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A destruição da inteligência

Olavo de Carvalho

Digesto Econômico, 14 de julho de 2014

Aprender, imitar e introjetar o vocabulário, os tiques e trejeitos mentais e verbais da escola de pensamento dominante na sua faculdade é, para o jovem estudante, um desafio colossal e o cartão de ingresso na comunidade dos seus maiores, os tão admirados professores.

A aquisição dessa linguagem é tão dificultosa, apelando aos recursos mais sutis da memória, da imaginação, da habilidade cênica e da autopersuasão, que seria tolo concebê-la como uma simples conquista intelectual. Ela é, na verdade, um rito de passagem, uma transformação psicológica, a criação de um novo “personagem”, apoiado no qual o estudante se despirá dos últimos resíduos da sentimentalidade doméstica e ingressará no mundo adulto da participação social ativa.

É quase impossível que essa identificação profunda com o personagem aprendido não seja interpretada subjetivamente como uma concordância intelectual, ao ponto de que, no instante mesmo em que repete fielmente o discurso decorado, ou no máximo faz variações em torno dele, o neófito jure estar “pensando com a própria cabeça” e “exercendo o pensamento crítico”.

A imitação é, com certeza, o começo de todo aprendizado, mas ela só funciona porque você imita uma coisa, depois outra, depois uma infinidade delas, e com a soma dos truques imitados compõe no fim a sua própria maneira de sentir, pensar e dizer.

No aprendizado da arte literária isso é mais do que patente. O simples esforço de assimilar auditivamente a maneira, o tom, o ritmo, o estilo de um grande escritor já é uma imitação mental, uma reprodução interior daquilo que você está lendo. A imitação torna-se ainda mais visível quando você decora e declama poemas, discursos, sermões ou capítulos de uma narrativa. Porém nas suas primeiras investidas na arte da escrita é impossível que você não copie, adaptando-os às suas necessidades expressivas, os giros de linguagem que aprendeu em Machado de Assis, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Balzac, Stendhal e não sei mais quantos. Esse exercício, se você é um escritor sério, continua pela vida a fora. Quando conheci Herberto Sales – que Otto Maria Carpeaux julgava o escritor dotado de mais consciência artística já nascido neste país –, ele estava sentado no saguão do Hotel Glória com um volume de Proust e um caderninho onde anotava cada solução expressiva encontrada pelo romancista, para usá-la a seu modo quando precisasse. Já era um homem de setenta e tantos anos, e ainda estava praticando as lições do velho Antoine Albalat.[1] É assim, por acumulação e diversificação dos recursos aprendidos, que se forma, pari passu com a evolução natural da personalidade, o estilo pessoal que singulariza um escritor entre todos. T. S. Eliot ensinava que um escritor só é verdadeiramente grande quando nos seus escritos transparece, como em filigrana, toda a história da arte literária.

Em outros tipos de aprendizado, a imitação é ainda mais decisiva. Nas artes marciais e na ginástica, quantas vezes você não tem de repetir o gesto do seu instrutor até aprender a produzi-lo por si próprio! Na música, quantas performances magistrais o pianista não aprende de cor até produzir a sua própria!

Nas ciências e na tecnologia, o manejo de equipamentos complexos nunca se aprende só em manuais de instrução: o aluno tem de ver e imitar o técnico mais experiente, num processo de assimilação sutil que engloba, em doses consideráveis, a transmissão não-verbal. [2]

Por que seria diferente na filosofia? Compreender uma filosofia não se resume nunca em ler as obras de um filósofo e julgá-las segundo uma reação imediata ou as opiniões de um professor. É impregnar-se de um modo de ver e pensar como se ele fosse o seu próprio, é olhar o mundo com os olhos do filósofo, com ampla simpatia e sem medo de contaminar-se dos seus possíveis erros. Se desde o início você já lê com olhos críticos, buscando erros e limitações, o que você está fazendo é reduzir o filósofo à escala das suas próprias impressões, em vez de ampliar-se até abranger o “universo” dele. Erros e limitações não devem ser buscados, devem surgir naturalmente à medida que você assimila novos e novos autores, novos e novos estilos de pensar, pesando cada um na balança da tradição filosófica e não da sua incultura de principiante. Não seria errado dizer que, entre outros critérios, um professor de filosofia deve ser julgado, sobretudo, pelo número e variedade dos autores, das escolas de pensamento, das vias de conhecimento que abriu em leque para que seus estudantes as percorressem.[3]

Não é preciso mais exemplos. Em todos esses casos, a imitação é o gatilho que põe em movimento o aprendizado, e em todos esses casos ela não se congela em repetição servil porque o aprendiz passa de modelo a modelo, incorporando uma diversidade de percepções e estilos que acabarão espontaneamente se condensando numa fórmula pessoal, irredutível a qualquer dos seus componentes aprendidos.

