MST não produz sequer o necessário ao sustento dos seus membros, que se nutrem de alimento muito mais substancioso: verbas públicas, direitos usurpados, ocupação do espaço aberto pela legalidade acovardada que recua.

Quanto à impunidade do sr. José Dirceu, é extensão lógica da transformação do STF em assessoria jurídica do Partido-Príncipe. Não é um improviso espertalhão: é um capítulo previsível da história da imposição do poder revolucionário pelos meios esquivos e anestésicos concebidos por Antonio Gramsci mais de sete décadas atrás. Desde 1993 venho tentando chamar a atenção do empresariado, das Forças Armadas dos intelectuais não comprometidos com o poder esquerdista para a obviedade da aplicação do esquema gramsciano não só pelo PT, mas pelo conjunto dos partidos esquerdistas aglomerados no Foro de São Paulo. Passo por passo, etapa por etapa, anunciei antecipadamente cada novo lance da implementação da estratégia. Em vão. Excetuando cinco ou seis homens sensatos que compartilharam imediatamente das minhas preocupações, mas cujo número e poder eram inversamente proporcionais ao mérito da sua coragem intelectual, a resposta que recebi foi sempre a mesma, vinda das mais variadas fontes. Neste país de gente pomposa e burra, o estudo mais extenso, o conhecimento mais preciso dos fatos, a descrição mais exata do seu encadeamento racional nada valem diante do apelo a um chavão tranqüilizante. Despediam-se do problema por meio do rótulo “teoria da conspiração” — e iam descansar seus traseiros gordos e suas consciências balofas no leito macio da traição passiva. Não perdôo ninguém: ricaços presunçosos, generais perfumados, senadores de musical pornô. E não me venham com patacoadas pseudo-evangélicas: Jesus ordenou perdoar as ofensas feitas a nós pessoalmente; jamais nos deu procuração para perdoar as ofensas feitas a terceiros, muito menos a uma nação inteira. Por isso lhes digo: vocês todos são culpados da degradação sem fim que este país está sofrendo. Tão culpados quanto qualquer José Dirceu. E nem falo daqueles que, percebendo claramente a debacle, se adaptaram gostosamente a ela, distribuindo medalhas a criminosos, subsídios a vigaristas, afagos a quem só não os mata porque não chegou a hora. Esses não pecaram por omissão: ao contrário, nunca agiram tanto. Alguns já colheram o fruto amargo da bajulação: foram esmagados sob o peso dos sacos que puxavam. Outros não perdem por esperar. Quando a injustiça se eleva ao estatuto de norma geral, ironicamente sobra sempre um pouco de justiça nos detalhes.

Mas, cavando um pouco mais fundo no estudo dos fenômenos acima apontados, descobre-se que a imposição cínica de direitos auto-arrogados não é nem mesmo um simples instrumento da estratégia de tomada do poder: é um traço constante e uniforme da mentalidade revolucionária, nascido muito antes de que esse instrumento fosse concebido por Lênin no contexto da via insurrecional e adaptado por Gramsci à estratégia capciosa da revolução anestésica.

Norman Cohn, em The Pursuit of the Millenium (Oxford University, 1961), assinala uma característica proeminente de certas seitas gnósticas medievais: seus adeptos sentiam-se tão intimamente unidos a Deus que se imaginavam libertos da possibilidade de pecar. “Isto, por sua vez, os liberava de toda restrição. Cada impulso que sentiam era vivenciado como uma ordem divina. Então podiam mentir, roubar ou fornicar sem problemas de consciência.”

Enquanto essas seitas se refugiavam em círculos estreitos de iniciados esotéricos, a pretensão de imunidade essencial ao pecado não passou de um delírio de auto-adoração grupal. Na entrada da modernidade, porém, como observou Eric Voegelin em The New Science of Politics (University of Chicago, 1952), essas seitas se exteriorizaram em poderosos movimentos de massas. Foi quando começou a Era das Revoluções. Transposta para a esfera da ação política, a autobeatificação permissiva deu origem à moral revolucionária que isenta o militante de todos os deveres morais para com a sociedade existente, santificando as suas mentiras e seus crimes em nome dos méritos de um estado social futuro que ele se autoriza a exibir desde o presente como salvo-conduto para praticar o mal em nome do bem.

