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O Milagre da Solidão

Olavo de Carvalho

Bravo! nº 13, outubro de 1998, edição de primeiro aniversário

Lima Barreto foi, com Cruz e Sousa e Machado de Assis, um dos meus heróis carlylianos de juventude — “the hero as man of letters” —, o tipo do sujeito que pela força da auto-educação se eleva acima do meio opressivamente burro e se torna um educador de seus opressores.

Que os três fossem pretos era coisa que não me comovia especialmente. A discriminação que você sofre como parte de um grupo tem sempre o contrapeso da solidariedade entre a multidão de coitados: quanto mais o expelem de um grupo, tanto mais você se sente integrado no outro, e sempre resta a esperança coletiva de que os oprimidos de soje sejam os opressores de amanhã. Ruim, mesmo, é a discriminação que você sofre sozinho, sem o consolo da palavra nós e das ideologias salvadoras, rejeitado, graças ao estima da diferença, mesmo pelos seus companheiros de raça, de religião, de bairro, de geração. Aí você não tem para onde correr. Você é o próprio Cristo na cruz, abandonado por todos, desprovido de semelhantes. Nenhuma ONG vai fazer lobby em seu favor, nenhuma assembléia da Unesco vai denunciar que você é vítima de uma grossa sacanagem, a rainha da Inglaterra não vai estipendiar nenhuma fundação para socorrê-lo, nenhum editorial do The New York Times vai dizer que você é lindo e maravilhoso como o João Pedro Stédile. Para todos os efeitos, você está excluído até mesmo da classe dos dscriminados. Você é aquela mancha de meio milímetro no canto de uma foto do Sebastião Salgado.

Só o sujeito que passou por essa situação sabe que existe, no mundo, um tipo de mal que supera tudo o que a mídia denuncia, e que pensando bem, é a raiz da porcaria universal.

Explico-me. O herói do primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, não sofre somente porque é preto e pobre. Ele sofre porque é um sujeito honesto num meio de vigaristas, um autêntico homem de letras num meio de farsantes, um gentleman no meio de carreiristas vorazes e grosseiros. Enquanto preto e pobre, consolava-se olhando a multidão de seus companheiros de infortúnio. Mas quantos semelhantes teria ele nas qualidades excelsas que o destacavam e o isolavam? Quantos irmãos tinha Cristo na cruz? A parte de Isaías que mais dói não é sua inferioridade social: é sua superioridade moral.

Mas Isaías traz ainda a marca do ressentimento racial. Ao escrevê-lo, Lima Barreto sente-se ainda o membro de uma determinada comunidade excluída e fala em nome dela. O livro resvala às vezes para o desabafo direto e, quanto mais se aproxima de uma cópia literal da realidade empírica, mais perde em altitude. O próprio Isaías também é de pouca estatura: ele é melhor que os outros, não mais forte: débil e tímido, reduz-se a uma vítima passiva das circunstâncias, tudo se resolve numa horizontalidade deprimente e, como dizia Antonio Machado, “cuán dificil es/ cuando todo baja/ no bajar también”!

No romance seguinte, Lima Barreto abdica de toda referência a uma injustiça social presente. O major Quaresma não pertence a nenhum grupo discriminado.

Não tem nenhum handicap que o identifique a esta ou àquela multidão de vítimas. Ele é auto-suficiente na luta pela vida. É mais forte, mais inteligente e mais valente que seu antagonista, o presidente Floriano. Quaresma não é discriminado porque algo lhe falte, mas porque tem força de sobra e a generosidade de querer ajudar a seu povo. Este segundo herói de Lima Barreto adquire assim uma altitude que faltava a Isaías. Ele já não é o personagem de um mero drama social, mas o herói de uma tragédia. Segundo Aristóteles, é essencial que o herói trágico seja um homem poderoso e especial: fora disso suas desventuras assinalariam apenas uma conjunção acidental de circunstâncias, suprimível e sem o alcance de uma fatalidade cósmica inexplicável.