Mas o que acontece se, em vez disso, o aluno é submetido, por anos a fio, à influência monopolística de um estilo de pensamento dominante, aliás muito limitado no seu escopo e na sua esfera de interesses, e adestrado para desinteressar-se de tudo o mais sob a desculpa de que “não é referência universitária”?

Se durante quatro, cinco ou seis anos você é obrigado a imitar sempre a mesma coisa, e ainda temendo que o fracasso em adaptar-se a ela marque o fim da sua carreira universitária, a imitação deixa de ser um exercício temporário e se torna o seu modo permanente de ser – um “hábito”, no sentido aristotélico.

É como um ator que, forçado a representar sempre um só personagem, não só no palco mas na vida diária, acabasse incapaz de se distinguir dele e de representar qualquer outro personagem, inclusive o seu próprio. Pirandello explorou magistralmente essa situação absurda na peça Henrique IV, onde um milionário louco, imaginando ser o rei, obriga os empregados a comportar-se como funcionários da côrte, até que eles acabam se convencendo de que são mesmo isso.

Toda imitação depende de uma abertura da alma, de uma impregnação empática, de uma suspension of disbelief em que o outro deixa de ser o outro e se torna uma parte de nós mesmos, sentindo com o nosso coração e falando com a nossa voz. Se praticamos isso com muitos modelos diversos, sem medo das contradições e perplexidades, nossa mente se enriquece ao ponto do nihil humanum a me alienum, daquela universalidade de perspectivas que nos liberta do ambiente mental imediato e nos torna juízes melhores de tudo quanto chega ao nosso conhecimento. Não é errado dizer que o julgamento honesto e objetivo depende inteiramente da variedade dos pontos de vista, contraditórios inclusive, que podemos adotar como “nossos” no trato de qualquer questão.

Em contrapartida, o enrijecimento da alma num papel fixo abusa da capacidade de imitação até corrompê-la e extingui-la por completo, bloqueando toda possibilidade de abertura empática a novos personagens, a novos estilos, a novos sentimentos e modos de ver.

Habituado a tomar como referência única o conjunto de livros e autores que compõe o universo mental da esquerda militante, e a olhar com temerosa desconfiança tudo o mais, o estudante não só se fecha num provincianismo que se imagina o centro do mundo, mas perde realmente a capacidade de aprendizado, tornando-se um repetidor de tiques e chavões, caquético antes do tempo.

Quem não sabe que, no meio acadêmico brasileiro, a receita uniforme, há mais de meio século, é Marx-Nietzsche-Sartre-Foucault-Lacan-Derrida, não se admitindo outros acréscimos senão os que pareçam estender de algum modo essa tradição, como Slavoj Zizek, Istvan Meszaros ou os arremedos de pensamento que levam, nos EUA, o nome de “estudos culturais”?

Daí a reação de horror sacrossanto, de ódio irracional, não raro de repugnância física, com que tantos estudantes das nossas universidades reagem a toda opinião ou atitude que lhes pareça antagônica ao que aprenderam de seus professores. Não que estejam realmente persuadidos, intelectualmente, daquilo que estes lhes ensinaram. Se o estivessem, reagiriam com o intelecto, não com o estômago. O que os move não é uma convicção profunda, séria, refletida: é apenas a impossibilidade psicológica de desligar-se, mesmo por um momento, do “eu” artificial aprendido, cuja construção lhes custou tanto esforço, tanto investimento emocional.

Justamente, a convicção intelectual genuína só pode nascer da experiência, do longo demorado com os aspectos contraditórios de uma questão, o que é impossível sem uma longa resignação ao estado de dúvida e perplexidade. A intensidade passional que se expressa em gritos de horror, em insultos, em afetações de superioridade ilusória, marca, na verdade, a fragilidade ou ausência completa de uma convicção intelectual. A construção em bloco de um personagem amoldado às exigências sociais e psicológicas de um ambiente ideologicamente carregado e intelectualmente pobre fecha o caminho da experiência, portanto de todo aprendizado subseqüente.

A irracionalidade da situação é ainda mais enfatizada porque o discurso desse personagem o adorna com o prestígio de um rebelde, de um espírito independente em luta contra todos os conformismos. Poucas coisas são tão grotescas quanto a coexistência pacífica, insensível, inconsciente e satisfeita de si, da afetação de inconformismo com a subserviência completa à autoridade de um corpo docente.

