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O Foro de São Paulo, versão anestésica

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de janeiro de 2007

Depois de esconder por dezesseis anos a existência da mais poderosa entidade política latino-americana, a mídia chique deste país, vencida pela irrefreável divulgação dos fatos na internet, trata agora de disfarçar, como pode, o mais torpe e criminoso vexame jornalístico de todos os tempos. O expediente que usa para isso é ainda mais depravado: caluniar, difamar, sujar a reputação daqueles poucos que honraram os deveres do jornalismo enquanto ela não se ocupava senão de prostituir-se, vendendo silêncio em troca de verbas estatais de propaganda.

Envergonhada de si mesma, ela não tem nem a dignidade de citar nominalmente essas honrosas exceções. Designa-as impessoalmente, fingindo superioridade, mediante pejorativos genéricos. O mais comum é “radicais de direita”. Encontro-o de novo no artigo “Os limites de uma onda esquerdista”, assinado por César Felício no jornal Valor no último dia 12.

O autor é uma nulidade absoluta, e eu jamais comentaria uma só linha da sua fabricação se as nulidades não se tivessem tornado, num jornalismo de ocultação, os profissionais mais necessários e bem cotados. Por favor, não me acusem de caçar mosquitos. Compreendam o meu drama: nas presentes circunstâncias, a recusa de falar de nulidades me deixaria totalmente desprovido de material nacional para esta coluna.

A primeira coisa que tenho a dizer a esse moleque é bem simples: Radical de direita é a vó. Antigamente chamava-se por esse qualificativo o sujeito que advogasse a matança sistemática de comunistas como os comunistas advogam e praticam a matança sistemática de populações inteiras. Hoje em dia, para ser carimbado como tal, basta você ser contra o aborto ou o casamento gay. Basta você achar que o Foro de São Paulo existe e é perigoso. Basta você fazer as contas e notar que centenas de prisioneiros morreram de tortura na Guantanamo cubana e nenhum na americana. Basta você apelar à matemática elementar e concluir que a guerra do Iraque matou muito menos gente do que o regime de Saddam Hussein sob os olhos complacentes da ONU. Se você incorre em qualquer desses pecados mortais, lá vem o rótulo infamante grudar-se na sua pessoa indelevelmente, como marca de escravo fujão ou ferrete de gado. E não vem por via de nenhum jornaleco de partido, de nenhum panfleto petista. Vem pela Folha de São Paulo, pelo Globo, pelo Estadão, pelo jornal Valor – os órgãos da burguesia reacionária, segundo o site oficial do PT.

Que é que posso concluir disso, objetivamente, senão que a esquerda radical conseguiu impor à grande mídia a sua escala de mensuração ideológica e o correspondente vocabulário, agora aceitos como opinião centrista, equilibrada, mainstream, enquanto as opiniões que eram da própria grande mídia ontem ou anteontem já não podem ser exibidas ante o público porque se tornaram politicamente incorretas?

Será extremismo de direita concluir que o eixo, o centro, se deslocou vertiginosamente para a esquerda, criminalizando tudo o que esteja à direita dele próprio? Será extremismo de direita concluir que a única direita admitida como decente na mídia chique é o tucanismo – abortista, gayzista, quotista racial, desarmamentista, politicamente corretíssimo, padrinho do MST e filiado à internacional socialista, além de bettista e boffista, quando não abertamente anticristão? Será extremismo direitista notar que o traço mais saliente dessa direita bem comportadinha é a abstinência radical de qualquer veleidade anticomunista? Será extremismo de direita entender que esse fenômeno é a manifestação literal e exata da hegemonia tal como definida por Antonio Gramsci? Será extremismo de direita concluir que o establishment midiático deste país é, no seu conjunto, um órgão da esquerda militante mesmo nos seus momentos de superficial irritação antipetista, quando jamais proferiu contra o partido dominante uma só crítica que não viesse de dentro da esquerda mesma e que não fosse previamente expurgada de qualquer vestígio de conteúdo ideológico direitista?

