Em 4 de fevereiro de 2012 / Artigos
Olavo de Carvalho
Mídia Sem Máscara, 4 de fevereiro de 2012
Num post dedicado a exaltar a memória do filósofo britânico Sir Michael Dummett (1925-2011), o sr. Júlio Lemos aproveita a ocasião para sublinhar a diferença entre os pensadores mais afins à literatura e às ciências humanas e aqueles que se inspiram antes na lógica matemática, na física e, de modo geral, nas chamadas “ciências duras” (v. http://www.dicta.com.br/michael-dummett-1925-2011/). Ele rotula os dois grupos, respectivamente, de “cigarras mágicas” e “formigas engenheiras”, ressaltando que somente estas fazem trabalho sério. O desprezo com que o sr. Lemos fala do outro grupo leva-me a esperar que ele nos brinde com a publicação das suas grandes e inexistentes obras de filosofia, infundindo assim alguma razão de ser no seu sentimento de superioridade ante Georg Simmel, Karl Jaspers, Benedetto Croce, Xavier Zubiri, Eric Voegelin e outros tantos incapazes de elevar-se às alturas da exatidão matemática que ele exige de um filósofo para admiti-lo entre os santos da sua devoção.
Curiosamente, ele coloca entre estes últimos o autor do Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein, que se notabilizou pelo seu ódio insano à ciência, que ele considerava a raiz de todos os males modernos, e pela precariedade dos conhecimentos de matemática e lingüística com que se meteu a enfrentar os problemas da linguagem filosófica. Ninguém melhor que Wittgenstein se enquadra na categoria das “cigarras mágicas” que, segundo o sr. Lemos, “defenderam teorias grandiosas, capazes de explicar tudo — e por isso inspiraram uma fidelidade quase religiosa”. Nada poderia ilustrá-lo mais claramente do que a indignação histérica, intolerante, com que o próprio sr. Lemos e outros devotos reagem ante qualquer coisa que se diga contra o personagem.
Também é um tanto cômico que o sr. Lemos, após sua apologia das “formigas engenheiras” da escola analítica e similares, prodigalize elogios a Michael Dummet por haver trazido de volta “os problemas (filosóficos) realmente importantes: a natureza do ser, Deus, o livre arbítrio, as ‘leis lógicas’ do pensamento, os limites do conhecimento”. Com exceção dos dois últimos, esses foram precisamente os problemas que os analistas lógicos fizeram o possível para excluir da lista das preocupações filosóficas. Se algum mérito não se pode negar a Dummet foi justamente o de voltar o feitiço contra os feiticeiros, adaptando os métodos deles ao tratamento de questões que eles rejeitavam (ainda que não alcançasse nisso nenhum resultado espetacular).
Muito menos creio que o amor devoto às “formigas engenheiras” seja um sentimento homogêneo que se possa estender uniformemente a todas elas, como parece sugerir o sr. Lemos. Não tem cabimento, por exemplo, admirar por igual Ludwig Wittgenstein (supondo-se que seja realmente uma “formiga”) e Gottlieb Frege. Quando este tentou ler o Tractatus, confessou que não conseguia ir além das primeiras páginas, porque nada daquilo fazia o menor sentido. Se lesse um pouco mais, encontraria trechos que faziam muito sentido, já que tinham sido praticamente copiados de suas próprias obras – sem menção à fonte, como era do hábito de Wittgenstein.
