Posts Tagged Antonio Gramsci

Em torno de Celso Pitta

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 22 jun. 2000

Não gosto de Celso Pitta e não votei nele. Sua exploração descarada da cor da própria pele na propaganda eleitoral fez com que ele entrasse, definitivamente, no meu index candidatorum prohibitorum particular. Mas o processo do seu impeachment é uma palhaçada em toda a linha, que, a pretexto de punir o mau representante para salvar a ordem que ele representa (é o pretexto de sempre), já começou por esculhambar desde logo as idéias de justiça, lei, autoridade e razão – tudo aquilo que compõe a essência da ordem.

A coisa veio errada desde a raiz. Ao encaminhar à Câmara de Vereadores o requerimento para que se constituísse a comissão processante, o presidente da OAB local – cujo nome esqueci e não quero lembrar – anunciou à imprensa, com aquele ar de sapiência que convém aos porta-vozes desse autoconstituído poder moderador, que, dentre os vereadores, quem não votasse a favor do pedido seria, num requerimento subseqüente, incluído entre os suspeitos de envolvimento nas tramóias pítticas.

Pela primeira vez na história do direito um queixoso, ao solicitar à autoridade a investigação de um crime, a acusava, no mesmo ato, de virtual cumplicidade no mesmo crime.

Eu não contrataria esse advogado para me defender de uma multa de trânsito indevidamente aplicada por um guarda sequioso de propinas. Ficaria com medo de que, na petição, o desastrado causídico recorresse ao seguinte argumento para persuadir o juiz: “Se V. Excia. não anula esta multa, é porque está levando algum.”

O país onde uma denúncia de crime já inclui entre os suspeitos a autoridade à qual se pede sua investigação não tem, é claro, ordem jurídica nenhuma. Tem apenas uma hierarquia de comando baseada no poder de chantagem midiática. Tanto a coisa é assim, que a própria Câmara dos Vereadores, em vez de devolver a petição ao malcriado, se apressou, temerosa, em dar-lhe o que ele pedia. Uma assembléia que tem um, dois ou cinqüenta corruptos está desonrada temporariamente até retirá-los do seu meio. Uma assembléia que se curva a uma ameaça insolente e absurda se desonra definitivamente, se desonra estruturalmente. Ela confessa, em público, que só consente em investigar para não ser investigada.

Se o prefeito está dando um baile em seus acusadores, isto não prova tanto que ele está inocente das suspeitas de corrupção quanto que eles são culpados de praticar uma falsa moral, na qual mais importa a cada um vasculhar com suspicácia os atos alheios do que governar os seus próprios com justiça e sabedoria.

De modo geral, o anseio de “ética” em nome do qual há doze anos este país é submetido a uma estressante sucessão de crises e sobressaltos não passa de um pretexto estratégico para produzir esse mesmo resultado específico: desativar o poder eleito, impor em seu lugar a autoridade legislante e judicativa da mídia e dos autonomeados representantes da sociedade civil. Mas essa destruição sistemática do processo de legitimação eleitoral não é um fato isolado: ela vem acompanhada, no meio rural, de manejos destinados a reconhecer como coadjuvante da autoridade pública, nas investigações criminais, uma organização sem registro legal e cuja atividade consiste unicamente em invasões, roubos e violências variadas.

Por baixo da estrutura do Estado, um novo sistema de poder já se constituiu e, informalmente, governa o país. As eleições só servem para legitimá-lo ex post facto ou, quando contrariam seus desejos, para ser anuladas mediante a mobilização maciça da indústria do escândalo.

É preciso um povo estar bem sonso e hipnotizado para não perceber que esse estado de coisas é infinitamente mais grave e mais alarmante do que todos os casos individuais de corrupção somados e multiplicados por mil.

Corruptos ambicionam apenas dinheiro e, pervertendo peças do sistema, não impedem que o conjunto prossiga funcionando. Revolucionários não se conformam com menos do que corromper e destruir o sistema inteiro para obter o poder total. Eles estão fazendo isso bem diante dos nossos olhos, com a colaboração de milhares de ingênuos bem intencionados que se comovem até às lágrimas à simples audição da palavra “ética” e se deixam manipular com a consciência limpa do escoteiro que perfaz sua boa ação diária.

A ingenuidade desses colaboradores funda-se na sua incultura, no seu despreparo, que os transforma em vítimas dóceis nas mãos de intelectuais versados em estratégia leninista e nas técnicas da “revolução passiva” de Antônio Gramsci. Quando decidirem se informar, será tarde demais.