Mas a derrota do major ainda é parcialmente explicável. Ele é um gênio criativo, mas, convenhamos, suas idéias são bem esquisitas. Ele tem esse resíduo de fraqueza, a meia loucura que o coloca a meio caminho entre o herói e o anti-herói. É por esse flanco que o inimigo consegue feri-lo. A morte de Quaresma nos deprime, mas não nos escandaliza como um absurdo completo. Há nela algo de razoável: o ideal do reformador era incompatível não só com o ambiente mesquinho da República florianista, mas com a reaidade tout court.

Esse último pretexto da injustiça é enfim abolido num romance seguinte de Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Gonzaga é um Policarpo Quaresma sem demência, um Isaías sem o handicap da juventude e da timidez. É um grande homem em toda a extensão da palavra — e sua vida termina no isolamento e na resignação, mas não na derrota. Solitário entre seus livros, o sábio desenganado observa o mundo com um olhar sem ressentimento nem sentimentalismo, cheio de uma compreensão serena que lembra, por mais de um aspecto, a do conselheiro Aires, mas livre daquele resíduo de negativismo schopenhaueriano que foi até o fim a marca registrada de Machado de Assis.

A trilogia barretiana mostra-nos a evolução do ideal do humano do grande escritor, retratada na gradação espiritual dos heróis: o jovem talentoso esmagado pelo mundo, o combatente exaltado e semilouco, o sábio estóico soberano e calmo que permanece de pé enquanto o mundo em torno cai. De personagem a personagem, há uma progressiva depuração e interiorização do ideal, que vai se afastando da situação empírica imediata para se tornar cada vez mais universalmente humano e, na mesma medida, se desliga de todo ressentimento coletivo para encontrar o sentido de uma vida não na vingança, mas no perdão.

O perdão, aqui, não deve ser entendido na acepção beata e sentimental, mas no sentido etimoçógico de per-donare, completar o dom: o mundo não nos persegue porque é mais forte que nós, mas porque é mais fraco. Ele nos persegue porque algo lhe falta: a sabedoria. Como no verso de Santayana: “O world, thou choosest not the better part!” . Ao superar o ressentimento coletivo, o sábio “escolhe a melhor parte” e é o único que, no fim das contas, é rico o bastante para ter o que dar. Gonzaga não é verdadeiramente derrotado. Expelido do mundo, prossegue a busca da verdade, sempre disposto a compartilhá-la com o discípulo que o procure. “The hero as man of letters”: o oprimido tornou-se educador do mundo opressor.

Juntas, as três obras maiores de Lima Barreto formam um poderoso Bildungsroman — o romance da vitória de uma alma sobre si mesma e, por meio disto, sobre o mundo(*).

A transfiguração do oprimido em benfeitor é um milagre que se repete incessantemente na história. Raramente houve um sábio, um santo, um mestre cujos prodígios de generosidade não brotassem dos extremos de discriminação e solidão padecidos na infância, vencidos e superados pela alquimia da maturidade. É a mensagem final do Rei Lear: “Ripeness is all”.

Mas isso só acontece àqueles que sofreram a discriminação sozinhos, sem ter uma raça, um partido, uma ideologia, uma ONG e fundações internacionais a que se agarrar. Quem tem essas coisas não precisa atravessar o caminho da ascese interior. Pode encontrar alívio e reconforto na ilusão de que o ódio dos vencidos é um sentimento moralmente superior ao orgulho dos vencedores. Pode escapar da solidão fundindo-se na massa vociferante dos comparnheiros de partido, sonhando morticínios justiceiros que serão, na sua cabecinha imunda, a apoteose do bem. Foi dessa ilusão sangrenta que a leitura da trilogia de Lima Barreto me libertou, mais de trinta anos atrás.

A diferença entre povo opressor e povo oprimido é apenas quesão de ocasião, e a “solidariedade com os primidos” é apenas o véu ideológico que bsuca embelezar e legitimar, de antemão, os massacres de amanhã. Esse reconforto “ético” é, no fundo, uma fuga da consciência: todo povo orpimido esconde os lances vergonhosos de sua própria história, para poder acreditar-se melhor que os opressores. Não há um só movimento de libertação e de direitos que não se funde nessa mentira essencial, em que se afiam os espetos de futuros holocaustos. Durante um milênio faraós negros arrancaram sangue do lombo semita, para terminar sendo vendidos como escravos e hoje tentar comover o mundo com seu discurso contra os judeus comerciantes de escravos. Os alemães encontraram na humilhação coletiva a inspiração para perseguir os judeus, e a fumaça do holocausto ainda santifica o fuzil isralense a cada tiro que dispara sobre um palestino armado de pedras.