Qualquer que seja o caso, o deslumbramento ante as sutilezas da lógica e especialmente da lógica matemática é, por si, prova de imaturidade filosófica. Embora algum estudo dessas disciplinas seja indispensável, a contribuição delas à grande filosofia é bem irrisória. O próprio criador da ciência lógica, Aristóteles, fez pouquíssimo uso dela em suas investigações, preferindo a confrontação dialética, tecnicamente inferior porém mais rentável como logica inventionis, “lógica da descoberta” em oposição à lógica da prova. No século XX, Arthur N. Whitehead foi autor, com Bertrand Russell, de um dos mais importantes tratados de matemática de todos os tempos. Quanto disso se reflete na sua obra filosófica máxima, Process and Reality? Quase nada. Susanne K. Langer começou a carreira escrevendo uma introdução à lógica matemática, mas alcançou o cume da sua especulação filosófica com estudos de arte e simbolismo que nada devem a isso. Ademais, como assinalou Mário Ferreira dos Santos, muitas aparentes conquistas da lógica matemática moderna já estavam formuladas – e várias delas impugnadas – nas obras dos grandes escolásticos, especialmente ibéricos. Maravilhar-se diante de Russell e Wittgenstein sem ter dedicado alguns anos à lógica medieval é uma espécie de provincianismo histórico que denota antes devoção à moda do que qualquer seriedade intelectual. Se o amor às matemáticas fosse prova de honestidade, como julga o sr. Lemos, as grandes fraudes financeiras seriam quase impossíveis.
Aliás o que me libertou da admiração juvenil às “formigas” foi o haver constatado a freqüência com que os cultores da “exatidão analítica” incorriam em bobagens pueris sempre que abandonavam o terreno seguro do formalismo lógico, acessível a qualquer nerd filosófico com algum talento matemático, e se aventuravam em questões substantivas da realidade humana e histórica, que exigem cultura, maturidade, honestidade e bom senso. Wittgenstein, sem ser doutrinariamente comunista, deixou-se hipnotizar pelo sex-appeal de Stálin ao ponto de querer emigrar para a URSS (desistindo quando a oportunidade se materializou). Bertrand Russell, que um dia propusera singelamente o bombardeio atômico preventivo da URSS, terminou seus dias como advogado dos vietcongues, passando da direita à esquerda sem nada perder da babaquice originária. Hans Reichembach foi bobo ao ponto de servir de garoto-propaganda para os ativistas estudantis da Universidade da California.
Por duas vezes a filosofia tentou transformar-se numa profissão acadêmica altamente técnica: na escolástica medieval e no meio universitário anglo-saxônico do século XX. Nos dois casos um começo promissor foi seguido de uma queda duradoura na mais acachapante esterilidade. Qual seria, então, o mérito excelso das “formigas engenheiras” se não o de parasitar o prestígio popular das ciências, fonte aliás de tantos desastres filosóficos? Sem contar o fato de que, ao menos na América, o predomínio da escola analítica nas universidades não se deveu a nenhuma superioridade intelectual, mas à politicagem pura e simples, da qual foram vítimas, entre outros, Eugen Rosenstock-Huessy, William Barrett e Richard Rorty.
Definitivamente, Harry Redner estava certo ao afirmar que o aperfeiçoamento da razão formal muitas vezes se faz em prejuízo da razão substantiva.
Mas o sr. Lemos, cuja filosofia tem a admirável qualidade de jamais ter existido, não pode ser acusado de parasitar ciência nenhuma. Nem mesmo de parasitar os parasitas. Tudo o que ele faz é macaquear-lhes a pose, acreditando que isto lhe confere autoridade para roer, de passagem, o prestígio alheio. Mais precisamente, o meu. Entre as ocupações de segunda ordem que, segundo ele, marcam os filósofos indignos de admiração, encontra-se a de “denunciar conspirações no seio do Foro de São Paulo”. Como não há na praça nenhum outro autor de livros de filosofia que tenha feito algo do gênero, é evidente que ele se refere à minha pessoa, embora, como bom poltrão que é, prefira fazê-lo por meio de uma indireta sem nome de destinatário. (Duplamente poltrão, aliás, já que, após esse sussurro de fofoqueiro, se apressou em suprimir retroativamente a menção ao Foro de São Paulo, tornando a insinuação ainda mais vaga e evanescente.)
Ao mesmo tempo, ele elogia Dummet por sua luta contra a discriminação racial, entendendo, naturalmente, que juntar mais uma voz ao coro universal da mídia, em prol de uma causa desprovida de inimigos intelectualmente significativos, é mérito superior ao de denunciar, sozinho e contra todos, a aliança de revolucionários e narcotraficantes que, sob a proteção do silêncio geral, chegou a dominar todo um continente. Nem com muita lógica matemática será possível dar algum arremedo de fundamento à hierarquia de valores aí subentendida.