Uma das primeiras manifestações dessa transmutação de uma falsa sabedoria esotérica em movimento revolucionário de massas foi, precisamente, a Revolução Puritana na Inglaterra. Nela já estão presentes todos os elementos da autobeatificação petista – e não só petista, mas esquerdista em geral, com especial destaque para a “teologia da libertação”: a absoluta insensibilidade moral aliada à reivindicação de méritos sublimes; a idealização do “pobre” como portador de uma sabedoria excelsa não apesar mas em razão de sua incultura mesma; a vontade férrea de impor seu próprio critério grupal de justiça acima de toda consideração pelos direitos dos outros; o mito da propriedade coletiva; a pseudomística de um Juízo Final terrestrializado e identificado com o tribunal revolucionário.

Pois bem, foram esses mesmos puritanos que, fracassado o intento revolucionário na Inglaterra, vieram criar seu simulacro de paraíso no Novo Mundo. A resistência da sociedade, que encontraram na Europa, ainda podia ser explicada como obstinação dos maus que não se rendiam à autoridade dos “Santos”. Mas o que os “Santos” encontraram do outro lado do oceano não foi nenhuma discordância humana: foi a resistência implacável da natureza material, a estrutura da realidade — ou, em linguagem teológica, a vontade de Deus. A ela souberam no entanto conformar-se, diante da segunda derrota, os teimosos puritanos. Trocando seu orgulho pela humildade que lhes ensinava o sábio Bradford, tornaram-se mansos e herdaram a Terra.

No Brasil, a soberba dos revolucionários, alimentada pela covardia geral e pela cumplicidade de muitos Cardosos, ainda vai levar muito tempo para se chocar de encontro aos limites da realidade. Comparadas as proporções entre a experiência dos puritanos e a deles, não é provável que isso aconteça sem uma dose de sofrimento superior àquela da qual pode resultar algum aprendizado.

Confirmando

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 11 de março de 2004

Duas semanas atrás, escrevi aqui que nada, exceto mudanças imprevisíveis do quadro internacional ou uma intervenção da vontade divina, abalaria o poder do PT. Nos dias seguintes, a eclosão do escândalo Waldomiro pareceu desmentir minhas palavras, mas, passadas duas semanas, revelou ser a mais cabal confirmação que elas poderiam esperar. Se algo esse acontecimento demonstrou, foi que: (1º.) o partido governante não tem a menor intenção de curvar-se às exigências morais e legais das quais se serviu durante uma década para destruir reputações, afastar obstáculos, chantagear a opinião pública e conquistar a hegemonia; (2º.) denúncias e acusações não têm a mínima condição de obrigá-lo a isso, porque não há força organizada para transformá-las em armas políticas como o PT fez com as denúncias contra Collor, Magalhães, Maluf e tutti quanti; (3º.) se por um motivo qualquer o PT cair em total descrédito e não tiver mais condições de governar, entrará em ação o Plano B: suicidar o governo alegando que falhou porque estava muito “à direita” e aproveitar-se da oportunidade para acelerar a transformação revolucionária do país, seja radicalizando a política oficial, seja reciclando o partido dominante por meio de expurgos e autocríticas, seja transferindo sua militância para outra e mais agressiva organização de esquerda.

Os condutores do processo terão nisso a colaboração servil e sonsa das oposições “de direita”, que, hipnotizadas pela ilusão de normalidade constitucional que criaram para se proteger do medo da realidade, ainda insistem em imaginar o adversário apenas como uma legenda partidária e não como uma estratégia revolucionária abrangente.