Reihold Niebuhr assinalava a diferença de nível ético, estrutural e intransponível, entre o indivíduo e a comunidade. Para o indivíduo, o sofrimento pode ser o princípio da sabedoria. Para a comunidade, é o motor da violência, que puxa o carro da história na direção da fornalha ardente em cuja beirada um cartaz anuncia: “Justiça e Paz”. Em face disso, a serenidade de M. J. Gonzaga de Sá é a resposta final aos padecimentos do jovem Isaías Caminha, e o heroísmo semilouco de Policarpo é uma etapa, a ser vencida, no caminho do entendimento.


(*) É a única obra desse gênero na nossa literatura, se descontarmos a novela de Guimarães Rosa A Hora e Vez de Augusto Matraga, a que o filme de Roberto Santos deu interpretação inversa, injetando-lhe aquela mistura de negativismo brasileiro e marxismo de botequim que torna a redenção de Matraga um gesto inútil por não se enquadrar, como ato isolado, na estratégia geral do Partido.

Copiado, para a posteridade, deste blog que pode desaparecer a qualquer momento e é a única fonte deste grandioso texto em toda a internet.

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Link: O Milagre da Solidão

Coisas sérias

Olavo de Carvalho

Bravo!, julho de 1998

O Brasil no Salão do Livro de Paris

Se algumas décadas atrás o governo brasileiro resolvesse homenagear a cultura francesa e convidasse, para representá-la, Françoise Sagan em vez de André Malraux, Fernandel em vez de François Mauriac, Edith Piaff em vez de Raymond Aron , os franceses julgariam a coisa uma piada, e o general Charles de Gaulle, se nunca tivesse dito que o Brasil não é um país sério – como de fato parece que jamais o disse -, veria aí uma boa ocasião para dizê-lo.

No entanto nós, brasileiros, levamos perfeitamente a sério o Salão do Livro em Paris quando ele homenageia a nossa cultura literária nas pessoas dos srs. Chico Buarque, Frei Betto, Paulo Coelho, Fernando Gabeira, Zuenir Ventura, Luís Fernando Veríssimo e outros de calibre igual ou menor.

Ninguém negará que essas criaturas representam, de algum modo, a cultura brasileira. Mas de qual modo, precisamente?

Para ser representativo da cultura de um país e de um momento, o escritor tem de atender a três condições óbvias. Primeira: tem de ser ótimo, tem de expressar o melhor e o mais alto de que sua nação é capaz, tem de ter dado algo de valor ao mundo em nome do seu país. Segunda: tem de ser atual, isto é, atuante. Tem de estar up-to-date, seja pelas obras, seja pelos atos. Terceira: tem de ser influente, ser poderoso, ser muito lido e muito falado.

Dos trinta e sete escritores brasileiros da lista de homenageados do Salão de Paris, três e somente três, atendem a essas condições: Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro e Antonio Olinto. Todos os outros falham a uma, a duas ou às três.

Alguns deles são ótimos, mas inatuais. A falta de atualidade é, dos males, o menor. Tira a representatividade de um escritor sem diminuir em nada os seus méritos. Jorge Amado e Rachel de Queirós, por mais que tenham escrito coisas boas depois, nunca deixarão de ser o modernismo nordestino. Estão cravados nesse lugar do tempo. É um lugar honroso, o mais honroso de nossa literatura – mas não é o lugar onde estamos hoje. Lygia Fagundes Telles é maravilhosa, porém o melhor do que fez já tem duas décadas. Millor Fernandes jamais decaiu, mas ninguém dirá que, nos últimos vinte anos, fez coisa mais digna e de destaque do que Um Elefante no Caos ou Liberdade, Liberdade. Geraldo Mello Mourão é um gênio assombroso – mas há tempos ninguém ouve falar de suas obras. Quem dirá que Antonio Torres não é grande? É sim, mas não cresceu na última década: sua fama e sua melhor produção estão indissoluvelmente associadas aos anos tenebrosos da ditadura. O mesmo deve ser dito de Plínio Marcos. Há mais dois ou três nessa categoria, mas, não tendo a lista diante dos olhos, falo apenas do que conservo na memória. Por justo que seja homenageá-los, sua escolha jamais seria prioritária num evento destinado a apresentar a um povo estrangeiro a cultura brasileira de hoje.

