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O capitalismo anticapitalista

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de maio de 2009

Quando digo que a democracia capitalista dificilmente pode sobreviver sem uma cultura de valores tradicionais, muitos liberais brasileiros, loucos por economia e devotos da onipotência mágica do mercado, fazem aquela expressão de horror, de escândalo, como se estivessem diante de uma heresia, de uma aberração intolerável, de um pensamento iníquo e mórbido que jamais deveria ocorrer a um membro normal da espécie humana.

Com isso, só demonstram que ignoram tudo e mais alguma coisa do pensamento econômico capitalista. Aquela minha modesta opinião, na verdade, não é minha. Apenas reflete e atualiza preocupações que já atormentam os grandes teóricos do capitalismo desde o começo do século XX.

Um dos primeiros a enunciá-la foi Hillaire Belloc, no seu livro memorável de 1913, The Servile State, reeditado em 1992 pelo Liberty Fund. A tese de Belloc é simples e os fatos não cessam de comprová-la: destravada de controles morais, culturais e religiosos, erigida em dimensão autônoma e suprema da existência, a economia de mercado se destrói a si mesma, entrando em simbiose com o poder político e acabando por transformar o trabalho livre em trabalho servil, a propriedade privada em concessão provisória de um Estado voraz e controlador.

Rastreando as origens do processo, Belloc notava que, desde o assalto dos Tudors aos bens da Igreja, cada novo ataque à religião vinha acompanhado de mais uma onda de atentados estatais contra a propriedade privada e o trabalho livre.

Na época em que ele escrevia The Servile State, as duas fórmulas econômicas de maior sucesso encarnavam essa evolução temível cujo passo seguinte viria a ser a I Guerra Mundial. Quem mais compactamente exprimiu a raiz do conflito foi Henri Massis (que parece jamais ter lido Belloc). Em Défense de l’Occident (1926), ele observava que, numa Europa desespiritualizada, todo o espaço mental disponível fôra ocupado pelo conflito “entre o estatismo ou socialismo prussiano e o anti-estatismo ou capitalismo inglês”. O capitalismo venceu a Alemanha no campo militar, mas a longo prazo foi derrotado pelas idéias alemãs, curvando-se cada vez mais às exigências do estatismo, principalmente na guerra seguinte, quando, para enfrentar o socialismo nacional de Hitler, teve de ceder tudo ao socialismo internacional de Stálin.

Défense de l’Occident é hoje um livro esquecido, coberto de calúnias por charlatães como Arnold Hauser – que chega ao absurdo de catalogar o autor entre os protofascistas –, mas seu diagnóstico das origens da I Guerra continua imbatível, tendo recebido ampla confirmação pelo mais brilhante historiador vivo dos dias atuais, Modris Eksteins, em Rites of Spring: The Great War and the Birth of the Modern Age, publicado em 1990 pela Doubleday (nem comento o acerto profético das advertências de Massis quanto à invasão oriental da Europa, do qual tratarei num artigo próximo). Segundo Eksteins, a Alemanha do Kaiser, fundada numa economia altamente estatizada e burocrática, encarnava a rebelião modernista contra a estabilidade da democracia parlamentar anglo-francesa baseada no livre mercado. Esta só saiu vitoriosa em aparência: a guerra em si, por cima dos vencedores e perdedores, fez em cacos a ordem européia e varreu do mapa os últimos vestígios da cultura tradicional que subsistiam no quadro liberal-capitalista.

Outro que entendeu perfeitamente o conflito entre a economia de mercado e a cultura sem espírito que ela mesma acabou por fomentar cada vez mais depois da I Guerra foi Joseph Schumpeter. O capitalismo, dizia ele em Capitalism, Socialism and Democracy (1942), seria destruído, mas não pelos proletários, como profetizara Marx, e sim pelos próprios capitalistas: insensibilizados para os valores tradicionais, eles acabariam se deixando seduzir pelos encantos do estatismo protetor, irmão siamês da nova mentalidade modernista e materialista.