Na verdade, não é nem exato dizer que “o PT” está no poder. Quem está no poder é o “Foro de São Paulo”, entidade tentacular da qual o partido do sr. José Dirceu é apenas um dos braços. Os demais estão espalhados em outros partidos, incluindo PMDB e PSDB. O mais certo, para fins de diagnóstico, seria reconhecer logo a unidade estratégica por trás de tudo isso — o que não é nada difícil, basta ler as atas do Foro — e chamar o conjunto por um nome unificado, que pode ser o do velho PCB, Partido Comunista Brasileiro, ou qualquer outro.

Esse partido tem um exército de militantes, formados ao longo de quatro décadas de arregimentação, doutrinação e organização, treinados e prontos para, num instante, promover agitações em qualquer ponto do país, simulando mobilização espontânea da opinião pública ao ponto de a própria opinião pública acreditar nisso. Tem um segundo exército de reserva, constituído pelas massas de agitadores do MST, dispostos a matar e morrer para destruir os inimigos da revolução socialista. Tem uma vasta rede de espiões infiltrados em todos os escalões da administração estatal, bem como na mídia e em empresas privadas. Tem o apoio internacional armado das Farc, a mais poderosa organização militar da América Latina, e de outras entidades similares, todas ligadas de perto ou de longe ao banditismo organizado local. Tem uma rede de contatos na mídia européia e americana para lhe dar respaldo em qualquer campanha que mova contra quem quer que seja, tornando o infeliz, aos olhos do mundo, um virtual inimigo da espécie humana. Tem uma rede de ONGs milionárias, subsidiadas do Exterior, para dar um eficiente simulacro de legitimidade moral e respaldo social a qualquer palavra-de-ordem emanada do comando partidário. Tem uma fonte ilimitada de dinheiro, constituída pelo artifício do “dízimo” dado em troca de cargos públicos. E tem, agora, o controle da máquina fiscal e policial do Estado.

Perto disso, que são os partidos “de oposição”, senão castelos de geléia, trêmulos e prontos a desabar ao primeiro sopro do lobo petista?

Por não levar em conta esse estado de coisas, as opiniões que circulam na mídia sobre a atual situação brasileira são de uma irrealidade a toda prova. Treinados para lidar com as pequenas intrigas da política constitucional corriqueira, nossos “comentaristas”, “especialistas” e “politólogos” de plantão ficam inermes ante uma estratégia revolucionária continental que transcende infinitamente o seu horizonte de consciência. Exceto, é claro, aqueles que ajudaram a formular essa estratégia e têm interesse em evitar que ela seja objeto de exame. Por isso o chamado “debate nacional” é apenas uma troca de idéias fúteis entre a inconsciência e a desconversa.

Pobreza e grossura

Olavo de Carvalho

Bravo!, julho de 2000

Neste país você não pode pedir emprego e muito menos dinheiro emprestado a um conhecido sem que ele instantaneamente assuma ares paternais e comece a lhe dar conselhos, a ralhar com você chamando-o de irresponsável, leviano e miolo-mole. E dê graças a Deus de que ele o faça em tom bonachão e não transforme a humilhação sutil em massacre ostensivo. Finda a cena, ele sai todo satisfeito com a consciência do dever cumprido e considera-se dispensado de lhe arranjar o emprego ou o dinheiro. E você? Bem, você sai duro, desempregado… e culpado.

Esse mesmo sujeito é capaz de, na mesma noite, oferecer um jantar tomando o máximo cuidado para que a arrumação da mesa e a distribuição dos convidados obedeçam estritamente às regras da mais fina etiqueta.

Um indício seguro de barbarismo num povo é a atenção excessiva concedida aos sinais convencionais de boa educação e o desprezo ou ignorância dos princípios básicos da convivência que constituem a essência mesma da boa educação.

O bárbaro, o selvagem, pode decorar as regras e imitá-las na frente de quem ele acha que liga para elas. Mas não capta o espírito delas, não percebe que são apenas uma cartilha de solicitude, de atenção, de bondade, que pode ser abandonada tão logo a gente aprendeu o verdadeiro sentido do que é ser solícito, atencioso e bom.