Há um segundo grupo: o daqueles que são ótimos e atuais, mas não influem em nada, porque ninguém os leu. São uma possibilidade, uma esperança. Tenho esperança de que Adriano Espínola venha a ser o Brasil de amanhã, quando Língua-MarTáxi, como merecem, forem lidos em todas as escolas. No Brasil de hoje, é uma glória literária em estado de hipótese. Dizer que ele nos representa é fazer um discurso de posse antes de inscrever a candidatura. O terceiro grupo é o dos escritores que são apenas atuais sem ser influentes ou ótimos: fizeram recentemente coisas que não tiveram a menor repercussão e que, por coincidência, também não valiam nada. Sua presença na lista é um enigma insondável. Não citarei nomes. Non raggionam di lor, ma guarda e passa.

A ala mais interessante é a dos que são influentes e atuais, apenas. Especializaram-se, aliás, em sê-lo, e não fariam o mínimo esforço para se tornar também ótimos, seja porque ignoram que raio de coisa é isso, seja porque imaginam que consista em ser exatamente aquilo que são. Por inacreditável que pareça, esses constituem o grosso da lista. Traduzem, portanto, a essência do critério que inspirou a seleção. São precisamente aqueles que citei no começo deste artigo e mais uma dezena de outros de idêntico teor intelectual. É pela análise dos motivos de sua escolha que descobriremos o que o Salão do Livro de Paris pensa do Brasil.

Não se pode dizer, repito, que esses nomes não representam a cultura nacional. Representam-na, porém não no sentido eminente em que a representaram Machado de Assis e Villa-Lobos, Gilberto Freyre e Portinari, ou no sentido em que representam, hoje, – e atendendo às três condições – Ariano Suassuna, Bruno Tolentino, Ferreira Gullar, Wilson Martins, Roberto Mangabeira Unger, Miguel Reale, Meira Penna, Amaral Viera, Edino Krieger e alguns outros que, como esses, não entram na lista. Aqueles escolhidos não representam o “gênio” brasileiro, mas, sim, apenas a “atualidade” brasileira, aquilo de que todos falam no dia-a-dia. Numa palavra, representam a nossa cultura no sentido antropológico do termo: gostos e hábitos do povo. Precisamente aquele sentido no qual estaria mais que justificada a escolha de Fernandel, Edith Piaff e Françoise Sagan como representantes da França.

Ora, o que define o ponto de vista antropológico é a abstenção de juízos de valor. Para o antropólogo, o canibalismo ou o controle da natalidade pelo estrangulamento dos recém-nascidos são meros fatos, “dados culturais”: como amostras de “cultura”, valem tanto quanto a Catedral de Chartres, as obras completas de Pascal ou o auto-sacrifício de Joana d’Arc. Do mesmo modo, Frei Betto ou Paulo Coelho não são valores brasileiros. São fatos e têm uma altíssima relevância antropológica. Não podemos negar que aconteceram, embora haja quem o lamente.

O ponto de vista antropológico pressupõe, no observador, uma neutralidade, um distanciamento, que dificilmente ele poderia ou desejaria sentir ante sua própria cultura. Malinovski nas Ilhas Trobriand ou Ruth Benedict entre os índios do Novo México podiam olhar as coisas de longe porque tinham vindo de longe e sabiam que iam voltar para longe – para o lugar onde estavam as coisas amadas e odiadas, as coisas verdadeiramente importantes e valiosas, as coisas que exigem decisões e compromissos. Comparada com as exigências concretas da vida, a “cultura” que o antropólogo estuda é um modelo funcional ou estrutural, uma cultura de brinquedo, desmontável e inofensiva.

