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Ato de rotina

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de janeiro de 2011

Quem não sabia, com meses de antecedência, que o Sr. Luiz Inácio iria jogar todo o peso da sua autoridade de presidente numa última cartada espetacular em favor do terrorismo internacional? Quem não sabia que Cesare Battisti, ao fugir para o Brasil, escolhera o melhor lugar do mundo para tipos como ele, o porto seguro, o abrigo infalível de terroristas e narcotraficantes?

“Quem não sabia?” Que pergunta mais idiota. Eu sabia, meus colegas e leitores do Diário do Comércio sabiam, a parcela ínfima da população brasileira que se mantém informada sabia e, é claro, a turma do Foro de São Paulo sabia.

O resto da humanidade ignorava-o por completo. Esperava de Lula outra atitude, simetricamente inversa, compatível com a imagem estereotipada de estadista sereno e pragmático que a mídia internacional forjou para torná-lo atraente aos investidores.

De toda parte, as reações indignadas ao gesto de solicitude paternal do nosso ex-presidente para com um notório terrorista e assassino vieram com aquela expressão de surpresa e desencanto do marido enganado que, até a véspera, confiava cegamente na esposa.

Definitivamente, ninguém na grande mídia ou nos altos círculos da Itália, de qualquer outro país europeu ou dos EUA tem ou quer ter a menor idéia de quem é Luís Inácio Lula da Silva.

Sem a mais leve pretensão de infundir nas cabeças dessas mimosas criaturas um conhecimento que não desejam, do qual fogem como da peste, assinalo aqui alguns lances memoráveis do curriculum vitae do ex-presidente:

1. Ele teve como seu constante mentor espiritual, desde a juventude até a velhice, o ex-frade Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, colaborador fiel do governo de Fidel Castro e co-autor da Constituição Cubana. Jamais renegou o guru.

2. Logo após a queda da URSS, nosso personagem aderiu ao lema “reconquistar na América Latina o que perdemos no Leste Europeu” e para isso fundou em 1990 e presidiu por doze anos o Foro de São Paulo, coordenação estratégica do movimento comunista na América Latina, irmanando num plano estratégico abrangente partidos legais e organizações criminosas. Em comunicado oficial no décimo-quinto aniversário do Foro, as Farc, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, reconheceram que essa iniciativa salvara da extinção iminente o movimento comunista internacional.

3. Ao eleger-se presidente, fingiu afastar-se do Foro de São Paulo mas continuou extra-oficialmente no comando da entidade por intermédio de seus ministro Marco Aurélio Garcia e de seu assessor de imprensa Gilberto Carvalho.

4. Jurando não ter tido jamais qualquer contato com as Farc, ele presidiu assembléias do Foro ao lado do comandante da narcoguerrilha colombiana, Manuel Marulanda, e permitiu que membros do seu governo, junto com figuras estelares do seu partido, se associassem ao mesmo Marulanda na direção da mais importante revista de debates internos do movimento comunista no continente, “America Libre”.

5. Durante seu governo, muitos concorrentes e dissidentes das Farc foram perseguidos e presos no Brasil, enquanto os agentes da organização continuavam operando livremente no território nacional, não só distribuindo drogas, mas fornecendo armas e treinamento a quadrilhas de bandidos locais e aos militantes do MST, protegidos do governo. Quando o representante das Farc no país, Olivério Medina, foi preso pela Polícia Federal, o partido e o governo de Lula se mobilizaram imediatamente para libertá-lo, dando-lhe, de quebra, a cidadania brasileira e um emprego oficial para sua esposa no ministério então chefiado pela atual presidente da República, Dilma Rousseff (esta negou ter qualquer envolvimento no caso, até que sua assinatura no decreto de nomeação fosse publicada na imprensa). O único militante farqueano que permaneceu preso no Brasil foi Juan Carlos Ramirez Abadia. Esta exceção aparentemente misteriosa explica-se porque o referido, agindo evidentemente à margem das Farc, se envolveu num plano para seqüestrar o filho de Lula, Luís Cláudio (v. http://www.eltiempo.com/justicia/chupeta-frustro-plan-de-secuestro-de-hijo-de-lula_8731901-4).