No auge da alienação, o garoto que passou cinco anos intoxicando-se de retórica marxista-feminista-multiculturalista-gayzista nas salas de aula, que reage com quatro pedras na mão ante qualquer palavra que antagonize a opinião de seus professores esquerdistas, jura, depois de ler uns parágrafos de Bourdieu para a prova, que a universidade é o “aparato de reprodução da ideologia burguesa”. Aí já não se trata nem mesmo de “paralaxe cognitiva”, mas de um completo e definitivo divórcio entre a mente e a realidade, entre a máquina de falar e a experiência viva.

Se, conforme se observou em pesquisa recente, cinqüenta por cento dos nossos estudantes universitários são analfabetos funcionais[4] – não havendo razão plausível para supor que a quota seja menor entre seus professores mais jovens –,  isso não se deve somente a uma genérica e abstrata “má qualidade do ensino”, mas a um fechamento de perspectivas que é buscado e imposto como um objetivo desejável.

Não que a presente geração de professores que dá o tom nas universidades brasileiras tenha buscado, de maneira consciente e deliberada, a estupidificação de seus alunos. Apenas, iludidos pelo slogan que os qualificava desde os anos 60 do século XX como “a parcela mais esclarecida da população”, tomaram-se a si próprios como modelos de toda vida intelectual superior e acharam que, impondo esses modelos a seus alunos, estavam criando uma plêiade de gênios. Medindo-se na escala de uma grandeza ilusória, incapazes de enxergar acima de suas próprias cabeças, tornaram-se portadores endêmicos da síndrome de Dunning-Kruger[5] e a transmitiram às novas gerações. Os cinqüenta por cento de analfabetos funcionais que eles produziram são a imagem exata da sua síntese de incompetência e presunção.

 


Notas:

[1] V. Antoine Albalat, La Formation du Style par l’Assimilation des Auteurs (Paris, Alcan, 1901).

[2] V. sobre isso as considerações de Theodore M. Porter em Trust in Numbers. The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life,  Princeton University Press, 1995, pp. 12-17.

[3] Digo isso com a consciência tranqüila de haver cumprido esse dever. Ao longo dos anos, introduzi no espaço mental brasileiro mais livros e autores essenciais  do que todos os corpos docentes de faculdades de filosofia neste país, somados aos “formadores de opinião” da mídia popular. Em vez de me agradecer, ou de pelo menos ter a sua curiosidade despertada pela súbita abertura de perspectivas, estudantes e professores, com freqüência, me acusaram de “citar autores desconhecidos” – dando por pressuposto que tudo o que é ignorado no seu ambiente imediato é desconhecido do resto do mundo e não tem a mais mínima importância.

[4] V. http://www.folhapolitica.org/2014/02/pesquisador-conclui-que-mais-da-metade.html.

[5] Efeito Dunning-Kruger: incapacidade de comparar objetivamente as próprias habilidades com as dos outros. “Quanto menos você sabe sobre um assunto, menos coisas acredita que há para saber.” V. David McRaney, You Are Not So Smart, London, Oneworld Publications, 2012, pp. 78-81.

Notinhas execráveis

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 14 de julho de 2014

          

Excetuada a hipótese da sabedoria infusa, é preciso algumas décadas de experiência para um sujeito entender que a esperança numa vida após a morte é mais realista, mais racional e mais científica do que a aposta em qualquer utopia social terrena. No fim a conclusão é sempre esta: ou o Paraíso ou o Nada. Como o Nada é impossível, resta aquela tentativa incansável e interminável de aproximar-se dele, a qual se chama, tradicionalmente, inferno.

Isso é a vida humana.

Dia a dia acumulam-se os indícios de que ela não cessa com a morte, inclusive esse filme espetacular, Heaven is for Real, em que um menino de quatro anos demonstra saber mais sobre o outro mundo do que em geral os guias iluminados dos povos sabem sobre este.

Em compensação, jamais se viu o menor sinal de que uma sociedade cientificamente planejada pudesse funcionar sem levar milhões de pessoas ao cárcere, ao cemitério ou, no mínimo, ao desespero. Quando Lincoln Steffens, um dos santos de devoção da babaquice jornalística, voltou da URSS informando “Eu vi o futuro e ele funciona”, a coisa já estava mesmo funcionando: fome e miséria, cadáveres para todo lado e a tortura institucionalizada como prática corriqueira pela mais eficiente polícia política de todos os tempos.

Em cada estação de trem, as mães se apinhavam implorando que alguém levasse embora os seus bebês antes que a genial economia socialista os matasse de inanição.

