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O nariz do viking

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de dezembro de 2013

          

Desculpem voltar ao assunto, mas a inépcia da classe universitária neste país é uma fonte de inspiração inesgotável para este deslumbrado colunista. Há coisas que o gênio mais excelso não conseguiria inventar, que não existem nem entre o céu e a terra nem na nossa vã filosofia, mas que jorram da idiotice aos borbotões, num fluxo incessante de criatividade que só encontra igual, mutatis mutandis, no primeiro capítulo do Gênesis.

Leiam esta frase da nossa já conhecida profa. Luciana Ballestrin: “Mesmo os velhos e os contemporâneos clássicos do liberalismo político moderado são capazes de aceitar a tolerância, a diferença, a liberdade de expressão…”

O tom de superior condescendência sugere que a tolerância, o respeito à diferença etc. são virtudes tão bem repartidas entre vários regimes políticos, que até mesmo os liberais são capazes de praticá-las um pouquinho.

No mundo real, porém, ninguém ignora que essas virtudes foram inventadas pelos liberais e só existem nos sistemas políticos que o liberalismo criou ou nos quais deixou sua marca profunda. Elas são o liberalismo. Em todos os outros regimes, só o que se vê é rigidez, intolerância, perseguição, encarceramento e matança dos divergentes. Não podendo negar esse fato, mas odiando reconhecê-lo, a articulista da Carta Maior apela ao expediente pueril de atenuá-lo mediante o uso do modo comparativo. Mas comparações só funcionam quando há elementos a ser comparados, e no caso não há nenhum.

No mundo moderno não há exemplos de tolerância e liberdade fora do liberalismo. Não se trata portanto de uma comparação autêntica, mas de um fingimento, de uma comparação postiça, absurda, produzida à força para fins puramente pejorativos.

Fingindo louvar um mérito, a professora o achincalha ao dividi-lo com quem não o tem, deixando ao seu portador único e genuíno só um tiquinho, uma lasquinha da virtude supostamente geral, como quem dissesse: “Até mesmo os ovíparos botam ovos.”

Para piorar um pouco mais as coisas, ela não reconhece essas virtudes políticas nem mesmo em todos os liberais, mas só nos “moderados”. Fica subentendido que existem liberais radicais que as negam. Mas a única facção radical que existe nas hostes liberais é o libertarianismo, que em vez de negar a tolerância e a liberdade as amplia até à demência. Se alguém entre os liberais aceita moderá-las em vista de outras considerações, são precisamente… os moderados.

Vem mais: “Seria um tanto contraproducente esboçar nessas linhas argumentos e razões que tentem comprovar que o Brasil não é governado por comunistas e que a universidade brasileira não está intoxicada pelo marxismo.” Se ela dissesse que esboçar esses argumentos é “desnecessário”, entenderíamos que, na sua opinião, são pontos pacíficos, fatos notórios que nem é preciso provar.

É obviamente isso o que ela deseja que o leitor acredite. Mas, ao escolher a palavra com que vai dizê-lo, ela se trai e diz o inverso. Reiterar a demonstração do óbvio pode ser desnecessário, tedioso, supérfluo. “Contraproducente”, nunca: uma demonstração é contraproducente quando, em vez de dar o resultado esperado, produz o seu oposto e, no esforço de repetir a pretensa certeza adquirida, acaba por demoli-la. A professora sabe que é precisamente isso o que aconteceria se ela tentasse provar a inexistência da hegemonia marxista nas nossas universidades, pela simples razão de que essa hegemonia é um fato.

Em tão constrangedora circunstância, ela tenta fazer o leitor engolir como verdade notória e arquiprovada algo que ao mesmo tempo ela confessa não poder provar de maneira alguma. Tentando ser esperta, só prova que é mesmo uma boboca. Numa das tiras de Hagar, o Horrível, o robusto viking encontra seu amigo magrinho, cujo nome esqueci, esmurrando vigorosamente o próprio nariz. “Que raio de coisa é essa?”, pergunta o chefe. E o outro, todo orgulhoso: “Um guerreiro precisa vencer-se a si mesmo.” A professora Ballestrin estudou nessa escola.