6. O governo Lula sempre rejeitou o pedido colombiano de aplicar às Farc o qualificativo oficial de “organização terrorista”, propondo, ao contrário, que a quadrilha de narcotraficantes fosse premiada por seus crimes mediante a anistia geral e a transmutação da coisa em partido político legal.

7. Em dois discursos oficiais, publicados no site da Presidência da República mas jamais noticiados por qualquer órgão de mídia no Brasil, ele confessou a interferência direta do Foro e de São Paulo e dele próprio na política interna da Venezuela e de outros países, para colocar e manter no poder tipos como Hugo Chávez, Morales e tutti quanti.

8. É verdade que, no campo econômico, Lula se comportou direitinho e fez tudo quanto o Banco Mundial mandou. Mas só agiria de outro modo se fosse louco. Se o próprio Lênin fez o diabo para acalmar e seduzir os investidores internacionais enquanto consolidava o poder interno dos comunistas na Rússia, por que haveria Lula de entrar em guerra com o capitalismo planetário enquanto ia discretamente ajudando a entregar aos agentes do Foro de São Paulo o controle de várias nações latino-americanas? A tática da dupla face funcionou tão bem que, numa mesma semana, ele foi homenageado pelo Foro Econômico de Davos por sua adesão ao capitalismo e no Foro de São Paulo por sua fidelidade ao comunismo. Os que agora explodem de cólera ante a proteção que ele deu a Césare Battisti só conhecem, decerto, a primeira face. Por isso vêem nessa decisão obscena uma exceção repentina, incoerente, aberrante, inexplicável. Quem conhece a segunda entende que foi um ato de rotina, o último de uma longa série. Incoerência é uma coisa, duplicidade é outra.

Publicado com o título “Um ato de rotina”

Cale a boca, farsante

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de fevereiro de 2009

Em entrevista divulgada pela agência Carta Maior, José Luís Del Roio, 65, brasileiro transfigurado em senador na Itália pelo Partido da Refundação Comunista entre 2006 e 2008, protesta contra a insistência do governo italiano em obter a extradição de Cesare Battisti: “O Brasil não pode entregar um homem inofensivo a um governo fascista”, diz ele. Del Roio adverte que o governo Berlusconi está trazendo o fascismo de volta à Itália e tentando criminalizar como terroristas os heróis da luta revolucionária comunista.

A imaginação popular está tão bem adestrada na deformação gramsciana do senso das proporções, que poucas pessoas notam o grotesco da situação quando um comunista adverte contra os perigos do fascismo italiano. Como o leitor pode observar no meu artigo anterior, o regime de Mussolini nem mesmo entra na lista dos poderes genocidas que marcaram o século XX como a etapa mais sangrenta da história humana – lista na qual os governos comunistas da URSS e da China são responsáveis por mais da metade do total dos assassinatos em massa praticados por autoridades estatais contra suas próprias populações civis.

Os comunistas são os mais freqüentes usuários do termo “fascista” para queimar a reputação dos seus adversários, mas eles sabem perfeitamente bem que lhes falta por completo a mais mínima autoridade moral para isso, não só pelo fato de que o uso monstruosamente elástico que dão ao termo acaba por esvaziá-lo de qualquer sentido identificável, rebaixando-o a mera expressão subjetiva de ódios irracionais, mas também porque, comparado aos feitos homicidas do comunismo, o fascismo italiano, por mais repugnante que seja em si mesmo, começa a parecer um hotel de cinco estrelas. A desproporção entre as culpas do acusador e as do acusado é tamanha, que a única resposta cabível ao sr. Del Roio é: Cale a boca, farsante. Todo comunista, e o sr. Del Roio não constitui exceção, é cúmplice moral dos crimes mais hediondos já praticados contra a espécie humana, e está, por definição, excluído do rol das pessoas decentes cuja opinião merece ser ouvida com atenção e respeito.