Logo em seguida, ainda sem citar nomes, o sr. Lemos reincidiu no vício das intrigas de comadre. Baseado no fato de que eu mencionasse a fascinação de Wittgenstein pela ditadura estalinista e, de passagem, aludisse também à sua afeição pelas meditações budistas, disse ser altamente vergonhoso que “uma figura bem conhecida” atribuísse ao filósofo, ao mesmo tempo, convicções socialistas e budistas. Nunca afirmei que Wittgenstein fosse socialista. Mesmo que ele o fosse, não há contradição nenhuma entre socialismo e budismo, já que o próprio Dalai-Lama, vítima de perseguição comunista, se derrama em loas ao marxismo, com notável despudor. De um lado, o que eu disse foi que Wittgenstein tinha sido um entusiasta do estalinismo em particular, sem nenhum compromisso explícito com o pensamento marxista em geral. Colaborando com o sr. Lemos, um garoto intrometido veio, em mensagem ao fórum do Seminário de Filosofia, esfregar na minha cara o argumento de que Wittgenstein era tão pouco simpático ao regime soviético que chegara a recusar duas belas ofertas de emprego acadêmico na Universidade de Kazan. E, dizendo isso, brandia diante do meu nariz a biografia do filósofo por Ray Monk, livro que ele obviamente não lera, pois se o lesse saberia que o governo da URSS fizera os convites a Wittgenstein por julgar constrangedor e um tanto suspeito que o filósofo, no seu entusiasmo romântico pela sociedade soviética, se oferecesse para fazer lá humildes trabalhos voluntários, sendo este também o motivo pelo qual ele veio a recusar em seguida as ofertas lisonjeiras. Saberia também que, segundo Monk, o amor de Wittgenstein ao regime estalinista era tão intenso que não arrefeceu nem mesmo diante dos escandalosos Processos de Moscou, que provocaram a primeira onda de defecções no movimento comunista internacional. De outro lado, as analogias entre a filosofia de Wittgenstein e o zen-budismo são tão patentes que chegaram a inspirar um livro inteiro do mais famoso escritor zen-budista americano, Alan Watts (livro para o qual escrevi um prefácio, indevidamente laudatório a Wittgenstein, anos antes de o sr. Lemos ter nascido; como se vê, o wittgensteinismo é uma espécie de sarampo filosófico, ao qual eu mesmo não escapei na idade apropriada). Que há diferenças também, não é preciso dizer, já que analogia, por definição, é síntese de semelhanças e diferenças.
Por desprezíveis e covardes que sejam essas fofoquinhas, nas quais o sr. Lemos imagina ver provas de grande honestidade intelectual, elas não vieram desacompanhadas. Quase ao mesmo tempo, um colega dele, o sr. Eduardo Wolff, publicou no Facebook um post no qual informa a seus estupefatos leitores que fui “internado em manicômio, com camisa de força e tudo”. Enquanto aguardo do sr. Wolff novos e emocionantes detalhes quanto a esse capítulo desconhecido da minha biografia, pergunto-me se esses sujeitos realmente não enxergam que aquilo que fazem é apenas sintoma da miséria intelectual e moral brasileira. Será que querem mesmo arrancar suas máscaras provisórias de intelectuais respeitáveis e exibir-se ao mundo como os mexeriqueiros subginasianos que sempre foram e sempre serão?
Mas, no fundo, nada tenho contra o vício ou obsessão anti-olavista que leva tantas pessoas a dar a tapa as suas bisonhas carinhas. Com críticos desse calibre, que se desmoralizam a cada palavra que esboçam, a impressão que fica é que o Olavo de Carvalho é inatacável, lindo, um santo ou profeta iluminado no qual só loucos e idiotas poderiam enxergar alguma imperfeição. Não há dinheiro que pague o benefício imerecido que essa gente me faz. Mil puxa-sacos juntos não me elevariam a tais alturas.