Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 15 de junho de 2006
Um dos paradoxos inaugurais dos tempos modernos está na facilidade sonsa com que a parte pensante da Europa aceitou os dois princípios da mecânica newtoniana — a eternidade do movimento e a lei de inércia — sem parar por um instante sequer para notar que eram mutuamente contraditórios.
A física antiga dizia que um corpo, se não movido por outro, tende a ficar parado. Newton contestou isso, afirmando que a força da sua própria inércia mantém cada corpo eternamente no seu estado presente, seja de repouso ou de movimento retilíneo e uniforme. Só há um problema: se o movimento é eterno, não faz sentido falar em “estado presente” a não ser por referência a um observador vivo dotado do sentido da temporalidade. No movimento eterno, tudo é fluxo e impermanência. Não há “estados” — seja de repouso ou de movimento. “Estado” é apenas uma impressão subjetiva que o observador, ele próprio envolvido no movimento geral, obtém ao medir os movimentos físicos pelo seu tempo interior. A tentativa de montar um universo puramente matemático independente da percepção humana acabava fazendo tudo depender da própria percepção humana. A física materialista fundava-se numa metafísica idealista.
A contradição é tão flagrante, que chega a ser escandaloso que durante tantos séculos quase ninguém a tenha percebido, ou pelo menos assinalado expressamente.
Porém a absurdidade ostensiva continha dentro de si outra ainda pior. Todo movimento é, por definição, uma mudança ocorrida dentro de uma escala de tempo determinada. Se você esticar indefinidamente os limites do tempo, não haverá mais diferença possível entre a mudança e a permanência, entre o acontecer e o não acontecer. “Movimento eterno” é conceito autocontraditório.
Dizem que Newton era o protótipo do gênio distraído, que suas contas tinham de ser corrigidas por assistentes, que uma vez ele foi encontrado na cozinha fervendo um relógio e olhando atentamente para um ovo. Não sei se essas historietas procedem, mas é fato que ele dedicou mais tempo a estudos de ocultismo do que a qualquer coisa que hoje se chamaria de “ciência”. Era um tremendo esquisitão, e pelo visto não se atrapalhava só em detalhes de cálculo e culinária, mas nos próprios fundamentos da sua teoria.
Seus três críticos principais – Leibniz, Goethe e Einstein – sempre falaram respeitosamente dele, mas tenho a impressão de que por dentro riam um bocado do velho. O primeiro observava que reduzir os objetos às suas “qualidades primárias” de medida e movimento, como requerido pela teoria mecânica, resultava em torná-los perfeitamente inexistentes. O segundo tentou mostrar que as qualidades da luz eram correlativas à visão humana; não conseguiu, mas pelo menos deixou claro que um newtoniano só poderia rejeitar sua tese argumentando contra si próprio. O terceiro, ao restringir o alcance dos princípios de Newton a um domínio limitado da realidade, provou o total subjetivismo desses princípios, já que os limites do referido domínio eram os da percepção macroscópica humana.
Os admiradores, em contrapartida, chegaram a prodígios de babaquice na devoção que votavam ao cientista inglês. O poeta Alexander Pope comparava a teoria de Newton a um novo fiat lux bíblico. Voltaire não voava tão alto, mas se contorcia de tal modo para livrar o guru da acusação de ser pai do ateísmo moderno, que deixava no ar a suspeita de que ele tinha sido precisamente isso.
O problema com a física de Newton é que, quando um sujeito aceita uma tese autocontraditória como se fosse uma verdade definitiva, a contradição não percebida se refugia no inconsciente e danifica toda a inteligência lógica do infeliz. Newton não espalhou só o ateísmo pela cultura ocidental: espalhou o vírus de uma burrice formidável. Uma parcela da elite intelectual já se curou, mas a percepção da realidade pelas massas (incluindo a massa universitária de micro-intelectuais) continua doente de newtonismo. A quantidade de tolices que isso explica é tão infinita quanto o universo de Newton.