A distância entre o governo Berlusconi e o fascismo é uma coisa tão óbvia que só uma mente deformada não consegue enxergá-la. Para o sr. Del Roio, porém, o mero sentimento de incomodidade que afeta os italianos quando vêem a imigração usada como instrumento de ocupação cultural já é uma prova inequívoca de “fascismo”. Mas mesmo que o gabinete Berlusconi estivesse repleto de camisas-negras e cantasse “Facceta nera” no início de todas as suas sessões, sua periculosidade seria quase nula em comparação com as tradições que o próprio sr. Del Roio representa. Nessas condições, a simples disposição de discutir as opiniões dessa criatura num jornal respeitável já é, de certo modo, corromper a opinião pública, cegando-a para os verdadeiros termos da equação em jogo. Nenhum comunista tem o direito moral de falar em “liberdade”, “direitos humanos” e coisas dessa ordem – nem mesmo quando, na falsidade geral do quadro que ele impinge ao público, alguns fatos se destacam como verdades isoladas. Mas na entrevista do sr. Del Roio não há nem mesmo verdades isoladas. Ele considera um escândalo, por exemplo, que o governo italiano tente neutralizar velhos conflitos históricos recusando-se a endossar a distinção maniqueísta que transforma todos os fascistas em demônios e todos os partiggiani comunistas em heróis angélicos. Como militantes comunistas, os partiggiani carregavam nas costas mais crimes de assassinatos em massa do que Mussolini ousaria sequer imaginar. Se, no contexto local e momentâneo, lutavam ao lado de democratas sinceros contra um regime autoritário, isto não faz deles “combatentes pela liberdade”, mas apenas aproveitadores que tentaram se utilizar de uma aliança com os democratas para substituir o mero autoritarismo de Mussolini pelo totalitarismo de Stalin. Não há mérito nenhum nisso. Há apenas hipocrisia e cinismo, exatamente como nos terroristas brasileiros pagos e treinados por Fidel Castro para trocar o autoritarismo brando e hesitante dos nossos militares por um regime de feição cubana, com um agente da polícia secreta para cada 28 habitantes.

Quando a agência Carta Maior divulga a entrevista do sr. Del Roio sem dar ao leitor a mínima idéia do contexto histórico em que se inserem as suas palavras, ela faz propaganda comunista e desinformação. Não discuto, por demasiado cínica, a tentativa que o entrevistado faz de classificar o autor de quatro assassinatos como “homem inofensivo”. Nem discuto a comparação que ele monta entre Cesare Battisti e os governantes estrangeiros exilados no Brasil, Marcelo Caetano e Alfredo Stroessner. No caso deste último, a comparação, embora juridicamente despropositada, é quase justa do ponto de vista moral. No de Marcelo Caetano, que jamais foi um ditador, mas apenas herdeiro acidental de uma ditadura que ele tentou abrandar por todos os meios, é totalmente absurda. Mas, nos dois casos, equalizar chefes de Estado com um assassino já condenado pela justiça é obviamente capcioso. Nenhum desses dois políticos estava condenado com sentença transitada em julgado, que é precisamente o caso de Battisti – um homem que seus próprios companheiros de militância repelem como assassino feroz indigno de piedade.

No mesmo momento em que a Carta Maior espalha a mensagem do sr. Del Roio como se fosse uma defesa sincera dos direitos humanos, começa em Phnom Penh o primeiro julgamento de um genocida comunista – um dos líderes do Khmer Vermelho –, com meio século de atraso e sem a mais mínima repercussão na mídia internacional. O esforço pertinaz da classe jornalística em toda a parte para ocultar os crimes comunistas sob espantalhos de ocasião como o fascismo italiano ou o ex-ditador chileno Augusto Pinochet é, em si mesma, um crime contra a humanidade. Mas esse crime já se tornou tão rotineiro que já ninguém mais o percebe como tal.

O segredo de um terrorista

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de janeiro de 2009

Muitos se escandalizam com o asilo político concedido ao assassino Cesare Battisti, mas poucos tentam averiguar o que o episódio significa realmente. A sucessão de casos similares, a proteção concedida pela esquerda brasileira a praticamente todos os terroristas internacionais que aqui aportam – Achille Lollo, Olivério Medina e sua esposa, os seqüestradores de Abílio Diniz e Washington Olivetto – e o contraste que esses casos formam com a recusa de asilo aos dois boxeadores cubanos deveriam alertar para a obviedade de que não se trata de episódios isolados, mas de uma atividade permanente, sistemática. Mas mesmo aqueles que o percebem hesitam em sondar a relação entre esses fatos e a estratégia geral petista.