Que na era Roosevelt e na década de 50 a proposta estatista fosse personificada por John Maynard Keynes, um requintado bon vivant homossexual e protetor de espiões comunistas, não deixa de ser um símbolo eloqüente da união indissolúvel entre o antiliberalismo em economia e o antitradicionalismo em tudo o mais.

Nos EUA dos anos 60, essa união tornou-se patente na “contracultura” das massas juvenis que substituíram a velha ética protestante de trabalho, moderação e poupança pelo culto dos prazeres – pomposamente camuflado sob o pretexto de libertação espiritual –, investindo ao mesmo tempo, com violência inaudita, contra o capitalismo que lhes fornecia esses prazeres e contra a democracia americana que lhes assegurava o direito de desfrutá-los como jamais poderiam fazer na sua querida Cuba, no seu idolatrado Vietnã do Norte. Mas o reino do mercado é o reino da moda: quando a moda se torna anticapitalista, a única idéia que ocorre aos capitalistas é ganhar dinheiro vendendo anticapitalismo. A indústria cultural americana, que no último meio século cresceu provavelmente mais que qualquer outro ramo da economia, é hoje uma central de propaganda comunista mais virulenta que a KGB dos tempos da Guerra Fria. A desculpa moral, aí, é que a força do progresso econômico acabará por absorver os enragés, esvaziando-os pouco a pouco de toda presunção ideológica e transfigurando-os em pacatos burgueses. O hedonismo individualista e consumista que veio a dominar a cultura americana a partir dos anos 70 é o resultado dessa alquimia desastrada; tanto mais desastrada porque o próprio consumismo, em vez de produzir burgueses acomodados, é uma potente alavanca da mudança revolucionária, visceralmente estatista e anticapitalista: uma geração de individualistas vorazes, de sanguessugas carregadinhos de direitos e insensíveis ao apelo de qualquer dever moral não é uma garantia de paz e ordem, mas um barril de pólvora pronto a explodir numa irrupção caótica de exigências impossíveis. Em 1976 o sociólogo Daniel Bell já se perguntava, em The Cultural Contradictions of Capitalism, quanto tempo poderia sobreviver uma economia capitalista fundada numa cultura louca que odiava o capitalismo ao ponto de cobrar dele a realização de todos os desejos, de todos os sonhos, de todos os caprichos, e, ao mesmo tempo, acusá-lo de todos os crimes e iniqüidades. A resposta veio em 2008 com a crise bancária, resultado do cinismo organizado dos Alinskys e Obamas que conscientemente, friamente, se propunham drenar até ao esgotamento os recursos do sistema, fomentando sob a proteção do Estado-babá as ambições mais impossíveis, as promessas mais irrealizáveis, os gastos mais estapafúrdios, para depois lançar a culpa do desastre sobre o próprio sistema e propor como remédio mais gastos, mais proteção estatal, mais anticapitalismo e mais ódio à nação americana.

Em 1913, as previsões de Hillaire Belloc ainda poderiam parecer prematuras. Era lícito duvidar delas, porque se baseavam em tendências virtuais e nebulosas. Diante do fato consumado em escala mundial, a recusa de enxergar a fraqueza de um capitalismo deixado a si mesmo, sem as defesas da cultura tradicional, torna-se uma obstinação criminosa.

O fim de um petista americano

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de março de 2008

O pessoal aí no Brasil não está entendendo direito o que aconteceu com o ex-governador de Nova York Eliot Spitzer. O sujeito parece vítima de perseguição moralista, mas não é nada disso.

Primeiro, prostituição em Nova York não é crime nenhum. Crime – crime federal – é levar prostitutas de um Estado para fazer michê em outro. Isso é assim precisamente por causa da diferença entre as leis dos vários Estados, um restinho de federalismo que tem de ser respeitado, principalmente – ora bolas! – se você é governador de um dos Estados envolvidos.