Qualquer pessoa intelectualmente honesta sabe que um juízo de fato não pode ser derrubado mediante rotulação infamante. Tem de ser impugnado pelo desmentido dos fatos. Se quiser rotulá-lo, faça-o depois de provar que é falso. Não antes. Não em substituição ao desmentido. Ora, o tal Felício, em vez de desmentido, fornece uma brutal confirmação. Vejam só:

O grupo que se reúne a partir de hoje em San Salvador… atende pelo nome de ‘Foro de São Paulo’ e nasceu sob o patrocínio do PT, em 1990. Os encontros anuais não costumam chamar muita atenção, a não ser de certos radicais de direita no Brasil.”

Ora, como é possível que encontros esquerdistas anuais repetidos ao longo de uma década e meia, com centenas de participantes, entre os quais vários chefes de Estado, não chamem atenção exceto de radicais de direita? Ninguém na esquerda prestou atenção ao Foro de São Paulo? O sr. Lula fez um discurso presidencial inteiro a respeito sem prestar a mínima atenção à entidade da qual falava? Antes disso, quando presidia pessoalmente as sessões da entidade até 2002, não lhes prestou nenhuma atenção? Entrava em transe hipnótico e balbuciava mensagens do além, sem se lembrar de nada ao despertar? Os jornalistas de esquerda que, às dezenas, compareceram aos debates, foram lá por pura desatenção, dormiram durante as assembléias e voltaram para casa sem coisa nenhuma para contar? O sr. Bernardo Kucinsky, um dos fundadores da entidade, que emocionado assistiu ao nascimento dela num encontro entre Fidel Castro e Lula, não prestou a mínima atenção àquele momento supremo da sua vida de militante esquerdista? Pago com dinheiro público para relatar aos eleitores os atos presidenciais, calou-se por mera distração, e também por mera distração guardou os fatos para contá-los depois no seu livro de memórias, onde só os colocou porque não tinham a mínima importância?

Ora, menino bobo, você não sabe a diferença entre a desatenção e a atenção extrema acompanhada de um propósito deliberado de ocultar? Que você seja desprovido do senso da verdade, vá lá. Sem isso não se sobe no jornalismo brasileiro. Mas será que você precisa também desprover-se do senso do ridículo ao ponto de tentar minimizar a importância do Foro e logo em seguida, citando documento oficial da entidade, alardear que “na primeira reunião do grupo, em 1990, os integrantes estavam no governo em um único país: Cuba. Hoje desfrutam o poder na Venezuela, Brasil, Bolívia, Nicarágua, Argentina, Chile, Uruguai e Equador”? Você acha mesmo que a organização que planejou e dirigiu a mais espetacular e avassaladora expansão esquerdista já observada no continente é um nada, um nadinha, no qual só radicais de direita ou teóricos da conspiração poderiam enxergar alguma coisa?

Na verdade, o próprio Felício enxerga ali alguma coisa. Ele cita o documento oficial: “Passamos a controlar uma cota de poder, mas as outras cotas continuam sob controle das classes dominantes. Os chamados mercados, as grandes empresas de comunicação, os setores da alta burocracia do Estado, os comandos centrais das Forças Armadas, os poderes Legislativo e Judiciário, além da influência dos governos estrangeiros, competem com o poder que possuímos.”

Ou seja: a entidade que já domina os governos de nove países não admite, não suporta, não tolera que parcela alguma de poder, por mais mínima que seja, esteja fora de suas mãos. Nem mesmo as empresas de comunicação e o judiciário, sem cuja liberdade a democracia não sobrevive um só minuto. Com a maior naturalidade, como se fosse uma herança divina inerente à sua essência, o Foro de São Paulo, com a aprovação risonha do nosso partido governante, reivindica o poder ditatorial sobre todo o continente.

Felício lê esse documento assim:  “Os limites a um poder absoluto parecem incomodar os participantes do encontro.” Parecem, apenas parecem. Quem ficaria alarmado com aparências, senão radicais de direita? Afinal, eles vivem enxergando comunistas embaixo da cama, não é mesmo?