Completando: “Da mesma maneira estéril, argumentar que o eurocentrismo, o colonialismo e o progresso moderno não são completamente afastados do marxismo e que justamente por isso, ele encontra resistência nos movimentos decoloniais latino-americanos.”

Não liguem para a palavra “decoloniais”: é o neologismo pedantíssimo com que alguns intelectuais anticolonialistas de Nova York insinuam que ainda são colonizados, coitadinhos. O que a professora está dizendo é que eles se irritam com os parágrafos em que Marx reconhece o papel positivo do colonialismo europeu no desenvolvimento das forças produtivas.

Contudo, ver nessa ranhetice de detalhe uma “resistência ao marxismo” é como dizer que Lênin “resistiu ao marxismo” quando achou que podia fazer a revolução com meia dúzia de intelectuais em vez de esperar pelo proletariado.

Não faz o menor sentido ressaltar a “importância das várias correntes do marxismo, do vulgar e ortodoxo para o crítico e arejado” (sic), e depois imaginar que as diferenças que as separam sejam “resistências ao marxismo”. Todas essas divergências e uma infinidade de outras brotam dentro de um marco conceitual que permanece estritamente marxista.

Cada vez que os comunistas divergem uns dos outros, isso é explicado, dentro do movimento, como uma prova da sua pujança e riqueza de perspectivas, e, fora, como uma prova de que o comunismo acabou e de que preocupar-se com ele é “paranoia”.

A professora Ballestrin pensa que pode fazer as duas coisas de uma vez. Por isso mesmo, acaba não fazendo nem uma, nem a outra.

O método para não entender nada

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de dezembro de 2013

          

Richard Rorty diz que, não havendo nenhuma verdade a ser encontrada acima das divergências de opinião, a filosofia se reduz a um puro divertimento, no qual, em vez de procurar saber se tal ou qual filósofo tinha razão, você deve tentar apenas “pensar como ele”, como quem assiste a um drama – ou o escreve — e se identifica com os pontos de vista dos vários personagens sem chegar a conclusão nenhuma. Ele ia até mais longe e afirmava que a mesma tolerância e abstinência de julgamento deveria ser praticada com os grandes agentes históricos, não havendo razão nenhuma para que algum escritor não produza uma biografia de Hitler desde o ponto de vista do próprio Hitler, representando mentalmente e sentindo, sem julgá-lo, o ódio anti-semita que o movia.

            O primeiro desses conselhos é um bom método para começar a estudar filosofia, mas não constitui uma filosofia de maneira alguma, assim como o segundo é um bom meio de iniciar uma investigação histórica, mas não de concluí-la.

            É evidente que, quando você estuda as doutrinas de um filósofo, deve absorvê-las como se fossem as suas próprias antes de poder julgá-las. Se você salta essa etapa, as idéias dele permanecem um corpo estranho e ao julgá-las desde fora você não as atinge, apenas desliza sobre elas. Mas, se, após ter feito um esforço para pensar como se fosse Descartes ou Nietzsche você não é capaz de voltar a ser você mesmo e julgá-los desde o seu próprio ponto de vista, fica também impossível julgar Descartes desde o ponto de vista de Nietzsche, ou vice-versa, isto é, toda comparação se revela inviável e a filosofia se reduz a uma coleção de discursos separados e inconexos, um diálogo entre quem não ouve e quem não fala.

            Em segundo lugar, para “pensar como” fulano ou beltrano, você precisa saber o que eles sabem. Mas será possível e necessário, também, ignorar o que eles ignoram? Por exemplo, algo que se descobriu depois que eles morreram, e do qual você está bem informado. Se o mapa da sua ignorância não coincide exatamente com o de um outro indivíduo, você jamais poderá pensar exatamente como ele. Você pode, é claro, fingir que ignora o que ele ignora, mas esse fingimento é algo que não estava no pensamento dele e que você está introduzindo nele desde fora. Se, ao contrário, você realmente ignora o que ele ignora, então não é da ignorância dele que se trata, e sim da sua própria, que só por acaso coincide com a dele. E é loucura imaginar que a coincidência fortuita de duas ignorâncias seja um bom método para compreender o que quer que seja.