Segundo: Spitzer fez carreira no moralismo acusatório com tons anticapitalistas no mais puro estilo PT. Sua atuação lembra muito a de José Dirceu e Aloysio Mercadante nas célebres CPIs do começo da década de 90, cortando a esmo cabeças de culpados e inocentes e subindo aos píncaros da glória sobre montanhas de reputações destruídas.

Não tem cabimento ficar com dó de um malicioso que se afoga no seu próprio veneno.

O tipo de retórica de Spitzer é de sucesso muito fácil porque as mesmas multidões que se elevaram a um padrão de vida decente graças ao capitalismo ignoram como o sistema funciona, e guardam sempre um fundo de inveja rancorosa baseado na crença de que a riqueza de uns é obtida à custa do empobrecimento de outros.

Ironicamente, essa crença é verdadeira no que diz respeito a todos os demais sistemas econômicos que já existiram no mundo – a comunidade agrária, o escravismo, o feudalismo e o socialismo. A diferença específica do capitalismo – e a única razão do seu sucesso – é que ele funciona precisamente ao contrário desses sistemas. É impossível um sujeito enriquecer por meio de investimento capitalista (mesmo puramente financeiro) sem espalhar riqueza pela sociedade em torno, mesmo que não queira fazê-lo. O capitalismo é em seu mecanismo mais íntimo um efeito multiplicador, que faz “justiça social” por automatismo, e o faz melhor do que qualquer governo soi disant idealista e humanitário.

Vejam anualmente o index de Liberdade Econômica da Heritage Foundation e me mostrem um único regime intervencionista onde as pessoas tenham padrão de vida melhor do que nas nações de economia mais livre.

No entanto, por força da sua mesma prosperidade incontornável, o capitalismo fornece a vastas multidões de classe média os meios de acesso à educação universitária e depois não tem como dar a essa gente uma função útil na economia. O remédio é expandir ilimitadamente a “indústria cultural” para dar emprego à nova classe ociosa. Resultado: aumenta a cada dia o exército de pseudo-intelectuais frustrados, ressentidos, ávidos de um poder à altura dos méritos ilusórios dos quais se imaginam portadores. O progresso do capitalismo cria inexoravelmente a cultura da revolta socialista. Não o proletariado, mas a arraia-miúda universitária – o “proletariado intelectual”, como o chamava Otto Maria Carpeaux – é a verdadeira classe revolucionária.

A composição sociológica de todos os partidos esquerdistas do mundo comprova isso da maneira mais patente. No entanto, não se pode dizer que Marx acertou nem mesmo nesse sentido imprevisto ao dizer que “o capitalismo traz em si a semente da sua própria destruição”. A classe revolucionária não destrói o capitalismo: só o perverte mediante arranjos que elevam os revolucionários à condição de classe dominante ao mesmo tempo que mantêm em funcionamento aquele mínimo de liberdade de mercado sem o qual o socialismo, que só pode existir como promessa indefinidamente adiada, se transmutaria em realidade e se extinguiria automaticamente.

A cultura do socialismo é a doença congênita do capitalismo avançado. Ele pode sobreviver indefinidamente a essa doença, mas à custa de destruir todos os bens culturais, morais e políticos que justificam a sua existência. A degradação da democracia genuína em “democracia de massas” – a ditadura da burocracia imperando sobre as formas vazias de instituições que perderam todo o sentido – é o preço de um capitalismo incapaz de criar uma cultura capitalista.

Gerar e destruir incessantemente tipos como Eliot Spitzer e José Dirceu é apenas um dos vícios estruturais inumeráveis que constituem o repertório de possibilidades da “democracia de massas”.

