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Eurasianismo e genocídio

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 19 de junho de 2014

          

Não é muito difícil entender que uma ideologia voltada à reconstrução de um dos impérios mais sangrentos de todos os tempos acabará, mais dia menos dia, revelando a sua própria índole cruel e homicida.

Estudantes da Universidade Estatal de Moscou estão exigindo a demissão do prof. Alexandre Duguin por ter defendido, desde o alto da sua cátedra, a matança sistemática dos ucranianos, que segundo ele não pertencem à espécie humana. “Matem, matem, matem”, disse ele. “Não há mais o que discutir. Digo isso como professor.”

A declaração integral e exata está aos 17m50s deste vídeo: http://goo.gl/YSjcB3

O Império Eurasiano tal como o concebem Alexandre Duguin e seu principal discípulo, o presidente Vladimir Putin, é uma síntese da extinta URSS com o Império tzarista. Como a teoria que fundamenta o projeto é por sua vez uma fusão de marxismo-leninismo, messianismo russo, nazismo e esoterismo, e como dificilmente se encontra no Ocidente algum leitor que conheça o suficiente de todas essas escolas de pensamento, cada um só enxerga nela a parte que lhe é mais simpática, comprando às cegas o resto do pacote.

Os saudosistas do stalinismo veem nela a promessa do renascimento da URSS. Conservadores aplaudem o seu moralismo repressivo soi disant religioso. Velhos admiradores de Mussolini e do Führer apreciam a sua concepção francamente antidemocrática do Estado, bem como seu desprezo racista pelos povos destinados à sujeição imperial.

Esoteristas, seguidores de René Guénon e Julius Evola, julgam que ela é a encarnação viva de uma “metapolítica” superior, incompreensível ao vulgo, mais ou menos como aquela que é descrita pelo romancista (e esoterista ele próprio) Raymond Abellio, em La Fosse de Babel. Muçulmanos acabam às vezes aderindo ao projeto por conta do seu indisfarçado e odiento anti-ocidentalismo, na vaga esperança de utilizá-lo mais tarde como trampolim para a criação do Califado Universal, que por sua vez os “eurasianos” acreditam poder usar para seus próprios fins.

Não seria errado entender o eurasianismo como uma sistematização racionalizada do caos mental internacional. Neste sentido, sua unidade essencial não pode ser buscada no nível ideológico, mas na estratégia de conjunto que articula num projeto de poder mundial uma variedade de discursos ideológicos heterogêneos e, em teoria, conflitantes.

Não se deve pensar, no entanto, que esse traço definidor é único e original. Ao contrário do que geralmente se imagina, todos os movimentos revolucionários, sem exceção, cresceram no terreno fértil da confusão das línguas. O eurasianismo só de destaca dos outros por cultivar, desde a origem, uma consciência muito clara desse fator e, portanto, um aproveitamento engenhoso do confusionismo revolucionário.

Qualquer que seja o caso, o uso da violência genocida como instrumento de ocupação territorial está tão arraigado nos seus princípios estratégicos que, sem isso, o projeto inteiro não faria o menor sentido.

Essa obviedade não impede, no entanto, que cada deslumbrado do eurasianismo continue vendo nele só aquilo que bem entende, tapando os olhos para as partes desagradáveis. Se milhões de idiotas fizeram isso com o marxismo durante um século e meio, recusando-se a enxergar o plano genocida que ele trazia no seu bojo desde o princípio – e explicando “ex post facto” os crimes e desvarios como meros acidentes de percurso – , por que não haveriam de dar uma chance ao mais novo e fascinante estupefaciente revolucionário à venda no mercado?

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A propósito do xingamento coletivo à Sra. Dilma Rousseff, que tanto indignou o ex-presidente Lula e o levou abrir guerra contra os que “não sabem do que somos capazes”, coloquei na minha página do Facebook estas duas notinhas, que se tornaram imediatamente virais e que acho oportuno reproduzir aqui:

(1) O governo petista habituou a população a desrespeitar tudo – a ordem, a família, a moral, as Forças Armadas, a polícia, as leis, o próprio Deus. Se esperava sair ileso e ser aceito como a única coisa respeitável no meio do esculacho universal, então é até mais louco do que parece.”

(2) O sr. Lula xingou o então presidente Itamar Franco de “f. da p.”, disse que a cidade de Pelotas é “exportadora de veados”, gabou-se (por brincadeira, segundo Sílvio Tendler) de tentar estuprar um colega de cela e confessou (em entrevista à Playboy) ter nostalgia dos tempos em que os meninos do Nordeste faziam – se é que faziam – sexo com cabritas e jumentas. É a pessoa adequada para dar lições de respeitabilidade à nação brasileira. Todo mundo sabe do que ele é capaz.”