Para tranqüilizar a população, Felício trata de lhe mostrar que no Foro não há socialismo nenhum, apenas o bom e velho populismo nacionalista, tão difamado pelos agentes do imperialismo. “Um mesmo discurso estava presente na oposição a Perón e a Getúlio nos anos 40 e 50. Reapareceu, quase igual, no tipo de ataque recebido ano passado por Lopez Obrador no México e Evo Morales na Bolívia.

A circunstância de que, ludibriados por milhares de Felícios, até membros da oposição temam dar nome aos bois, preferindo falar de “populismo” em vez de comunismo, é usada como prova de que o Foro não é uma organização comunista. O fato é que as idéias e as pessoas dos velhos populistas jamais aparecem citadas nos documentos do Foro como exemplos a ser imitados. Ao contrário, os apelos à tradição revolucionária comunista ressurgem a cada linha, com todos os seus heróis e símbolos, com todos os cacoetes lingüísticos medonhos do jargão marxista-leninista mais típico e obstinado, acompanhados da declaração explícita, infindavelmente repetida, de que a meta é o socialismo. Mas, decerto, todos os participantes do Foro, todos aqueles tarimbados militantes revolucionários treinados em Cuba, na China e na antiga URSS, estão equivocados quanto à sua própria ideologia e metas. Eles apenas pensam que são comunistas, socialistas, marxistas. Felício é quem, penetrando com seus olhos de raios-x no fundo das almas deles, sabe que não são nada disso. São getulistas que se ignoram.

A prova? Ele não se recusa a fornecê-la. É esta: “Antes de ser uma verdadeira marcha ao socialismo, a ofensiva de Chávez… sugere a coroação de um processo de concentração de poder ”. Entenderam a lógica profunda? Se é concentração de poder, não é socialismo. Pena que ninguém avisou disso Marx, Lênin, Stalin, Mao, Fidel e Che Guevara. Todos eles sempre entenderam, ao contrário, que a concentração de poder é a única via para o socialismo, é a essência mesma do processo revolucionário. Mas talvez estivessem enganados, tanto quanto a turminha do Foro. Quem entende do negócio é César Felício.

No tempo em que havia jornalismo no Brasil, um sujeito como esse não seria designado para cobrir nem partida de futebol de botão. Hoje ele é uma espécie de modelo, reproduzido às centenas em todas as redações. O resultado é óbvio. Faça um teste. Segundo pesquisa da Folha de São Paulo, a opinião majoritária dos brasileiros é acentuadamente conservadora. É contra o casamento gay, contra o aborto, contra as quotas raciais, contra o desarmamento civil. É contra tudo o que os Felícios amam. É até a favor da pena de morte para crimes hediondos. E confia infinitamente mais nas forças armadas do que na classe jornalística que as difama sem cessar. Quantos jornalistas, nas redações das empresas jornalísticas de grande porte, se alinham com essa opinião majoritária? Não fiz nenhuma enquete, mas, por experiência pessoal, afirmo: poucos ou nenhum. A leitura diária dos jornais confirma isso da maneira mais patente.

A opinião pública brasileira não é refletida nem representada pela grande mídia. Não tem direito a voz, a não ser por exceção raríssima concedida a algum colaborador ocasional só para depois ser exibida como exemplo de aberração extremista, felizmente compensada pela pletora de articulistas serenos, normais e equilibrados que igualam George W. Bush a Hitler e Abu-Ghraib a Auschwitz.

A idéia mesma de que uma mídia só pode ser equilibrada quando reflete proporcionalmente a divisão das correntes de opinião no país já desapareceu por completo da memória nacional. O simples ato de enunciá-la tornou-se prova de direitismo radical. Resultado: a elite microscópica de tagarelas esquerdistas que domina as redações (não mais de duas mil pessoas) se permite tomar a sua própria opinião como medida da normalidade humana, condenando como patológicas e virtualmente criminosas as preferências gerais da nação.