Qual é exatamente a posição do Brasil no quadro da esquerda internacional em ascensão? A uma visão superficial, o Brasil é uma democracia de esquerda moderada, favorável ao livre mercado e respeitosa da ordem jurídica. Quase ninguém entende que o país precisa ser tudo isso precisamente para poder desempenhar a função nuclear que lhe cabe na estratégia esquerdista mundial. Também poucos querem enxergar que a democracia brasileira é hoje um puro formalismo jurídico a encobrir o poder monopolístico da esquerda e a total exclusão da simples possibilidade teórica de uma oposição conservadora, seja na política eleitoral, seja na mídia, seja até na pura esfera cultural.

O Brasil, democracia sui generis onde as liberdades legalmente constituídas coexistem pacificamente com a total impossibilidade de exercê-las, é a origem e o centro de comando da revolução comunista na América Latina. É da elite intelectual petista, fundadora do Foro de São Paulo, que emanam discretamente as instruções gerais destinadas a transformar-se em espetáculos de esquerdismo histriônico por meio dos Chávez, Morales e outros tantos que às vezes nem mesmo compreendem as sutilezas dialéticas do processo e por isto acabam, com freqüência, exagerando no desempenho de seus papéis. Se a Venezuela e a Bolívia parecem estar na vanguarda da revolução, e o Brasil muito na retaguarda, é porque o comando, por definição, fica na retaguarda.

Por isso mesmo é que o Brasil se torna também o abrigo ideal para os revolucionários caídos em desgraça nos seus respectivos países. Se eles fossem para Cuba ou para a Venezuela, teriam de conservar sua identidade exterior de revolucionários e se tornariam inúteis para funções mais discretas e relevantes. Aqui, podem adquirir uma fachada de cidadãos pacíficos, aposentados de toda violência, e integrar-se, sem risco nenhum, nos altos círculos intelectuais que comandam o processo. Só um idiota completo pode acreditar que o governo brasileiro aceitaria o risco de uma crise diplomática só para agradar a uma socialite. Tal como Achille Lollo e Olivério Medina, Cesare Battisti não recebeu apenas um asilo político, mas uma promoção, subindo na hierarquia revolucionária, do posto de executor na linha de frente para o de analista e planejador nas altas esferas. Ele é protegido porque é útil, não porque Carla Bruni é bonitinha.

Nenhuma análise séria dos fatos políticos pode-se fazer desde o ponto de vista liberal e conservador se este não absorve, primeiro, a perspectiva do adversário. Se você não está capacitado para fazer uma análise marxista da situação exatamente como a fariam os teóricos e estrategistas do movimento revolucionário, suas opiniões a respeito da política de esquerda serão sempre meras tentativas de projetar sobre ela categorias que lhe são estranhas, ajudando, portanto, a encobrir seus verdadeiros intuitos e a conferir o privilégio da invisibilidade quase absoluta às estratégias e táticas do esquerdismo.

Afinal, o marxismo não é só uma “ideologia”: ele é uma estratégia da praxis revolucionária e, nesse sentido, é uma ciência – uma ciência extremamente sutil e complexa, da qual os formadores de opinião liberais e conservadores, no Brasil, não sabem praticamente nada. O deslocamento entre as categorias analíticas e a natureza do fenômeno estudado é garantia segura de incompreensão, e a incompreensão é por sua vez a origem dos erros estratégicos monstruosos que, ao longo dos últimos trinta anos, reduziram o liberalismo e o conservadorismo, de forças imperantes, a exceções doentias que só subsistem graças à tolerância provisória do sistema.

É fácil observar de fora os erros da economia marxista e pontificar que todo movimento baseado nela está condenado ao fracasso. Mas a estratégia do movimento comunista não é, de maneira alguma, uma decorrência direta e mecânica da sua economia. Principalmente não o é na esfera da luta cultural, onde as manobras e rodeios da intelectualidade ativista vão, com freqüência, no sentido contrário daquilo que se poderia deduzir do economicismo marxista vulgar. Trata-se de um ramo de conhecimento que tem sua própria autonomia e que não pode ser dominado senão mediante longos anos de estudo. É só aprendendo a pensar como os teóricos da revolução mundial que se pode, em seguida, transcender a sua visão das coisas e condená-la com fundamento. Atirar-lhe pedras desde fora é ficar abaixo dela e tornar-se vítima cega do processo revolucionário.

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