Assassinos da inteligência

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 17 de junho de 2014

 

 

 

 

Pensar, até um burro pensa. O que distingue a espécie humana é sua capacidade de confrontar o pensado com o conjunto dos conhecimentos disponíveis e regular o curso do pensamento pela escala de credibilidade que vai do possível ao verossímil, ao provável ou razoável e, em certos casos, à certeza.

Aristóteles já ensinava isso.

Infelizmente, no Brasil, raros opinadores têm o senso dessas distinções. A maioria imagina que para pensar com proveito basta um pouco de lógica formal e algum domínio dos chavões mais caros ao coraçãozinho da plateia.

Em debate recente, o professor Igor Fuser, uma estrela do “cast” universitário esquerdista, assegurou que “não se pode julgar um regime pelo número das suas vítimas”. Dez minutos depois, desmentia-se fragorosamente ao alegar que a ditadura brasileira “perseguiu milhares de pessoas” e que o número de cristãos assassinados no mundo está muito abaixo dos 100 mil por ano –subentendendo, portanto, que a ditadura foi um horror e que os matadores de cristãos nos países islâmicos e comunistas não são tão maus quanto se diz.

Mas o pior não é isso. Mesmo sem esses autodesmentidos grotescos, a afirmativa geral que os antecedeu –a mais comumente alegada por devotos comunistas empenhados em salvar a honra dos governos mais assassinos que o mundo já conheceu– é perfeitamente desprovida de sentido. Para perceber isso basta medi-la com a escala de credibilidade.

Em política, admite-se universalmente, as certezas absolutas são raras ou inexistentes. O meramente possível reflete a liberdade da fantasia, o verossímil é apenas questão de opinião, gosto ou preferência. Não servem como argumentos. Resta a probabilidade razoável. Quem quer que argumente seriamente em política procura nos convencer de que a razão, com altíssima probabilidade, está do seu lado.

Acontece, para a tristeza dos tagarelas, que todo argumento de probabilidade depende eminentemente do elemento quantitativo que o fundamenta explícita ou implicitamente. Se digo que o candidato X vai vencer as próximas eleições com uma probabilidade de zero a cem por cento, não disse absolutamente nada. Tanto vale dizer que um governo é igualmente malvado se não matou ninguém ou se matou milhões de pessoas.

Quando um comunista esperneia contra o que chama de “contabilidade macabra”, tem, é claro, uma boa razão para fazê-lo. Contados os cadáveres, é impossível negar que o comunismo foi o flagelo mais mortífero que já se abateu sobre a humanidade. Diante disso, só resta apegar-se ao subterfúgio insano de que o macabro não reside em fazer cadáveres e sim em contá-los.

Somando à insanidade o fingimento, a proibição de contar tem de ser suspensa quando se fala de regimes “de direita”, donde se conclui que os 400 terroristas mortos no regime militar –a maioria deles de armas na mão– são um placar muito mais hediondo e revoltante do que os 100 milhões de civis desarmados que os heróis do comunismo assassinaram na URSS, na China, na Hungria, em Cuba etc.

O senso das quantidades e proporções é a exigência mais básica e incontornável não só da conduta honesta, mas da racionalidade em geral. Dissolvendo-o pouco a pouco na plateia, os fúseres da vida destroem não só a moralidade pública, mas as próprias condições elementares do funcionamento normal da inteligência humana.

Se nas universidades brasileiras há uma quota de 40 a 50% de alunos analfabetos funcionais, isso não se deve só a uma genérica “má qualidade do ensino”, mas ao fato de que há décadas o discurso comunista e pró-comunista onipresente espalha, nas mentes dos estudantes, doses maciças de estimulação contraditória e obstáculos cognitivos estupefacientes.

Notinhas horríveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de junho de 2014

          

Houve uma época em que não se podia escrever sátiras no Brasil porque tudo o que acontecia já era satírico em si mesmo. Hoje tornou-se impossível escrevê-las porque tudo está passando rapidamente do ridículo ao deprimente, do deprimente ao aterrador.

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Quando um governo protege abertamente os usuários de crack enquanto reprime por todos os meios os fumantes de tabaco, está claro que nem acredita nos benefícios do crack nem no poder assassino dos maços de cigarros: acredita apenas que é da sua conveniência adestrar a população para adaptar-se, calada e cabisbaixa, a qualquer situação absurda que ele lhe imponha. É a técnica do bullying repetido. De tanto ser provocado, humilhado, intimidado, você desiste de reclamar.

