Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 11 de abril de 2002
Que idéia poderia fazer das obras de Shakespeare aquele que as concebesse como mero fato lingüístico, fazendo total abstração das qualidades que as tornam dignas de atenção? Que conhecimento teria da realidade de S. Francisco e de Hitler aquele que os apreendesse somente como dados históricos, deixando totalmente de lado as qualidades que a nossos olhos tornam o primeiro amável e o segundo temível?
Tal é a idéia que faz da espécie humana o pensador que acredita poder concebê-la somente como fato da natureza, omitindo por completo o valor que, a seus próprios olhos, tem a sua condição pessoal de homem e não de bicho. A idéia do homem como puro animal é apenas uma analogia, uma figura de linguagem para uso em determinados grêmios profissionais, e não um conceito rigoroso obtido da experiência. Nenhum ser humano pode, com efeito, gabar-se de ter tido jamais a experiência concreta de um seu semelhante como animal puro e simples, abstraído das qualidades que tornam a sua vida mais digna de ser preservada do que, por exemplo, a de um sapo. Esse homem-animal é mera suposição imaginativa, obtida por exclusão mental de traços que, na experiência, vêm sempre inclusos e jamais faltantes. Ele é, admito, o homem da biologia, mas a biologia não tem a mínima autoridade para decretar que esse é o homem real, já que ela começa, precisamente, por excluir dele, considerado enquanto seu objeto de estudo, tudo o que não possa reduzir-se de algum modo à animalidade, e nenhuma ciência tem meios legítimos para se pronunciar sobre aquilo que a priori, e na sua definição mesma, está excluído do seu domínio de observação estrita. Mesmo quando, atendo-se rigorosamente aos limites do seu campo, ela aí encontre ou pretenda encontrar algum princípio de “explicação” para aquilo que está para além dele – como por exemplo a etologia “explica” certas condutas humanas a partir de condutas animais -, essa explicação jamais terá, logicamente falando, validade cognitiva superior à de uma simples analogia, de uma similitude às vezes bem longínqua e forçada.
Um exemplo característico são as teorias que pretendem explicar as guerras humanas pela agressividade animal, sem ter em conta o fato bem conhecido de que a emoção dominante do soldado em batalha não é a raiva e sim o medo – um medo que, no animal, o faria fugir em desabalada carreira em vez de avançar como o soldado humano, impelido pelo medo maior da corte marcial, da desonra, do castigo infernal ou de qualquer outro malefício abstrato completamente estranho às motivações do mais sutil dos leopardos ou do mais genial dos orangotangos.
Sim, a dura verdade é que muitos homens de ciência, ou pensadores que tomam da palavra em nome da ciência – e, entre eles, justamente aqueles que hoje em dia mais freqüentemente representam a autoridade do consenso científico nos debates públicos – estão num nível de pensamento deploravelmente primitivo, fetichista, não são sequer capazes de distinguir o concreto do abstrato, e, tirando conclusões de recortes abstrativos projetados pela sua própria mente sobre as coisas, acreditam piamente estar raciocinando sobre as coisas mesmas.
A brutal imperfeição epistemológica, a quase irracionalidade dos fundamentos cognitivos da maior parte das ciências hoje em dia contrasta miseravelmente com o volume de dados que manipulam e com a finura dos procedimentos operacionais de formalização – uma racionalidade menor e secundária – com que os articulam.
Nenhuma acumulação de dados, nenhum aperfeiçoamento lógico-formal da teoria aumentará de um átomo de validade epistemológica um edifício teórico erguido sobre conceitos imaginários, hipotéticos ou puramente convencionais.
Qualquer homem de ciência sério conhece os limites estritos do campo de validade a que podem se estender suas conclusões, mas a mosca azul dos debates públicos faz com que poucos resistam à tentação de extrair cosmovisões inteiras – se não teologias inteiras – de uns quantos dados zoológicos, genéticos ou astrofísicos.
Nenhuma ciência pode estar segura de apreender algo da “realidade” como tal quando não tem plena consciência do encaixe entre o seu domínio estrito e o mundo circundante da experiência humana direta, e esse encaixe, em cada uma das ciências conhecidas, é perfeitamente problemático, se não totalmente desconhecido.
E, se esses homens têm dificuldade até em compreender as limitações dos conceitos de base das próprias ciências que praticam, com quanto maior inabilidade não hão de manejar os conceitos muito mais abrangentes e abstratos da ontologia, da metafísica ou da teologia?