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No documentário de Ben Stein, Expelled: No Intelligence Allowed , o dr. Richard Dawkins, que seus devotos consideram a encarnação mesma da razão científica em luta contra as trevas do obscurantismo e da superstição, faz uma revelação altamente significativa: ele não acredita no Deus dos cristãos e judeus, mas acredita… em deuses astronautas! Stein, que é um tremendo gozador, refreia-se e, por caridade, transmite a declaração sem comentários. Só não farei o mesmo porque não me sai da cabeça a frase célebre de G. K. Chesterton: “Quando os homens param de acreditar em Deus, não é que não acreditem em mais nada – eles passam a acreditar em tudo.”

A direita a serviço da esquerda

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 09 de abril de 2007

Dentre as muitas coisas verdadeiras ditas pelo sr. Fernando Henrique Cardoso entre uma mentira e outra, esta merece a maior atenção:

“Não existe direita no Brasil, no sentido clássico do conceito… O pensamento conservador filia-se a uma tradição ocidental que estabelece como pilares da ordem a família, a propriedade, os costumes. O nosso conservadorismo não é nada disso. Tem a ver com clientelismo, patrimonialismo, uso indevido dos recursos do Estado. Ele não é composto de um ideário, e sim de aproveitadores. Por que a ‘direita’, no Brasil, apóia todos os governos, não importa qual? Na história recente, ela apoiou os militares, apoiou o Sarney, apoiou o Collor, apoiou a mim, apóia o Lula. Porque seus integrantes não são de direita. Essa gente toda só quer estar perto do Estado, tirar vantagens dele.”

Só faltou ele acrescentar – e por isso acrescento eu – que esse é o mais grave problema do Brasil. Desde logo, só a economia capitalista pode gerar prosperidade, mas o sucesso dessa economia depende diretamente da conduta da classe capitalista. Ora, é precisamente a essa classe que o ex-presidente se refere. Se ela própria insiste em se tornar dependente do Estado, por interesses imediatistas e pela relutância covarde em se expor plenamente aos riscos da livre concorrência, ela condena o capitalismo brasileiro à atrofia perpétua. Não tem sentido um sujeito prosternar-se ante a autoridade governamental e depois reclamar que ela o oprime com sobrecarga de impostos e de exigências burocráticas. Se você quer independência, tem de agir com independência. No Brasil os ricos gritam “Enxuguem o Estado!”, mas querem continuar nadando na piscina das verbas oficiais. Assim não dá.

Mas os efeitos da subserviência capitalista ao Estado vão muito além da esfera econômica. O exemplo da classe rica se propaga por toda a população e a corrompe, fazendo de cada cidadão um virtual pedinte de dinheiro público. O brasileiro não sonha em enriquecer com trabalho, poupança e investimento, mas em chegar o mais rápido possível à aposentadoria. E ele não pensa assim por ser preguiçoso, mas porque sua poupança é comida pelos impostos e a única forma de investimento que resta ao seu alcance são as contribuições previdenciárias. O Brasil não é uma potência capitalista porque preferiu ser antes um imenso Instituto de Previdência. Os efeitos psicológicos dessa situação são devastadores: se o objetivo da vida é a aposentadoria, o trabalho não é o caminho da prosperidade e da auto-realização, mas uma incomodidade temporária que deve ser removida o mais rápido possível. Então o desleixo e a incompetência tornam-se não apenas direitos, mas até deveres: como o trabalho não tem nenhuma outra finalidade senão ser abolido o quanto antes, o trabalhador esforçado é visto como um vaidoso pedante ou como um puxa-saco do patrão.

Estragando a população em geral pelo mau exemplo, a acomodação capitalista no seio da burocracia corrompe ainda mais os políticos. Corrompe-os por três lados ao mesmo tempo:

1. Os que são seus amigos tornam-se ipso facto agentes de negócios, captadores de recursos estatais para financiar – ou salvar – empresas privadas.