01/06/00

A loucura triunfante

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 27 de abril de 2000

Durante décadas, a esquerda acreditou que havia neste país duas burguesias: uma nacionalista, empenhada em desenvolver a nossa economia; outra, aliada aos interesses norte-americanos e decidida manter o Brasil na condição de fornecedor de matéria-prima barata. A estratégia era portanto simples: aliar-se com a “burguesia nacional” contra o imperialismo.

A fórmula de Luiz Carlos Prestes, do agrado de Moscou que então advogava uma linha de luta eleitoral pacífica, tinha a vantagem de tornar o comunismo palatável a muitas famílias de ricaços e de abrir assim aos comunistas o acesso a altos postos no governo.

Na década de 60, a aliança rompeu-se. A incapacidade dos “burgueses progressistas” para reagir contra o golpe militar deixou os comunistas órfãos e eles entraram num surto de autocrítica do qual a estratégia de Prestes emergiu desfeita em cacos. O livro de Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira, publicado se não me engano em 1969, teve um formidável impacto desagregador. Ele alegava que não havia burguesia nacional nenhuma, que eram todos uns malditos imperialistas. Logo, o melhor era mandar a estratégia eleitoral às favas e partir para a luta armada, conclusão endossada por um livreto infame, também de muito sucesso, Revolução na Revolução, de Régis Debray. Tudo parecia muito científico, mas deu no que deu.

Os anos seguintes foram marcados pelo estancamento das fontes francesas, pelo desmantelamento do comunismo no Leste Europeu e pela formidável ascensão da “nova esquerda” norte-americana, que tão bem soube se aproveitar dos movimentos de direitos civis e juntar suas forças com a avassaladora onda psicótica da New Age que ia dissolvendo, um por um, os pilares da cultura tradicional norte-americana. Somou-se a isso a disseminação das idéias de Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano, que em vez da tomada violenta do poder por uma organização monolítica pregava a lenta penetração da esquerda na administração estatal e nos órgãos formadores da opinião pública por meio de redes flexíveis de colaboradores informais. Ao mesmo tempo, as nações ricas começavam a implantar o projeto de globalização e governo mundial, causando revolta entre os nacionalismos, mas, sobretudo, atraindo o concurso de ambiciosos intelectuais esquerdistas de todos os países, que, na esperança de aplicar a estratégia de Gramsci em escala global, iniciaram a “longa marcha” para dentro dos organismos internacionais, onde hoje reinam soberanos sobre os “movimentos sociais” plantados por engenheiros comportamentais no Terceiro Mundo e sobre os programas educacionais que vão moldando a mente da Humanidade futura.

A esquerda brasileira assimilou confusamente essas transformações, endossando a esmo os slogans dos novos movimentos sociais globalistas – feminismo, gays, “minorias raciais”, etc. -, e enxertando-os, aos trancos e barrancos, no ideário híbrido onde reminiscências da guerrilha já se mesclavam absurdamente a apelos nacionalistas herdados da aliança com a “burguesia progressista”.

Por isso é que hoje nossos esquerdistas podem, ao mesmo tempo, bufar de indignação patriótica ante o leilão de empresas estatais e inflamar-se de entusiasmo belicoso no apoio a protestos grupais divisionistas, insuflados por organizações estrangeiras para debilitar o poder nacional. Por isso é que podem berrar contra o “desmanche do patrimônio nacional”, ao mesmo tempo que aderem fanaticamente a uma visão afro-indigenista da História que resulta em negar a legitimidade da existência do Brasil enquanto nação. Por isso é que podem clamar contra a política do FMI e servir às organizações que lhe dão suporte no plano cultural e psicossocial. Por isso é que podem, ao mesmo tempo, querer salvar a economia e destruir o País.

Nossa esquerda, em suma, enlouqueceu. Mas enlouqueceu enquanto subia na vida. Encontrando as portas abertas pela omissão covarde de todas as outras correntes de opinião e pela ajuda de empresários idiotas que repetem às tontas “o comunismo morreu”, a esquerda colhe hoje os louros de 30 anos de “longa marcha”, imperando sobre os meios de comunicação, sobre o aparelho educacional e sobre a administração pública, repetindo, do alto do pódio, seu discurso monológico e insano. Ela nunca teve tanto poder e tanto medo.

Ela tem todos os meios à sua disposição: mas já não tem nada a transmitir exceto os germes de sua decomposição intelectual.

Foi o contágio da loucura esquerdista que transformou os festejos dos 500 anos numa palhaçada grotesca e masoquista. É ele que está no fundo de toda a angústia e a incerteza da vida brasileira hoje em dia.