Meu pai era um sujeito relaxado, que às vezes ia de pijama receber as visitas. Mas ele chamava de “senhor” cada mendigo que o abordava na rua, e sem que ele me dissesse uma palavra aprendi que o homem em dificuldades necessitava de mais demonstrações de respeito do que as pessoas em situação normal. Quanto mais respeitoso, mais cuidadoso, mais escrupuloso cada um não deveria ser então com um amigo que, vencendo a natural resistência de mostrar inferioridade, vem lhe pedir ajuda! Esta regra elementar é sistematicamente ignorada entre as nossas classes médias e altas, principalmente por aquelas pessoas que se imaginam as mais cultas, as mais civilizadas e – valha-me Deus! – as mais amigas dos pobres.

Fico horrorizado quando vejo alguém enxotar um flanelinha como se fosse um cachorro, e nunca vi alguém fazê-lo com a desenvoltura, o aplomb, a consciência tranqüila de um intelectual de esquerda! Nos anos 60, corria o dito de que ajudar os pobres individualmente era “alienação burguesa”, ópio sentimental, sucedâneo da revolução salvadora. Passaram-se quarenta anos, a revolução salvadora não veio (onde veio, os pobres ficaram mais pobres ainda) e duas gerações de necessitados apertaram ainda mais os cintos em homenagem à prioridade da revolução. Mas não conheço um só militante comunista do meu tempo e do meu meio que não esteja com a vida ganha, que não ostente como um sinal de maturidade triunfante a segurança financeira adquirida graças ao apadrinhamento da máfia política que, até hoje, domina o mercado de empregos na imprensa, na publicidade, no ensino superior e no mundo editorial.

Hoje não precisam mais do pretexto revolucionário para enxotar flanelinhas. Seu discurso tornou-se palavra oficial, as prefeituras e governos estaduais nos advertem, em cartazes piedosos, para não dar esmolas. Sim, a caridade individual está em baixa. Os frutos da bondade humana não devem ir direto para o bolso do necessitado: devem ir para as ONGs e os órgãos públicos, sustentando funcionários e diretores, financiando movimentos políticos, pagando despesas de aluguel, administração, publicidade e transporte, para no fim, bem no fim, se sobrar alguma coisa, virar sopa dos pobres, diante das câmeras, para a glória de São Betinho.

Há quem neste país tenha nojo da corrupção oficial. Pois eu tenho é da caridade oficial.

Ainda há quem diga: “Mas se você dá dinheiro o sujeito vai beber na primeira esquina!” Pois que beba! Tão logo ele o embolsou, o dinheiro é dele. Vocês querem educar o pobre “para a cidadania” e começam por lhe negar o direito de gastar o próprio dinheiro como bem entenda? Querem educá-lo sem primeiro respeitá-lo como um cidadão livre que atormentado pela miséria tem o direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um banqueiro falido? Querem educá-lo impingindo-lhe a mentira humilhante de que sua pobreza é uma espécie de menoridade, de inferioridade biológica que o incapacita para administrar os três ou quatro reais que lhe deram de esmola? Não! Se querem educá-lo, comecem pelo mais óbvio: sejam educados. Digam “senhor”, “senhora”, perguntem onde mora, se o dinheiro que lhes deram basta para chegar lá, se precisa de um sanduíche, de um remédio, de uma amizade. Façam isso todos os dias e em três meses verão esse homem, essa mulher, erguer-se da condição miserável, endireitar a espinha, lutar por um emprego, vencer.