2. Os inimigos, temporariamente excluídos da mamata, sentem-se investidos do direito de multiplicá-la em proveito próprio tão logo cheguem ao poder e imaginam-se, por essa mesma razão, as pessoas mais honestas do mundo. Quando, na CPI dos Anões do Orçamento em 1993, os petistas vociferavam contra “o Estado dentro do Estado”, referindo-se hiperbolicamente a vulgares negociatas entre empreiteiros e parlamentares, ao mesmo tempo que já iam preparando o futuro Mensalão – este sim um verdadeiro Estado dentro do Estado –, não tenho a menor dúvida de que ao menos inconscientemente identificavam a justiça social com a distribuição igualitária do direito de roubar. Por isso mesmo não sentem hoje a menor dor na consciência por tudo aquilo que têm feito desde que se tornaram os novos donos do poder. Vigarice por vigarice, acham mais lícita aquela que não favorece só as velhas elites mas reparte o botim entre os pobres e oprimidos – isto é, eles próprios. Caso contrário não teria razão de ser a afetação de coitadice com que um Lula ou uma Benedita, alçados à mais alta hierarquia do Estado, continuam se vendo como membros da classe desamparada.

3. Uns e outros, amigos e inimigos, acabam tendo seus interesses vitais diretamente ligados à burocracia estatal — e tudo farão para que ela continue crescendo, a despeito até de suas convicções pessoais.

Do ponto de vista ideológico, então, os efeitos da simbiose entre Estado e elite empresarial raiam o monstruoso.

Primeiro: por falta de advogados, a defesa dos “pilares da ordem, a família, a propriedade, os costumes” , como os resumiu Fernando Henrique, é excluída do linguajar político decente e jogada para o limbo da “extrema direita”. Como, por outro lado, ela expressa os ideais majoritários da população brasileira, o resultado é que o Brasil se torna uma nação de excluídos políticos, onde a maioria não tem representantes nem porta-vozes. Privado dos canais normais de atuação, o conservadorismo brasileiro recua para o inconsciente coletivo e tem de se expressar por vias simbólicas, indiretas, analógicas. Muitos dos eleitores de Lula votaram nele pelo simples fato de que ele parecia um tipo mais antigo, mais arraigado nas tradições populares, do que seus concorrentes moderninhos, com ares de tecnocratas. O motivo da escolha não foi político nem ideológico: foi puramente estético. Não encontrando quem falasse em seu nome, o povo votou em quem se parecia com ele fisicamente, sem ter a menor idéia de que elegia o candidato do aborto, do desarmamento civil, do casamento gay – de tudo o que podia haver de mais artificial e antipopular. Aí a política eleitoral se torna pura fantasia alucinatória.

Segundo: dentre os defensores da economia privada, muitos têm menos horror ao esquerdismo do que à perspectiva de ser tomados por “extremistas de direita”. Então apressam-se em isolar economia e cultura, articulando a apologia do capitalismo com a do programa cultural revolucionário, incluindo abortismo, eutanásia, liberação das drogas e anticristianismo professo ou implícito. Tornam-se assim forças auxiliares da revolução gramsciana, e toda a sua gritaria em favor da liberdade de mercado já não faz a menor diferença, pois ninguém na esquerda está lutando pela socialização dos meios de produção; todas as tropas foram concentradas no campo de batalha cultural.

Terceiro: se uma parte da direita não tem ideologia nenhuma e a outra tem uma ideologia que favorece a revolução cultural, o resultado é que a esquerda fica com o monopólio da propaganda ideológica. Até os que a odeiam são obrigados a falar na linguagem dela, o que significa que tudo o que dizem funciona no fim das contas como propaganda esquerdista.

Quarto: não é possível que a própria “direita” que criou essa situação permaneça psicologicamente imune a seus efeitos por muito tempo. Ela própria acaba introjetando a cosmovisão e os valores da esquerda, e no fim das contas já não tem nada a alegar em favor do capitalismo senão o fato de que ele é do seu interesse. E é exatamente assim que estamos hoje em dia: entre os opinadores de plantão, não há mais quem não veja a política como a luta entre “interesses” privados e “valores” coletivos. Em suma: no Brasil, entre as classes falantes, todo mundo é de esquerda – uns porque gostam, outros porque não sabem ser outra coisa.