Quem se coloca desse ponto de vista, geralmente, não pretende adotar para si nenhum dos valores da cultura estudada, mas, confortavelmente instalado nos valores da própria cultura, quer apenas observar com isenção de entomologista uns tipos exóticos que usam osso atravessado no nariz e comem criancinhas. Ninguém olha uma cultura com tamanha frieza quando pretende aprender com ela, isto é, incorporá-la, moldar por ela valores, hábitos, critérios e decisões pessoais, muito menos nacionais. Essa é a diferença que existe num francês quando ele estuda tribos nigerianas e quando lê Goethe ou Hegel, Shakespeare ou Leopardi. Ele aprende em ambos os casos, mas a diferença é a mesma que há entre um objeto de estudo e o professor que o ensina. O objeto é passivo e inerme ante o estudante. O professor ou mestre, ao contrário, ensina, dirige, molda. O interesse por uma cultura não é o mesmo conforme se trate, para o observador, de uma cultura-objeto ou de uma cultura-mestra. Se o Salão do Livro de Paris houvesse escolhido, para representar o Brasil, um Suassuna, um Tolentino, um Mangabeira, um Miguel Reale, haveria motivo para supor que a França, a orgulhosa França, consentira em aprender com brasileiros que têm algo a lhe ensinar. Como escolheu predominantemente aquelas pessoas que mencionei, torna-se claro que ela deseja aprender sobre nós, mas não de nós. Não nos quer como professores, mas como objetos de estudo. Como objetos de estudo, os escolhidos foram, sem dúvida, bem escolhidos: o sr. Chico Buarque é pelo menos tão significativo, antropologicamente, quanto um exemplar de Notícias Populares, as práticas orçamentárias do Congresso Nacional, o time do Corinthians ou a banheira do Gugu.

Não sou eu quem há de dizer que a França não é um país sério. Um país que para realizar idéias de philosophes faz rolar um milhão de cabeças é mais que sério. É mortalmente sério. Ora, como se vê por esse mesmo exemplo, as atitudes das pessoas sérias tem conseqüências mais letais que as de pessoas frívolas. Logo, se a França julga que a cultura brasileira deve ser encarada sobretudo como um objeto, um dado antropológico em que as considerações de valor não têm importância, muito provavelmente sua visão do Brasil será levada a sério, adotada e copiada pelos brasileiros mesmos, para os quais a cultura francesa é mestra e não objeto. Para seguirmos o que nossa mestra nos ensina sobre nós mesmos, haveremos de nos abster de qualquer julgamento de valor sobre as nossas produções culturais, e, com isenção antropológica, não distinguiremos mais entre Chico Buarque e Bruno Tolentino, entre Frei Betto e Mangabeira Unger, entre Zuenir Ventura e Miguel Reale. E aí é que as coisas começarão a ficar bem mais sérias.

Girard: A revolução

Olavo de Carvalho


Bravo!, Junho de 1998

O nome de René Girard não é desconhecido nesta parte do mundo. De vez em quando aparece citado, de passagem, em alguma tese universitária. Seu livro mais famoso, La Violence et le Sacré (1972), foi traduzido pela Vozes e a edição está esgotada.

O que espanta não é que após tal sucesso nenhum editor brasileiro se interessasse em publicar Le Bouc Émissaire (1982), La Route Antique des Hommes Pervers (1985) e outras obras memoráveis do mesmo autor. O fenômeno pode refletir apenas a intermitência do stop and go, típica das economias subdesenvolvidas. O que espanta é a capacidade que o nosso meio universitário teve de absorver em discreto silêncio algo de um pensamento tão explosivo, continuando em seguida confortavelmente instalado nas suas convicções dominantes, como se ele não as houvesse abalado em nada.

Entre a insensibilidade pétrea e o fingimento puro e simples, algum fator desconhecido parece ter imunizado essa gente contra qualquer advertência de que o leão escapou da jaula. Mas não custa repetir o aviso: René Girard está à solta. O que ele vem fazendo – preparem-se – pode-se resumir na fórmula única de um plano supremamente maligno: destruir a quaternidade sagrada positivismo-marxismo-estruturalismo-freudismo que domina o horizonte das ciências humanas, e colocar em seu lugar nada menos que o bom e velho cristianismo.