Quem se coloca em tais alturas está automaticamente liberado de prestar quaisquer satisfações à realidade. Não quer conhecê-la, quer transformá-la. Para transformá-la, não é preciso mostrar os fatos às pessoas: é preciso alimentá-las de crenças imbecis que as induzam a se comportar da maneira mais adequada para favorecer a transformação. Da classe empresarial que lê o jornal Valor, que é que se espera? Que permaneça idiotizada e passiva, embriagada de falsa segurança, incapaz de mobilizar-se em tempo para se opor à onda revolucionária que vai submergindo o continente. Foi para isso que os Felícios lhe negaram por dezesseis anos o conhecimento do Foro de São Paulo. É para isso que, hoje, não podendo mais levar adiante a operação-sumiço, apelam à operação-anestesia, chamando-a, cinicamente, de jornalismo. E são pagos para fazer isso pelos próprios empresários de mídia, aqueles mesmos cujas empresas o Foro de São Paulo promete calar ou expropriar junto com todos os demais instrumentos de exercício da liberdade, num futuro mais breve do que todos imaginam.

P. S. – Mal saiu o artigo da semana passada, começaram a chover na minha caixa postal mensagens de amigos protestantes que reclamavam de eu haver incluído John Wycliff entre os pioneiros das ideologias revolucionárias. Eu não me lembrava de ter escrito nada de John Wycliff, mas, quando fui ver, notei, horrorizado, que o nome dele estava mesmo lá, em lugar do de John Knox, este sim um revolucionário. Peço desculpas a todos por essa distração lamentável.

Adendo ao resumo didático

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 19 de outubro de 2006

Toda a cúpula petista se formou lendo Marx, Lênin, Trotski, Mao, Che Guevara, Antonio Gramsci, e nem uma palavra contra. Passaram a vida intoxicando-se de esquerdismo e nada enxergam fora do horizonte consagrado da sua mitologia grupal. O domínio que têm da cultura revolucionária contrasta brutalmente com sua radical ignorância do pensamento conservador, ignorância que lhes permite inventar uma direita por mera inversão mecânica de seus próprios estereótipos e investir suas melhores energias no combate a essa miragem.

Em última análise, eles nada têm feito nos últimos trinta anos senão arrombar portas abertas, sob os aplausos e a proteção paternal da classe que alardeiam combater. Críticas e acusações, quando lhes vêm, vêm da própria esquerda, com o cuidado meticuloso de ater-se a pontos específicos que não maculem a honorabilidade do esquerdismo enquanto tal. Combate ideológico, não sofrem nenhum. Devem seu sucesso à ausência de inimigos, exceto os nascidos das suas próprias fileiras. A lenda do assédio direitista serve-lhes como vacina contra a percepção de que todos os seus fracassos advêm de sua própria inépcia e não de alguma resistência exterior. Fugindo de uma autoconsciência deprimente por meio do ódio a um objeto imaginário, sua mentalidade é uma mistura quase inconcebível de astúcia maquiavélica e ingenuidade pueril, aterrorizada por fantasmas de sua própria fabricação. Conseguem criar planos estratégicos de requintada complexidade, ludibriando suas vítimas durante décadas, mas quando pegos com as calças na mão saem-se com evasivas de meninos de escola, tão rudimentares que dão pena. Passam da vociferação autoritária aos gemidos de autopiedade com a rapidez do fingimento histérico, que só não dá na vista deles próprios.