Não conheço, por exemplo, entre os “direitistas” brasileiros, um só que não enxergue a economia, em última instância, exatamente nos termos em que a descreveu Karl Marx. Por menos que gostem disso, seu cérebro está programado para enxergar o capitalismo como luta de classes e exploração da mais-valia. Quanto mais dizem tomar o partido da sua própria classe, mais se tornam prisioneiros da jaula marxista.

Também não conheço um só capitalista que não acredite na lenda esquerdista de que Karl Marx foi “um grande pensador”. Podem proclamar até que “o marxismo está superado”, mais quanto mais o depreciam da boca para fora, mais lhe rendem homenagem em pensamento.

Ora, Karl Marx não foi nenhum gênio, nenhum grande pensador, nenhum cientista social notável. Foi uma besta quadrada, incapaz de dominar os problemas filosóficos mais elementares e de se orientar no meio da mixórdia verbal que ele próprio criou. Seu único talento foi o do vigarista intelectual capaz de angariar prestígio por meio do blefe, do boicote e da intimidação. Estudem a atuação dele na I Internacional e verão do que estou falando.

Mas, antes disso, examinemos um ponto essencial. Embora a tradição marxista condene com veemência o “abstratismo burguês” que supostamente raciocina a partir de meros conceitos sem ter em vista a praxis histórica, toda a análise que Marx faz da economia capitalista é abstratismo da espécie mais primária. Ele define o capitalismo como exploração da mais-valia e sai tirando conclusões dessa definição sem prestar a mais mínima atenção às condições histórico-sociais que já na sua época possibilitavam a existência do capitalismo. Na sua definição, este se resume a uma determinada relação entre capitalistas e operários, exploradores e explorados. Nesse esquema, não há nenhum lugar para a massa dos consumidores, a vasta classe média da qual depende a existência de capitalistas e operários. Uma máquina econômica constituída apenas de exploradores e explorados não poderia durar um só dia. Afinal, quem paga a brincadeira? Partindo da sua definição de capitalismo, Marx acreditava que o número de consumidores iria diminuir cada vez mais, até que a máquina de exploração já não tivesse condições de funcionar. Mas o único argumento que ele oferece em favor dessa previsão é que ela é uma decorrência lógica da sua definição de capitalismo – uma definição que, a priori , já omitia a existência dos consumidores. Na verdade, estes é que deveriam ser o centro da definição: o capitalismo pode até incluir exploradores e explorados, mas ele não consiste nem em explorar nem em ser explorado — ele consiste em comprar e vender. Até mesmo a relação entre patrão e empregado é apenas um caso especial de compra e venda – algo que qualquer principiante habilitado a distinguir gênero e espécie tem a obrigação de perceber. Em vez de definir o capitalismo pelo perfil real da sua existência histórica, Karl Marx preferiu reduzi-lo a uma “essência” abstrata que pudesse ser descrita mediante uma só relação simples, a relação entre salário e “valor”. Depois, vendo que a existência real do capitalismo não confirmava a essência, concluiu que esta acabaria por predominar sobre a existência. Maior “abstratismo burguês” não poderia haver: uma essência abstrata que pode mais do que a realidade histórica é uma espécie de platonismo radical, o primado absoluto das idéias (com o agravante de que as idéias platônicas eram pensadas por Deus, e a definição marxista de capitalismo é pensada apenas por Karl Marx). Na realidade objetiva, a existência e a prosperidade do capitalismo dependem inteiramente do mercado, isto é, dos consumidores, e isto é assim já na base, na “essência” mesma do processo. Se o capitalismo foi economicamente viável por um só dia, nesse dia já ele aumentou o número de consumidores, pois alguém então comprou o que não havia comprado antes. Dessa condição real, o que seria preciso deduzir é que o capitalismo consiste na ampliação do mercado, na multiplicação do número de consumidores. Se cabe descrever os processos históricos como “essências”, essa é a essência do capitalismo – e o que se deveria deduzir dela é que, se essa essência viesse a existir historicamente, o resultado seria a ampliação progressiva da classe média até à dissolução do “proletariado” como classe identificável. Isto foi exatamente o que aconteceu, e é exatamente o contrário do que Marx previa. Para fazer a previsão certa, ele precisaria ser um filósofo de verdade, isto é, saber pelo menos aquilo que todo discípulo de Sócrates já havia aprendido dois milênios antes: distinguir entre o que o cérebro inventa e o que a experiência ensina. A experiência pode ser confusa e o pensamento introduz nela alguma ordem e clareza. O que não vale é, em prol da clareza, substituir a experiência por meros pensamentos. Mas Karl Marx foi um pouco além: ele acreditou piamente que seus pensamentos acabariam por demonstrar a irrealidade da experiência.