Mesmo no Velho Mundo, onde o sacerdócio do culto estabelecido se sente mais fortinho ao ponto de não querer deixar sem resposta uma provocação desse calibre, as reações tomaram apenas a forma de imprecações e rosnados, seguidos de um silêncio amuado. “Fantasias!”, protestou Claude Lévi-Strauss – e mais não disse nem lhe foi perguntado. Nenhuma objeção detalhada o bastante para passar por séria elevou-se contra o empreendimento girardiano, que vai exercendo uma influência cada vez maior nos terrenos mesmos onde a exclusão do cristianismo desfrutava do prestígio de uma exigência metodológica primeira.

O mais irônico da história é que Girard é homem alheio à agitação intelectual parisiense, vivendo há quase meio século em Stanford, Califórnia, e publicando em inglês boa parte de sua obra.

Mas onde, precisamente, ataca Girard o templo do academicismo? “Não se vence realmente senão aquilo que se substitui”, dizia Nietzsche. Girard não perde tempo criticando teorias e escolas: oferece uma explicação melhor para os fenômenos sobre os quais elas reinavam soberanas, e ei-las desprovidas de razão de ser, pairando no ar como inúteis flocos de espuma.

A substituição é global e repentina. Onde cada uma dessas escolas, além de ter lá suas fragilidades intrínsecas, não conseguia abranger senão um grupo especializado de fenômenos, deixando os outros às vizinhas que não raro a contradiziam na base, o sistema Girard, como veio a ser chamado, reúne tudo num bloco – leis, instituições, costumes, mitologias, valores, obras de arte – e submete o conjunto a um mesmo princípio explicativo, simples e poderosamente convincente. A nova chave das ciências humanas demite, de um só golpe, o complexo de Édipo e a luta de classes, as estruturas do parentesco e todos os demais ícones teóricos, que só conservam seu antigo prestígio em longínquas terras do Terceiro Mundo ainda não abaladas pelos ecos da revolução girardiana.

O princípio encontrado por Girard pode-se resumir em um parágrafo. Todas as instituições humanas têm origem ritual, e o ritual resume-se no sacrifício. O sacrifício consiste em descarregar sobre um bode expiatório, vítima inocente e indefesa, os ódios e tensões acumulados que ameaçavam romper a unidade social. Estes ódios e tensões, por sua vez, surgem da impossibilidade de conciliar os desejos humanos. A razão desta impossibilidade reside no caráter mimético do desejo: cada homem não deseja isto ou aquilo simplesmente porque sim, porque é bonito, porque é gostoso, porque satisfaz alguma necessidade, mas sim porque é desejado também por outro ser humano, cujo prestígio cobre de encantos, aos olhos do primeiro, um objeto que em si pode ser inócuo, ruim, feio ou prejudicial. O mimetismo é o tema dominante da literatura, assim como o sacrifício do bode expiatório é o tema dominante, se não único, da mitologia universal e do complexo sistema de ritos sobre o qual se ergue, aos poucos, o edifício político e judiciário. A vítima é escolhida entre as criaturas isoladas, inermes, cuja morte não ofenderá uma família, grupo ou facção: ela não tem vingadores, sua morte portanto detém o ciclo da retaliação mútua. Mas a paz é provisória. Por um tempo, a recordação do sacrifício basta para restabelecê-la. Nesta fase a vítima sacrificial se torna retroativamente objeto de culto, como divindade ou herói cultural. Ritualizado, o sacrifício tende a despejar-se sobre vítimas simbólicas ou de substituição: um carneiro, um boi. Quando o sistema ritual perde sua força apaziguante, renascem as tensões, espalha-se a violência que, se não encontrar novas vítimas sacrificiais, leverá tudo ao caos e à ruína. A sociedade humana ergue-se assim sobre uma violência originária, que o rito ao mesmo tempo encobre e reproduz.