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A presidenta posando toda alegrinha ao lado da entubadora de crucifixos é bullying no mais alto grau. O exemplo vem de cima. Michele Obama movendo guerra às batatinhas fritas que as crianças adoram é exatamente a mesma coisa.

Idem, a escandalosa troca de cinco terroristas por um desertor. Idem, a proibição dos termos “pai” e “mãe”. E assim por diante. Quanto mais absurdo, melhor. A idéia é sempre levar a plateia a desistir de fazer uso da razão.

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Quando a mentira oficial se torna sistêmica, as pessoas não são forçadas somente a repeti-la, mas a raciocinar de acordo com ela. O resultado é a destruição dos processos normais de funcionamento da inteligência humana. Daí ao império da bestialidade o passo é bem curto.

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O sinal mais patente do primarismo mental brasileiro é a confusão de categorias, da qual resulta que todos os julgamentos acabam ficando fora de foco, isto quando não estão completamente errados ou não têm nenhum sentido. Por exemplo, a crença pueril – um automatismo mental quase infalível hoje em dia – de que, diante de uma afirmação qualquer, lida ou ouvida, você sempre pode e sobretudo deve “concordar” ou “discordar”.

Pessoas com alguma educação superior (coisa praticamente inexistente no Brasil) sabem que, em geral, concordar ou discordar não têm a mais mínima importância. Compreender, analisar, aprofundar, comparar, atenuar, ampliar, contextualizar – estas são as reações básicas do leitor culto. O idiota, ao contrário, imagina que tudo o que se escreve no mundo existe só para que ele o julgue, aplauda ou condene — atividades às quais ele se entrega com uma presteza e uma volúpia incomparáveis.

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A impropriedade vocabular assinala sempre a confusão mental. Até hoje não encontrei neste país um só palpiteiro profissional que compreendesse, ao menos, que de um juízo de fato não cabe “concordar” ou “discordar”. Concordância e discordância só existem em matéria de opiniões, de valorações, de propostas. Se uma asserção factual é falsa, quem discorda dela são os fatos, não o leitor.

É perfeitamente possível você concordar com um conjunto de afirmações – ou discordar – sem entender uma só palavra do que ali está dito. Concordância ou discordância são sentimentos. O sentimento nunca diz nada sobre o objeto percebido, só sobre o estado do sujeito que percebe.

O sentimento é um termômetro do seu estado interior, não uma régua para medir a realidade. Como no Brasil todo mundo só escreve para concordar ou discordar, isto é, para expressar sentimentos, a conclusão inevitável é que cada um só fala de si mesmo, não de alguma coisa.

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É assombroso constatar que justamente as pessoas que mais se gabam de “pensamento crítico” só conhecem e respeitam um único argumento: o argumento de autoridade. O que ouviram no colégio é “magister dixit” de uma vez para sempre.”

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Thomas Piketty tem razão ao dizer que a desigualdade econômica aumentou nas últimas décadas. Ele só se omite de notar que isso aconteceu junto com um aumento ainda maior do poder de controle dos governos sobre a conduta da população – um objetivo em cuja conquista se irmanam a militância socialista e o capital monopolista que o subsidia.

Esses processos não são independentes. Olhando propositadamente só a metade econômica do cenário, é fácil atribuir o mal a uma abstração chamada “capitalismo”. É assim que o bandido sai limpo, culpando a vítima. A revista Exame, fingindo inocência, raciocina nessa linha e pergunta: “Por que o capitalismo é tão injusto?” É injusto mesmo: persegue quem o defende e enche de dinheiro quem o denigre.

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Já li todos os artigos do professor Ígor Fuser. Foi na Voz Operária dos anos 1960. Ele ainda não havia nascido mas já escrevia igualzinho.

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Se há alguém cuja opinião sempre merece ser ouvida, é o filósofo australiano Harry Redner. No seu livro mais recente (Totalitarianism, Globalization, Colonialism. The Destruction of Civilization since 1914, London, Transaction Publishers, 2014), ele explica que a civilização está mesmo sendo destruída, mas que é errado supor que com isso entramos numa era de barbarismo. O barbarismo supõe a ausência de administração estatal e a desordem econômica incontrolável. O que vemos hoje, ao contrário, são sociedades racionalmente administradas no mais alto grau, onde ao mesmo tempo vão sendo suprimidos os valores morais e intelectuais da civilização. Ele chama esse estado de coisas de “pós-civilização” ou “decivilização”. Está certíssimo.

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