São falsos até à medula, mas seus críticos esquerdistas são piores ainda. O PT, quando subiu ao poder sobre os escombros das reputações destruídas pelo seu moralismo acusador, montando ao mesmo tempo uma máquina de roubar mais ambiciosa e voraz do que mil Anões do Orçamento, não fez senão seguir a fórmula clássica de Lênin: corromper o capitalismo para acusá-lo de corrupto (e ainda financiar a propaganda anti-roubo com dinheiro roubado). Isso é de um realismo inatacável e, dentro da moral comunista, perfeitamente obrigatório. O antipetismo de esquerda, ao fingir-se de indignado com a roubalheira oficial, quer nos fazer crer que pode e vai operar a transição revolucionária para o socialismo dentro da mais estrita obediência à moral e às leis do Estado burguês. O PT, quando fazia essa mesma promessa, sabia que mentia. Tanto que já ia preparando os futuros mensalões e waldomiragens. Era desonesto para com o Brasil inteiro, mas honesto para com o compromisso leninista. Já os psóis da vida são tão falsos intrinsecamente, tão desprovidos do senso da verdade, que prometem o impossível com perfeita sinceridade subjetiva. Por isso mesmo não se vexam de explicar como traição àquele compromisso o que foi na verdade a sua implementação fiel. Se há algo de que o PT está inocente, é de infidelidade à estratégia comunista.

Em plena guerra assimétrica

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 24 de julho de 2006

Quando o sr. Hugo Chávez proclama que sua estratégia contra os EUA é a da “guerra assimétrica”, já não há como negar que esse conceito é o instrumento essencial para a descrição e compreensão do estado de coisas na América Latina. Se nossos comentaristas internacionais, analistas estratégicos, politólogos e tutti quanti continuam a usá-lo com parcimônia ou a abster-se por completo de usá-lo, não é só por preguiça mental: é porque um dos elementos fundamentais da assimetria é a desigual iluminação do quadro. Esses cavalheiros jamais desejariam ver o seu querido mentor bolivariano mostrado à mesma luz implacável e crua com que seus inimigos são exibidos e dissecados diariamente na mídia. Conceder a um dos lados o direito à penumbra protetora e obrigar o outro a um contínuo strip-tease ante a curiosidade sádica dos holofotes não é descrever nem analisar a guerra assimétrica: é praticá-la. Jornalistas, professores e similares, os “formadores de opinião” ou “intelectuais”, no sentido calculadamente elástico que Antonio Gramsci dá ao termo, são a vanguarda da revolução. Sua função não consiste em mostrar o mundo como ele é, mas transformá-lo naquilo que ele não é. Deformar propositadamente o quadro, portanto, é seu dever profissional número um.

Mas a palavra mesma “deformação” é um tanto enganosa. Deformar por meio do fluxo de informações uma realidade preexistente é uma coisa; outra bem diversa é criar praticamente do nada uma nova realidade constituída de puro fluxo de informações. Mentir em situações de guerra, para favorecer um dos lados, é tão antigo quanto a própria guerra. Mas mesmo o formidável desenvolvimento da técnica da desinformação ao longo de duas guerras mundiais e inumeráveis revoluções do século XX não dá uma imagem adequada do que hoje se passa. Em todos esses casos, os “formadores de opinião” desempenhavam um papel auxiliar: a parte substantiva dos conflitos desenrolava-se nos campos de batalha. Os protagonistas da narrativa bélica eram os militares, os guerrilheiros, os terroristas, os partiggiani. Jornalistas e tagarelas em geral formavam apenas o coro. Nas últimas décadas, as proporções inverteram-se. A integração mundial das comunicações e a conseqüente reorganização da militância revolucionária em “redes” de extensão planetária permitiram reduzir ao mínimo a função bélica das armas e ampliar ao máximo a da guerra de informações. O princípio subjacente a essa mudança é simples e baseia-se na regra clássica da arte militar que mede a eficácia da ação armada segundo a relação custo-benefício que ela guarda com os resultados políticos visados. Quanto mais ampla a repercussão política que se pode obter com um esforço militar reduzido, tanto melhor. Nesse sentido, batalhas inteiras da II Guerra Mundial, com centenas de milhares de mortos, foram politicamente menos relevantes do que alguns ataques terroristas comparativamente modestos realizados nas últimas décadas, pela simples razão de que neste caso havia meios de alcançar repercussão jornalística mais vasta e mais imediata, determinando decisões de governo que em outras épocas necessitariam de um estímulo sangrento muito mais eloqüente. Exemplos característicos foram a guerrilha mexicana de Chiapas, militarmente irrisória, que graças ao apoio instantâneo da mídia internacional conseguia transformar em vitória política cada nova derrota que sofria em combate, e o atentado à estação férrea de Madri, que do dia para a noite fez a Espanha mudar de lado na guerra contra o terrorismo. Napoleão, Rommel, Zhukov ou MacArthur jamais sonharam em obter resultados tão espetaculares com investimentos bélicos tão minguados.