Mas essa violência funda-se, essencialmente, numa ilusão. O sacrifício não tem, por si, o poder de gerar efeitos benéficos. Se estes acabam por se produzir, é por intermédio da crença generalizada que despeja os ódios sociais no inocente e aplaca uma sede de vingança irracional que a sociedade atribui a um deus, mas que vem dela mesma. Esta crença, por sua vez, vem do desejo mimético, que, se escolhe por objeto uma miragem, pode se satisfazer igualmente com uma miragem de causa quando se trata de explicar a origem dos males humanos.

Assim fecha-se o sistema: o mimetismo causa a insatisfação, a insatisfação causa os ódios, os ódios ameaçam a ordem social, a ordem social se restaura mediante o sacrifício do inocente, que então vira mais um deus no panteão do engano universal.

O ciclo sacrificial só é rompido uma única vez na História, com o advento do cristianismo. Cristo proclama a inocência das vítimas, a inocuidade dos sacrifícios, a falsidade dos deuses vingativos: “Todos os que vieram antes de Mim são ladrões.” Ele substitui a vingança social pelo arrependimento individual, restabelecendo o nexo racional entre os atos e as conseqüências, antes nublado pela mitologia sacrificial. Da desmistificação do sistema antigo nasce não somente a consciência moral autônoma, mas a possibilidade do conhecimento objetivo da natureza: Cristo inaugura a primeira civilização – a nossa – que sabe haver mais justiça no perdão do que na vingança, mais verdade no nexo impessoal de causas e efeitos do que na atribuição de um poder maligno àqueles que desejamos matar.

A massa de documentos que Girard, paleógrafo de formação, submeteu a meticulosas análises de texto para comprovar sua teoria é impressionante: vai das primeiras mitologias indo-arianas às obras de Proust.

Não menos impressionante é a mudança de perspectiva que, sob o impacto da teoria girardiana, sofre a nossa visão das idéias e conflitos contemporâneos. O totalitarismo, por exemplo, aparece como o estado fatal a que caminha um mundo que, tendo rejeitado o antigo sistema mitológico sacrificial, não deseja pôr em seu lugar o cristianismo: não há saída senão voltar à matança de vítimas humanas, sob os nomes de “burguesia”, “judeus”, “reacionários”, “negros impuros”, “políticos corruptos”, etc. O nazismo surge, a essa luz, como uma oposição frontal ao cristianismo, preconizada por Nietzsche em páginas que defendem, abertamente, o retorno aos sacrifícios humanos. O socialismo, em contrapartida, é o simulacro que pretende substituir o cristianismo, sugando as energias cristãs para colocá-las a serviço da caça ao bode expiatório. Nas democracias capitalistas, o mais temível forma de anticristianismo é o “politicamente correto”, onde cada grupo, divinizando a própria autovitimização, se nomeia o sacerdote de novas vinganças sacrificiais.

Girard não diz isto em parte alguma, mas é altamente corroborador de suas interpretações o fato de que, de todos os povos discriminados e perseguidos, o único que não explora seus sofrimentos como meio para a conquista do poder de vingança é justamente aquele que mais vítimas forneceu à violência do século XX: o povo cristão, do qual pereceram pelo menos trinta milhões de membros no altar da perseguição religiosa – o jamais mencionado holocausto cristão.

Girard também não cita, entre seus precursores, certamente porque o desconhece, o nome do psiquiatra húngaro Lipot Szondi. Mas não é possível pensar em fenômenos como o desejo mimético e o bode expiatório sem lembrar a teoria do “complexo de Caim” que esse grande sábio colocou no lugar do artificioso “complexo de Édipo” freudiano, já na década de 20. Mas Szondi foi, ele próprio, um bode expiatório: ao lado dessa teoria, defendia também a raiz genética das doenças mentais, o que na época era considerado puro nazismo pela escola culturalista dominante (que preferia culpar “a educação”, “os pais” etc.). Não ficava bem chamar Szondi de nazista, porque ele era judeu; mas, tão logo saiu do campo de concentração onde o haviam posto os nazistas, foi colocado na geladeira do esquecimento pelos democratas e socialistas.

29/05/98

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