Na verdade, a barreira que impede o acesso de pobres e mendicantes brasileiros a uma vida melhor é menos econômica que social. Façam um teste. Quanto custa um frango? Assado, com farofa. Cinco reais no máximo, em geral menos. Quer dizer que um mendigo, pedindo esmola em qualquer das grandes capitais do Brasil, pode comer pelo menos um frango por dia, se não dois, e ainda lhe sobra o dinheiro da condução. Para você fazer uma idéia de quanto um país onde isso é possível é um país rico e generoso, tente esta comparação. Quando Franklin D. Roosevelt lançou o New Deal, um dos objetivos principais do ambicioso plano econômico foi assim anunciado pelo rádio: “Assegurar que cada família deste país tenha em sua mesa um frango por semana.” Ouviram bem? Um frango por semana para quatro ou cinco pessoas. Na época pareceu um ideal quase utópico. Pois bem: estamos numa terra onde velhas desamparadas que se arrastam pelas ruas comem um frango por dia, onde os meninos de rua pedem esmola em frente ao McDonald’s para completar o preço de um BigMac com fritas de três em três horas, onde os bebês famintos exibidos pelas mães em prantos usam fraldas descartáveis, onde as casas dos bairros miseráveis têm antenas parabólicas e os catadores de lixo se comunicam com seus sócios por telefones celulares.

Em contrapartida, façam outro teste: peguem um sujeito sujo e esfarrapado, encham-no de dinheiro e façam-no entrar numa loja de roupas – não digo uma loja elegante, mas qualquer uma — para comprar um terno. Será enxotado. E, se gritar: “Eu tenho dinheiro!”, vai terminar na polícia, com holofote na cara, tendo de se explicar muito bem explicadinho, isto se não for obrigado a escorregar “algum” para a mão do sargento.

O mesmo pobre que pode comer um frango por dia tem de comê-lo na calçada, com os cães, porque não tem acesso aos lugares reservados aos seres humanos. Está certo que você, gerente do restaurante, fique constrangido de botar um sujeito estropiado e fedido no meio dos seus clientes distintos. Mas não vê que mandá-lo comer na rua é mais falta de educação ainda? Pelo menos dê-lhe de comer num cantinho discreto, converse com ele sobre as dificuldades da vida, ofereça-lhe uma camisa, uma calça. Seja educado, caramba! Pois se você, que está bem empregado e bem vestido, tem o direito de ser grosso, que primores de polidez pode esperar do pobre? Se um dia, cansado de levar chutes, ele o manda tomar naquele lugar, não se pode dizer que esteja privado do senso das proporções. E não me venha com aquela história de “Se eu tratar bem um só mendigo, no dia seguinte haverá uma fila deles na minha porta”. Isso pode ser verdade em casos isolados, mas não no cômputo final: se todos os restaurantes tratarem bem os mendigos, logo haverá mais restaurantes que mendigos. Conte os mendigos e os restaurantes da Avenida Atlântica e diga se não tenho razão. Isto sem que entrem no cálculo os bares e padarias.

O brasileiro de classe média e alta está virando uma gente estúpida que clama contra a miséria no meio da abundância porque cada um não quer usar seus recursos para aliviar a desgraça de quem está ao seu alcance, e todos ficam esperando a solução mágica que, num relance, mudará o quadro geral. Sofrem de platonismo à outrance: crêem na existência de um geral em si, dotado de substância metafísica própria, independente dos casos particulares que o compõem.

Por isso é que quando a propaganda do Collor inventou aquela coisa de “Não votem em Lula porque ele vai obrigar cada família de classe alta a adotar um menino de rua”, eu me disse a mim mesmo: “Raios, se isso fosse verdade eu ficaria satisfeito de votar no Lula.” Só acredito é em gente ajudar gente, uma por uma, não na mágica platônica das “mudanças estruturais”, pretexto de revoluções e matanças que resultam sempre em mais pobreza ainda.

Na verdade, quem acredita nelas erra até ao dar nome ao problema geral. Quando, revoltados ante a desgraça do povo brasileiro, gritamos: “Fome!”, algo está falhando na nossa percepção da realidade social. No mais das vezes, o que falta não é comida, não é dinheiro: é as pessoas compreenderem que a pobreza não é um estigma, não é uma desonra, é uma coisa que pode acontecer a qualquer um e da qual ninguém se liberta só com dinheiro, sem o reforço psicológico de um ambiente que o ajude a sentir-se novamente normal e, em suma, um membro da espécie humana.

Entre as causas culturais da pobreza, a principal não está nos pobres: está na falta de educação dos outros.

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