O fenômeno ao qual estou me referindo recebe às vezes o nome de “guerra informática” (netwar). A bibliografia a respeito já é bem extensa e foi inaugurada em 1996 com a excelente monografia da Rand Corporation sobre a guerrilha de Chiapas, The Zapatista ‘Social Netwar’ in Mexico, que pode ser comprada ou descarregada gratuitamente em PDF no site http://www.rand.org/pubs/monograph_reports/MR994/index.html, mas nunca encontrei entre as elites brasileiras, seja intelectuais, empresariais, políticas ou militares, quem a tivesse lido. Menos ainda encontrei quem tivesse alguma consciência clara da ligação entre guerra informática e guerra assimétrica, embora essa ligação seja a chave mesma para a compreensão do quadro internacional hoje em dia. A fórmula do negócio pode ser enunciada numa frase: A guerra assimétrica não é outra coisa senão uma estratégia destinada a compensar a desproporção de força e capacidade militares por meio da guerra informática. Uma sugestão para quem deseje entender o funcionamento da coisa é ler a monografia da Rand junto com o livro de Jacques Baud, La Guerre asymétrique, ou la défaite du vainqueur, Paris, Editions du Rocher, 2003.

Uma vez que se entendeu a unidade de guerra informática e guerra assimétrica – e quem não entendeu está fora do mundo –, torna-se inevitável tirar dessa convergência de estratégias algumas conclusões óbvias:

1. Os alvos da guerra assimétrica são três e sempre os mesmos: os EUA, Israel e aquilo que, nesses países ou em quaisquer outros, ainda reste da civilização judaico-cristã. A “guerra cultural” é parte integrante da guerra assimétrica.

2. Se a identidade dos alvos é nítida e bem conhecida, a das forças atacantes permanece difusa e nebulosa ao ponto de que a noção mesma de sua unidade estratégica continua impensável até para o público mais culto. Para apreendê-la é preciso ter estudado a estrutura das “redes”, mapeando a circulação de dinheiro, de informações e de palavras-de-ordem entre governos, fundações, partidos políticos, ONGs, banditismo organizado e mídia no mundo inteiro. Elementos para esse estudo podem ser encontrados nos sites http://www.discoverthenetworks.org e www.activistcash.com, que já citei aqui, bem como na recém-inaugurada seção “Mapas Visuais” do jornal eletrônico brasileiro www.midiasemmascara.com.br. Quem quer que examine esse material com a devida atenção sabe que a existência de um eixo anti-americano, anti-israelense e anticristão formado pelos governos da Rússia e da China, pelas fundações globalistas bilionárias, pela grande mídia esquerdista chique, pela rede terrorista internacional e por milhares de organizações militantes espalhadas pelo mundo não é uma hipótese ou uma teoria: é um fato brutalmente real – o fato essencial do nosso tempo. Mas as informações que o evidenciam não saem, é claro, no “Jornal Nacional” nem na “Folha”, não são alardeadas desde o alto das cátedras universitárias e, enfim, não chegam de maneira alguma ao público maior. O resultado é que a hostilidade contra os EUA, Israel e o cristianismo, meticulosamente fabricada a um custo de muitos bilhões de dólares, parece surgir do nada, como manifestação espontânea dos belos sentimentos morais da humanidade – e qualquer tentativa de contestar essa hipótese logicamente insustentável e supremamente imbecil é rejeitada, mesmo por pessoas cultas, como “teoria da conspiração”. O sucesso psicológico da guerra assimétrica pode medir-se pela facilidade com que histórias da carochinha acabam parecendo mais verossímeis do que os fatos mais abundantemente comprovados.