            Chega a ser inacreditável que um filósofo de grande reputação como o prof. Rorty não percebesse, de imediato, a completa inviabilidade do método que sugeria.

            O que cabe fazer em filosofia, o que no fundo todo estudante acaba fazendo sem nem mesmo ter a intenção clara de fazê-lo, é tentar pensar como o filósofo que você está estudando e depois, confrontando o que ele sabia com o que você sabe, criar a sua própria opinião sobre as opiniões dele. (É claro que existem maus estudantes — muitos deles, decerto, professores — que já criam a sua própria opinião a respeito antes de deixar o filósofo terminar de falar, e alguns até antes de que ele comece a falar. Mas “non raggionam da lor”.)

            Quanto aos personagens históricos, é claro que devem também ser estudados desde suas próprias intenções e valores, “sine ira et studio”, mas é impossível fazê-lo sem levar em conta que competiam com as intenções e valores de outros personagens e que tanto as intenções e valores de uns quanto as dos outros se recortavam sobre um horizonte de consciência (e de inconsciência) que não é o do historiador que os está estudando. Este, portanto, nada compreenderá do drama histórico se, desde os dados à sua disposição, não puder distinguir, entre os personagens históricos, quais viam a situação mais apropriadamente que os outros. Posso, por exemplo, tentar me colocar no lugar de Hitler e “sentir” imaginariamente o ódio que ele sentia aos judeus, desde as razões que ele se apresentava para tanto. Mas devo levar essa tolerância relativista ao ponto de ter de ignorar o que ele ignorava? Devo fazer de conta que não sei que ele acusava os judeus de crimes que eles não haviam cometido e enxergava neles defeitos de constituição cerebral que eles não têm de maneira alguma? Posso até fingir isso, mas aí já não estarei pensando como Hitler e sim como um dramaturgo que inventa um personagem chamado “Hitler” sem ter em conta o Hitler da História. Pior ainda, se após mergulhar no horizonte de consciência de Hitler não saio fora dele para julgá-lo de cima, como posso distinguir se Hitler acreditava mesmo naquelas coisas ou apenas as fingia, por sua vez, para tirar delas proveito político?

            Tanto em filosofia quanto em historiografia, o método do prof. Rorty só pode levar a um resultado: uma confusão dos diabos. Não espanta que, havendo-o praticado por anos a fio, ele próprio chegasse a concluir que nenhum problema tem solução e que a única coisa que o filósofo tem a fazer é entregar-se ao divertido empreendimento de não entender nada.

            Muito menos espanta que um seu discípulo local, um tipo folclórico que se denomina “o filósofo da cidade de São Paulo” – como se não tivessem sido da  capital paulista os maiores filósofos que o Brasil já teve, Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva e Vilém Flusser –, após ter absorvido as idéias do mestre, acabasse acreditando que a pedofilia é uma coisa boa e que, historicamente, a prática generalizada do coito anal antecedeu a do coito vaginal…

Bobinha

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 1 de dezembro de 2013

Na Carta Maior desta semana, uma professora de ciências políticas da Universidade Federal de Pelotas, Luciana Ballestrin, adverte que enxergar alguma hegemonia comunista nas instituições superiores de ensino é “paranóia” e insinua que, ao contrário, o verdadeiro perigo que se esboça no horizonte nacional é o do fascismo.

            A prova que ela oferece desse deslumbrante diagnóstico é que três pessoas reclamaram contra o comunismo universitário. Firmemente disposta a dizer qualquer coisa contra essas três minguadas vozes, ela as acusa, ao mesmo tempo, de provir de “um gueto” e de obter “grande repercussão na mídia”.

            É notório que, entre os estudantes universitários brasileiros, quatro em cada dez são analfabetos funcionais. Temo que entre os professores da área de humanas essa proporção seja de nove para dez. A profa. Ballestrin é mais um exemplo para a minha coleção. Ela fracassa tão miseravelmente em compreender o significado das palavras que emprega, que no seu caso o adjetivo “funcional” é quase um eufemismo.

