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Ladeira abaixo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 31 de agosto de 2009

“Cuán difícil es,

Cuando todo baja,

No bajar también.”

Antonio Machado

Uma classe intelectual bem preparada, culta, mentalmente robusta, é a garantia única de que as opiniões circulantes na sociedade se manterão dentro dos limites do verossímil e do razoável, sem extraviar-se em especulações psicóticas nem cegar-se, com aquela inibição própria das mentes vulgares, para tudo o que escape à sua visão rotineira e banal do mundo.

Aqui nos EUA, malgrado a queda vertiginosa do nível do ensino primário, médio e universitário em comparação com o que havia nos anos 50, ainda existe uma intelectualidade forte, numerosa e ativa, assegurando que, nos debates públicos, nenhum aspecto relevante será de todo ignorado. Mesmo quando a maioria se equivoca, sempre há algumas inteligências mais despertas que chamam a atenção para o que interessa, e sua voz, decorrido algum tempo, não raro acaba por prevalecer.

A rapidez com que os próprios eleitores de Obama perceberam o que havia de desastroso na proposta econômica, nos planos de saúde e na política de imigração do novo presidente mostra que os debates entre estudiosos especializados podem vazar para a população geral e influenciar decisivamente o rumo dos acontecimentos. Hoje, até a mídia obamista mais devota confessa que o profeta ungido da campanha presidencial está desorientado, “com medo até da própria sombra” (sic). É uma grande derrota que as análises sérias infligem aos entusiasmos postiços da retórica publicitária.

Já no Brasil o estado de alienação dos “formadores de opinião”, sua absoluta incapacidade (ou recusa?) de apreender a hierarquia objetiva dos fatos e fatores, sua total escravidão mental a estereótipos surrados de oratória estudantil, sua autocastração sacrificial em ritos de bom-mocismo patético fazem das discussões públicas um permanente exercício de fuga à realidade, um jogo de esconde-esconde onde todos são otários, a começar pelos que pretendem ser os maiores vigaristas.

Como é possível, por exemplo, que a ocultação da existência do Foro de São Paulo pela totalidade da mídia nacional, uma vez revelada, não tenha se tornado objeto de exame, de debates, nem mesmo por parte daqueles que posam de observadores e analistas profissionais, se não acadêmicos, da indústria midiática? Como é possível que fenômeno tão inusitado e de tão descomunal importância histórica – preparação indispensável à ascensão e permanência do PT na presidência da República – não suscite, nessas criaturas sempre dispostas a opinar sobre tudo o que diz respeito ao jornalismo, senão o impulso de virar os olhos para o outro lado, de fingir que não viram nada, de encobrir com uma segunda camada de camuflagens a mais vasta operação-camuflagem já havida na história da mídia nacional?

O pacto mafioso de lealdade corporativa – menos a uma classe profissional do que ao seu compromisso esquerdista já velho de três gerações – explica, é claro, muita coisa. A maior parte dos que poderiam analisar o fenômeno não deseja fazê-lo porque isso exporia a um vexame colossal – se não a alguns processos judiciais – quase todos os diretores de jornais, chefes de redação, comentaristas políticos, etc. O cuidado com que os pretensos estudiosos de mídia contornam essa hipótese constrangedora é tamanho, tão meticulosa a escrupulosidade com que evitam magoar colegas de ofício e companheiros de ideologia, que o direito do público à informação veraz simplesmente desaparece do seu horizonte de consciência. Eles tornam-se, assim, ainda mais criminosos que os autores do delito inicial. Promovem a ocultação da ocultação, o acobertamento do acobertamento, a desinformátzia da desinformátzia.

Essa epidemia de sem-vergonhice midiática, porém, jamais seria possível se, acima da classe jornalística, existisse uma intelectualidade, acadêmica ou não, capaz de sobrepor o desejo de compreensão dos fatos aos miúdos interesses, temores, preconceitos e safadezas de uma máfia profissional desprezível.

Infelizmente, essa intelectualidade inexiste no Brasil. A total destruição da cultura superior, a instrumentalização das instituições de cultura como órgãos de promoção de nulidades politicamente convenientes –, foi a condição prévia sem a qual a ética dos fiscais da ética alheia não poderia jamais ter descido tão baixo.