Não é compreensível que alguém tenha sequer algum respeito por um idiota capaz de embarcar num erro tão básico. A fama de Karl Marx deve-se apenas ao fato de que a idiotice é contagiosa e o número dos contaminados acaba valendo como uma espécie de autoridade intelectual. Ao contrário do que pensava Descartes, é a idiotice e não a sensatez que é distribuída por igual entre todas as classes: a proporção de idiotas não é maior entre aqueles a quem o marxismo promete um paraíso do que entre aqueles que ele ameaça jogar na lata de lixo da História. Os primeiros são idiotizados pela ambição, os segundos por aquele medo extremo que acaba se tornando fascínio e subserviência.

Não adianta nada você gostar do capitalismo se acredita que ele é baseado na exploração da mais-valia e que sua única chance de sobrevivência reside em fazer concessões cada vez maiores à militância socialista detentora do monopólio dos valores morais e das esperanças de futuro.

Ou você acredita que o capitalismo encarna valores morais inegociáveis e que ele é a única esperança de dias melhores para a humanidade, ou é mais lógico você desistir logo dele e arrumar uma carteirinha do PSTU.

***

P. S. — Se você é católico, não se sinta obrigado a dizer amém à declaração do Papa de que Karl Marx “forneceu uma imagem clara do homem vitimado por bandidos”. Não é uma sentença doutrinal ex cathedra , é apenas uma opinião individual que todo católico tem o direito e até o dever de contestar. Não adianta nada o meu caro Reinaldo Azevedo tentar atenuar o sentido da frase, dizendo que ela não é propriamente um elogio a Karl Marx. A declaração não impressiona pelo que insinua a favor de Karl Marx, mas pelo que diz claramente contra os capitalistas: são bandidos. Assim os descreveu Karl Marx, e o Papa considera essa descrição uma “imagem clara”. E o mais bonito é que a ela o ex-cardeal Ratzinger não tem a objetar senão que Karl Marx, limitando-se à esfera material, não foi ao fundo espiritual do problema. Portanto, na perspectiva papal, não basta denunciar o mal econômico da exploração da mais valia: é preciso sondar as dimensões espirituais dessa abominação. Que eu saiba, esse é o programa da Teologia da Libertação: adornar a estupidez marxista com pretextos espirituais colhidos da religião cristã. Cabe recordar que, no trato disciplinar com os Boffs e Gutierres, Ratzinger sempre se limitou às reprimendas paternais sem o mínimo efeito prático, ao mesmo tempo que, para os católicos tradicionais, reservava a mais grave das punições: a excomunhão. Não espanta que um Pedro Casaldáliga não lhe tenha respeito nenhum e lhe passe pitos em público. A ninguém os comunistas desprezam mais do que a seus colaboradores discretos no seio da “direita”. Nossos direitistas deveriam aprender com o exemplo: quanto mais você se faz de bonzinho, mais a esquerda lhe cospe em cima.

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