3. A função da mídia e dos “formadores de opinião” em geral, no novo quadro estratégico, é bem diversa daquele papel meramente auxiliar que tiveram em outras ocasiões, incluindo nisto as vastas campanhas de desinformação e manipulação montadas pelo governo soviético desde a década de 30 até o fim da Guerra Fria (campanhas cuja amplitude permanece ainda desconhecida fora do círculo dos estudiosos, por ter sido revelada só a partir da abertura temporária dos Arquivos de Moscou). Se a orientação geral é inverter as proporções recíprocas do esforço bélico e da manipulação informática que o transmuta em resultados políticos, os militares e terroristas é que se tornam força auxiliar, enquanto o papel principal incumbe aos manipuladores da opinião pública. Uma vez que você percebeu isso, sabe que é uma ingenuidade suicida continuar interpretando a situação como se os únicos agentes revolucionários que importam fossem os terroristas e os militantes mais descarados a serviço de organizações subversivas e como se os formadores de opinião fossem apenas cidadãos inofensivos exercendo candidamente o seu direito à liberdade de expressão. Ao contrário: jornais, rádios, noticiários de TV, aulas, livros, espetáculos de teatro são hoje as principais armas de guerra, sua função essencial ou única é serem armas de guerra, e por isso mesmo o controle planejado do noticiário deixou de ser uma exceção para se tornar a regra. Um dos sinais mais alarmantes dessa mudança é o fato de que a exclusão de notícias indesejáveis, um recurso extremo antes usado com parcimônia até por censores oficiais, se tornou procedimento normal e rotineiro da maioria dos órgãos da chamada “grande mídia” (no Brasil, em todos eles, sem exceção). A supressão é tão vasta e tão sistemática que continentes inteiros da realidade contemporânea se tornaram invisíveis para o público. Notícias sobre torturas e assassinatos políticos em Cuba, na China, no Vietnã ou na Coréia do Norte, por exemplo, desapareceram por completo há mais de vinte anos, embora nesse período o número das vítimas nesses países não esteja abaixo dos dez milhões de pessoas. É só quando projetados sobre esse fundo vazio que epidódios inócuos como as humilhações ocasionais e incruentas sofridas por terroristas em Abu-Ghraib ou Guantánamo podem despertar atenção. É só nesse quadro totalmente deformado que centenas de mísseis lançados diariamente contra Israel podem parecer menos chocantes do que a tardia reação israelense. É só nesse mundo de fantasia que o simples pedido de uma congressista da Flórida para que o governo americano estude a possibilidade de alguma ação militar na Tríplice Fronteira pode parecer uma intervenção estrangeira mais perigosa, e mais insultuosa à dignidade nacional, do que a movimentação efetiva e constante, naquela área, de bandos de terroristas armados atuando em parceria estreita com quadrilhas de narcotraficantes, sob os olhos complacentes das nossas autoridades federais. É só no reino da mentira total que a presença amazônica de agentes do Conselho Mundial das Igrejas, um órgão acentuadamente pró-comunista e anti-americano, pode ser vendida ao público como prova de intervenção imperialista ianque. Não, já não se trata de censurar esta ou aquela notícia, mas de modificar radicalmente a estrutura e as proporções do panorama inteiro. Já não se trata de enganar o público quanto a um ou outro episódio em particular, mas de modificar sua percepção integral da realidade.

Por isso é que a “guerra assimétrica”, tão constantemente presente no mundo dos fatos, raras vezes ou nunca dá o ar da sua graça no universo de discurso da mídia brasileira. É que aí não se trata de falar da assimetria, mas sim de criá-la.

***

P. S. – No meu artigo “A política do tigre”, deixei passar dois erros de concordância, frutos do cansaço e da sobregarga. Nenhum de meus críticos usuais, tão zelosos em contestar detalhes naquilo que escrevo, acusou qualquer dos dois. Condescendência fingida ou analfabetismo genuíno?

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