Platão, na República, já demonstrava que mesmo o melhor dos regimes políticos, concebido para agradar o mais exigente dos filósofos, terminaria por se destruir a si mesmo por suas contradições internas, e cederia o lugar a alguma velha porcaria tida pelos otimistas como historicamente superada.

Uma das razões mais constantes para que as coisas sejam assim é que, precisamente, os homens se esquecem de que elas são assim. Jean Fourastié, no seu clássico Les Conditions de l’Esprit Scientifique (Gallimard, 1966), ensina que uma das forças históricas mais decisivas é o esquecimento. De geração em geração, os sábios se entusiasmam de tal modo com as suas novas descobertas que acabam não percebendo que quase sempre a dose de conhecimento perdido é quase igual à do conhecimento conquistado. Deslumbrados com os antibióticos, os circuitos integrados, os clones e as fibras óticas, até hoje não sabemos explicar como os homens de outros tempos, aqueles bárbaros, conseguiram construir as pirâmides do Egito ou manter de pé os vitrais das catedrais góticas.

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Existe uma diferença enorme entre um ideal político substantivo e a camada de adornos verbais de que se reveste. Verbalmente, o socialismo é igualdade, liberdade, etc. e tal. Substantivamente, é a unificação de poder político e econômico, portanto a criação de uma casta governante mais poderosa e mais dominadora do que a anterior. O socialismo não é ruim porque se desviou do seu ideal, mas porque o realizou.

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O discernimento estético é parte integrante da cultura espiritual. A música, as artes plásticas, o cinema e o teatro são armas letais usadas na desumanização das massas, e isto menos pelo conteúdo propagandístico explícito (uma exceção) do que pelo simples fato de dissolverem o senso estético das multidões pela exposição repetida ao feio e disforme apresentado como normal.

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O tempo da pornografia já passou. A moda agora é deformidade corporal, vômito, sangue pisado, pus e cadáveres em decomposição.

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Pessoas que escrevem mal percebem mal, retêm mal, e com a maior facilidade se enganam a si mesmas quanto às suas intenções simplesmente trocando os nomes dos sentimentos que as movem. A literatura e o conhecimento da alma humana sempre andaram juntos. Ninguém pode apreender nuances e sutilezas da vida emocional com uma linguagem tosca, mesmo que gramaticalmente correta.

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O cristianismo jamais teve como objetivo a eliminação da pobreza. Jesus deixou isso muito claro ao dizer: “Sempre haverá pobres entre vós” – e, pior ainda, Ele disse isso num contexto que enfatizava a prioridade dos deveres espirituais sobre quaisquer demandas, mesmo justas e necessárias, da vida material.

Os comunistas não roubaram nenhuma ideia do cristianismo. Ao contrário, emprestaram-lhe a sua própria ideia, para dar a ela o prestígio de um ideal sagrado. A única ideia que os comunistas roubaram do cristianismo não tem nada a ver com eliminação da pobreza. Foi a ideia do Juízo Final, que eles reduziram à escala histórico-social para justificar o seu projeto de matar gente a granel sob um pretexto edificante.

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Seres humanos normais praticam a igualdade nas suas relações pessoais na medida do razoável e aceitam a desigualdade social como uma coisa natural e invencível. Malucos pretendem eliminar a desigualdade social e por isso levam ao extremo a desigualdade pessoal, imaginando-se infinitamente superiores aos demais seres humanos. Mao Dzedong acreditava-se igual aos setenta milhões de chineses que ele mandou para o beleléu?

Comunistas acreditam em “amar a humanidade impessoalmente”, como se abstraída a dimensão pessoal ainda restasse algo de humano. O que amam é uma hipotética humanidade futura construída à imagem deles mesmos, em nome da qual tentam eliminar a humanidade presente.

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Sugestão: Para cada livro de filosofia, leia pelo menos cinco de História. O confronto com os fatos amortece bastante o vício de jogar com conceitos e argumentos. O filósofo que o é pelo puro “gosto dos conceitos abstratos” (fórmula de Sir Michael Dummett tão apreciada por estas bandas) não passará jamais de um menino brincando de Lego.

Sonho mau

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 30 de junho de 2014

          

Muitas previsões, dizia Thomas Mann, são enunciadas não porque vão se realizar, mas na esperança de que não se realizem. Todas as que fiz, especialmente as mais alarmantes, foram assim. Com uma diferença: as previsões sempre se realizaram, a esperança nunca.

Nos assuntos humanos, a certeza absoluta é geralmente uma utopia. O máximo que se alcança é uma probabilidade razoável. E o culto devoto que o homem contemporâneo consagra aos números não o levará mais longe: uma probabilidade, calculada até os centésimos de milionésimos, continuará sempre sendo o que é — uma probabilidade, não uma certeza.