            Desde logo, se os direitistas vivem num “gueto”, quem os colocou lá? Enclausuraram-se por vontade própria ou foram expelidos da mídia, das cátedras e de todos os ambientes de cultura superior pela política avassaladora de “ocupação de espaços” que a esquerda aí pratica desde há mais de meio século? Um gueto, por definição, não é um hotel onde a minoria se hospede voluntariamente para desfrutar os prazeres de uma vida sombria, fechada e opressiva, sem perspectivas de participação na sociedade maior. É uma criação da maioria dominante, um instrumento de exclusão usado para neutralizar ou eliminar as presenças inconvenientes. A maior prova de que o esquerdismo domina o espaço é que a direita vive num gueto. Ao acusá-la precisamente disso, essa porta-voz do esquerdismo oficial só dá testemunho contra si própria.

          Com igual destreza ela maneja a segunda acusação: a de que as três vozes obtiveram “grande repercussão na mídia”. Que grande repercussão? Alguma delas foi manchete de um jornal, foi alardeada no horário nobre da Globo, deu ocasião a uma série infindável de reportagens, congressos de intelectuais e debates no Parlamento como acontece com qualquer denúncia de “crimes da ditadura” ocorridos cinqüenta anos atrás? Nada disso. Foram apenas noticiadas aqui e ali, discretamente, num tom de desprezo e chacota. Mas, para a profa. Ballestrin, mesmo isso já é excessivo. Ela nem percebe que, ao protestar que três direitistas saíram do gueto, ela os está mandando de volta para lá.

            Mas onde ela capricha ao máximo em não entender nada é ao enxergar uma “paranóia” em três denúncias isoladas, só notáveis pela raridade, e nenhuma nos gritos de alarma contra a “ameaça fascista” que pululam aos milhares, com estridência obscena, em publicações e salas de aula por todo o país. Na própria Carta Maior o toque de alerta antifascista ressoa diariamente. Qualquer observador isento nota a desproporção entre a iminência objetiva desses dois perigos e a intensidade do temor real ou fingido que despertam. Apontar o avanço comunista é apenas registrar as vitórias que centenas de organizações comunistas alardeiam e celebram nas assembléias do Foro de São Paulo (prontas, decerto, a negá-las em público quando lhes convém). Mas e o fascismo? Onde estão as organizações que o representam, os partidos que buscam elevá-lo ao poder, as verbas bilionárias que o sustentam, a militância adestrada para impô-lo a um povo inerme, os milhares de livros que infectam com o vírus fascista as prateleiras das livrarias e as bibliotecas das universidades? Nada disso existe. Nada, absolutamente nada. Tanto não existe, que, para fingir que existe, é preciso até mesmo chamar de fascistas as massas de agitadores comunistas pagos pelo governo para espalhar o terror nas ruas e forçar a transição para o socialismo explícito e descarado.

            A inversão das proporções é, decerto, um dos traços mais típicos e constantes da mentalidade revolucionária, mas nem todos a ostentam com a cândida desenvoltura dessa mulherzinha boba.

         Saber qual orientação ideológica predomina em determinado ambiente social não deveria ser muito difícil para uma “cientista política”, especialmente quando esse ambiente é o dela própria – o seu departamento universitário. Ela poderia perguntar, por exemplo, quantos de seus colegas votam na esquerda, quantos na direita. Ou poderia, com um pouco mais de esforço, averiguar a linha ideológica majoritária dos autores cuja leitura eles recomendam a seus alunos. Poderia até, se quisesse, fazer inspeção semelhante em outros departamentos de ciências humanas pelo Brasil a fora, para verificar se as várias correntes de pensamento estão aí representadas equitativamente ou se uma delas predomina até o ponto do monopolismo absoluto.

         Tudo isso, no entanto, para a profa. Ballestrin, é esforço excessivo, cruel e desumano. Tudo o que se pode exigir dela é que raciocine pelo método histérico da auto-impregnação auditiva. Eis como funciona. Nos seus anos de estudante, você faz um esforço danado para macaquear o discurso dos seus professores. Ouve, presta atenção e imita cada

de linguagem, cada cacoete, cada chavão. Quando por fim consegue falar como eles, você ouve o que você próprio diz e, orgulhoso de tamanha realização, acredita que é tudo verdade. Então está maduro para lecionar e para escrever artigos na Carta Maior.

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