Máfia gramsciana

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 25 de novembro de 1999

A cada dia que passa, mais o chamado “debate cultural” brasileiro se reduz a mero debate eleitoral, tudo rebaixando ao nível dos slogans e estereótipos e, pior ainda, induzindo as novas gerações a crer que a paixão ideológica é uma forma legítima de atividade intelectual e uma expressão superior dos sentimentos morais.

Tão grave é esse estado de coisas, tão temíveis os desenvolvimentos que anuncia, que todos os responsáveis pela sua produção – a começar pelos fiéis seguidores da estratégia gramsciana, para a qual aquela redução é objetivo explicitamente desejado e buscado – deveriam ser expostos à execração pública como assassinos da inteligência e destruidores da alma brasileira.

Para Antonio Gramsci, a propaganda revolucionária é o único objetivo e justificação da inteligência humana. O “historicismo absoluto”, um marxismo fortemente impregnado de pragmatismo, reduz toda atividade cultural, artística e científica à expressão dos desejos coletivos de cada época, abolindo os cânones de avaliação objetiva dos conhecimentos e instaurando em lugar deles o critério da utilidade política e da oportunidade estratégica.

É idéia intrinsecamente monstruosa, que se torna tanto mais repugnante quanto mais se adorna do prestígio associado, nas mentes pueris, a palavras como “humanismo” ou “consenso democrático” (naturalmente esvaziadas de qualquer conteúdo identificável), bem como das insinuações de santidade ligadas à narrativa dos padecimentos de Antônio Gramsci na prisão, as quais dão ao gramscismo a tonalidade inconfundível de um culto pseudo-religioso.

Recentemente, um grande jornal de São Paulo, que se gaba de sempre “ouvir o outro lado”, consagrou a Antonio Gramsci todo um caderno, laudatório até à demência, que, sem uma só menção às críticas devastadoras feitas ao gramscismo por Roger Scruton, por Francisco Saenz ou – de dentro do próprio grêmio marxista – por Lucio Coletti, deixa no leitor a falsíssima impressão de que essa ideologia domina o pensamento mundial, quando a verdade é que ela tem aí um lugar muito modesto e até o Partido Comunista Italiano, com nome mudado, já não fala de seu fundador sem um certo constrangimento.

Que o jornalismo assim se reduza à propaganda, nada mais coerente com o espírito do gramscismo, o qual não busca se impor no terreno dos debates, do qual não poderia sair senão desmoralizado, e sim através da tática de “ocupação de espaços”, por meio da qual, excluídas gradualmente e quase sem dor as vozes discordantes, a doutrina que reste sozinha no picadeiro possa posar como resultado pacífico de um “consenso democrático”.

Com a maior cara-de-pau os adeptos dessa corrente atribuirão a um mórbido direitismo esta minha denúncia, sem ter em conta aquilo que meus leitores habituais sabem perfeitamente, isto é, que eu denunciaria com o mesmo vigor qualquer ideologia direitista que tentasse se impor mediante o uso de estratagemas tão sorrateiros e perversos.

Se no momento pouco digo contra a direita é porque sua expressão intelectual pública é quase nula, não por falta de porta-vozes qualificados, mas de espaço. Os liberais, banidos de qualquer debate moral, religioso ou estético-literário, recolheram-se ao gueto especializado das páginas de economia, o que muito favorece o lado adversário na medida em que deixa a impressão de que o liberalismo é a mais pobre e seca das filosofias. Quanto às correntes conservadoras que ainda subsistem, por exemplo católicas e evangélicas, sua exclusão foi tão radical e perfeita, que hoje a simples hipótese de que um conservador religioso possa ter algo a dizer no debate cultural já é objeto de chacota. Chacota, é claro, de ignorantes presunçosos, que, nunca tendo ouvido falar de Eric Voegelin, de Russel Kirk, de Malcom Muggeridge, de Reinhold Niebuhr ou de Eugen Rosenstock-Huessy, acreditam piamente que não pode existir vida inteligente fora de suas cabecinhas gramscianas, e provam assim ser eles próprios as primeiras vítimas da censura mental que impuseram a todo o País.

No campo intelectual, atacar a “direita”, hoje, seria mais que covardia: seria coonestar a farsa de que no Brasil existe um debate cultural normal, quando o que existe é apenas o mafioso apoio mútuo de gramscianos a gramscianos, que priva os brasileiros do acesso a idéias essenciais e ainda tem o cinismo de posar de democrático.

Veja todos os arquivos por ano