No entanto, continua válido o preceito de que a exatidão de uma ciência se mede pela sua capacidade de fazer previsões corretas. Nas ciências humanas, e especialmente na ciência política, a previsão deve sempre assinalar as variáveis que podem modificá-la no curso do processo. Muitas dessas variáveis dependem da criatividade, da iniciativa e da coragem dos personagens envolvidos. Se as previsões mais deprimentes se realizam com exatidão quase matemática, isto se deve mais à ausência desses três fatores do que aos méritos científicos de quem as enuncia.

Numa apostila já velha, que nunca tive a ocasião de corrigir para publicação, expliquei que a liberdade é uma propriedade vital da psique humana, mas que esta não a possui como um dom perfeito e acabado, e sim apenas como uma possibilidade que de certo modo se cria e se amplia a si mesma na medida em que se assume e se exerce. Por isso é que a famosa controvérsia de determinismo e livre arbítrio não tem solução geral teórica: esses dois fatores não pesam uniformemente em todas as vidas, mas se distribuem de maneira desigual conforme um jogo dialético muito sutil que varia de indivíduo para indivíduo, de situação para situação, de caso para caso. Não há como provar a liberdade senão exercendo-a, mas colocá-la em dúvida é já abster-se de exercê-la, provando portanto sua inexistência mediante uma profecia auto-realizável.

Inversa e complementarmente, a própria psique se torna rala e evanescente quando, por abdicação voluntária ou sob a pressão de condições adversas, a liberdade cede o passo à intervenção de fatores “externos”: a pura fisiologia, os hábitos inconscientes, o jogo das influências ambientais, o acaso, etc. Numa situação extrema, já não há mais atividade psíquica livre: a psique torna-se o reflexo passivo e mecânico de tudo quanto lhe é estranho.

Essa distinção aplica-se aos indivíduos como às sociedades. Em qualquer grupo social pode-se avaliar sem muita dificuldade se ali predominam a percepção alerta, a presteza e criatividade das reações, ou o apego indolente a chavões e frases feitas que se repetem como mantras enquanto a realidade vai correndo, mudando e passando como um trator sobre a multidão de sonsos.

Depreciando instintivamente as mudanças e diferenças, a mente letárgica apega-se à “heurística disponível”, que o manual de psicologia forense de Curtis R. Bartol, muito usado nos EUA, define como um atalho mental construído com os fatos mais vulgares e acessíveis – em geral os fatos repetidos pela mídia –, simulando uma explicação.

É assim que os riscos e ameaças mais graves e iminentes passam despercebidos sob uma afetação de segurança tranqüilizante. E foi assim que os planos do PT para a implantação do comunismo no Brasil, registrados nas atas de assembléias do partido, repetidos nas do Foro de São Paulo e insistentemente explicados nos meus artigos e conferências, foram solenemente ignorados como se fossem meras tiradas verbais sem a menor conseqüência, até que agora podem ser postos em prática diante dos olhos de todos, com a certeza de que a o povo e as elites, degradados e estiolados por décadas de indolência mental e repetitividade mecânica, nem saberão como reagir.

Não é preciso dizer que, deteriorada num grupo humano a capacidade de percepção rápida e reação criativa, o curso das coisas vai se tornando cada vez mais previsível graças ao império geral da passividade mecânica. O que era apenas uma probabilidade, manejável pela livre vontade humana, torna-se o cálculo matemático de uma fatalidade.

Pela milésima vez: Quando um homem normal diz “sociedade civil”, ele designa com isso a totalidade das pessoas dotadas de direitos civis e políticos. Quando um comunista usa o mesmo termo, ele sabe que os profanos o ouvirão exatamente assim, mas que os iniciados saberão perfeitamente que se trata apenas de um reduzido círculo de organizações e movimentos criados pelo Partido para fazer a parte suja do serviço sem comprometê-lo diretamente.

Na estratégia comunista, trocar a representação eleitoral pelo governo direto dessas organizações e movimentos é, desde há mais de um século, a virada decisiva, o “salto qualitativo” que, após uma longa acumulação de subversões e corrosões, marca a passagem de qualquer regime para uma ditadura socialista.

Para quem quer que conheça a história do comunismo, isso é uma obviedade patente, mas quem está acostumado a pensar segundo a “heurística disponível” da mídia usual, quem se recusou por mais de vinte anos a enxergar o que se preparava, talvez não venha a enxergá-lo nem mesmo depois de realizado. Muitos irão para o Gulag ou para o “paredón” jurando que é apenas um sonho mau.

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