Ordem do dia e ordem pública

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 15 de abril de 1999

Criminalizar a Revolução de Março de 1964, dar a um dos regimes autoritários mais brandos, equilibrados e produtivos que o mundo já conheceu as feições monstruosas de um nazi-fascismo tupiniquim, eis o empreendimento de falsificação histórica em que se irmanam, se abraçam e se lambuzam, na promiscuidade da mentira comum, a oposição de esquerda e o governo de centro-esquerda de um país sem direita.

Destaca-se, nessa confraternização do embuste, a harmonia preestabelecida entre uma imprensa que vocifera contra os mortos e as autoridades que mandam silenciar todo discurso de defesa. O que em condições naturais seria objeto de debate se torna, pelo duplo artifício concordante, objeto de unanimidade, evidência do senso comum e, por fim, dogma e verdade eterna.

Mas, após anos de silêncio, a Revolução de Março de 1964 voltou a ser celebrada numa Ordem do Dia do ministro do Exército, no último dia 31. A importância política desse acontecimento é mais que evidente. Por isto mesmo ele foi suprimido dos nossos jornais, a pretexto de “não dar força aos direitistas”, como se a mídia existisse para dar ou tirar força conforme os caprichos da igrejinha comunista que a comanda, e não para informar ao público o que ele tem o direito de saber.

Aproveito-me desta ilha de liberdade num oceano de dirigismo, o JT , para informar portanto: os homens de armas cansaram-se da mordaça que lhes foi imposta. Mas, se não é mais possível obrigar os militares a apagar a própria memória, resta pelo menos o expediente de impedir que o povo saiba que a máquina de emudecimento quebrou. O que o governo não conseguiu reprimir, a imprensa conseguirá suprimir – e o que houve será como se não tivesse havido.

Ninguém, como os comunistas, tem a habilidade de mudar o passado conforme a política  do presente. Após 30 anos de paciente esforço eles lograram enfim controlar todos os canais de veiculação das idéias, e não estão dispostos a deixar passar uma única palavra que possa abalar a crença cega da população na certeza absoluta da História oficial. Nunca, ao longo de toda ditadura militar, o governo conseguiu impor a toda a imprensa um silêncio tão uniforme, tão completo, tão impenetrável ao natural impulso humano de fazer perguntas e duvidar das respostas. Na época da censura institucionalizada, eu estava no JT , na editoria de política então chefiada por Sérgio Rondino e Miguel Jorge, e atesto que a barreira das proibições era furada diariamente por mil e um artifícios, dos quais não foi o menos engenhoso o de passar sutilmente algo das notícias censuradas, em linguagem alusiva, no corpo das próprias receitas de bolo incumbidas de preencher seu espaço. Um texto vetado que trazia alguma denúncia contra o então governador Laudo Natel foi substituído por uma receita aparentemente inofensiva, mas encimada pelo título: “Lauto Pastel”. Foi um tempo de infâmia, como no poema de Antonio Machado, mas essas piruetas da inventividade libertária nos devolviam, por instantes, o gosto de viver.

Isso era possível porque o censor era um só, vindo de fora, um funcionário ignorante da Polícia Federal competindo em luta desigual com a astúcia de profissionais, atarantado como um velho cão sem faro, feito de bobo por um bando alegre de raposas.

Hoje, os censores são centenas, são milhares. São as próprias raposas que viraram cães de guarda e, com a idade madura, aprenderam que o prazer de falar é apenas uma brincadeira insossa em comparação com a volúpia superior de mandar calar. O ministro do Exército disse o que não queriam que dissesse? Pois que fale sozinho, num quartel de fronteira, longe dos olhos e ouvidos da multidão. Mas trata-se de um ministro da República? Tanto pior.

Que suas palavras morram no desprezo e no esquecimento, como se fossem as de um soldadinho bêbado num botequim de estrada. Ninguém, ninguém violará a santa unanimidade constituída, ninguém perturbará o sono dogmático de uma nação que, por ordens médicas do dr. José Gregori, se esqueceu de metade de si. Em nome da ordem pública, suprima-se pois a ordem do dia, e imprima-se em letras áureas o testemunho dos tempos ante o eterno: o ministro não disse nada.

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