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Aprendendo com o Dr. Johnson

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 21 de março de 2007

O dr. Samuel Johnson, escritor maravilhoso e antepassadosetecentista dos modernos conservadores, dizia que o teste definitivo de uma civilização está na sua maneira de tratar os pobres. Na sua época, ninguém tinha tido ainda a idéia brilhante de desvencilhar-se deles entregando-os aos cuidados da burocracia estatal. Essa idéia, mesmo que não seja levada à prática, já vale por um teste: ela mostra que a sociedade não sabe o que fazer com os pobres, não quer trato direto com eles e preferiria reduzi-los a mais um ítem abstrato, invisível e inodoro do orçamento estatal. Ela acha isso mais higiênico do que enfiar a mão no bolso quando eles pedem uma esmolinha e infinitamente mais palatável do que ter de conversar com eles quando têm o desplante de puxar papo na rua com S. Excia. o contribuinte. Na verdade o cidadão moderno desejaria chutar todas as suas responsabilidades para o Estado: ele não quer proteger sua casa, mas ser protegido pela polícia; não quer educar-se para educar seus filhos, mas entregá-los a técnicos que os transformarão em robôs politicamente corretos; não quer decidir o que come, o que bebe, o que fuma ou deixa de fumar: quer que a burocracia médica lhe imponha a receita pronta; não quer crescer, ter consciência, ser livre e responsável: quer um pai estatal que o carregue no colo e contra o qual ele ainda possa fazer birra, batendo o pezinho na defesa dos seus “direitos”. O Estado sorri, porque sabe que quantos mais direitos concede a esse cretino, mais leis são promulgadas, mais funcionários são contratados para aplicá-las, mais repartições burocráticas são criadas, mais impostos são cobrados para alimentá-las e, enfim, menor é a margem de liberdade de milhões de idiotas carregadinhos de direitos.

Essa civilização já se julgou a si mesma: constituída de moleques egoístas e covardes, ela não é capaz de se defender. Ao primeiro safanão mais forte, vindo dos comunistas, dos radicais islâmicos ou dos autonomeados governantes do mundo, ela se põe de joelhos abjurando lealdades milenares e prontificando-se a transformar-se no que o novo patrão deseje.

Nem todos, é claro, se acomodam tão bem a essa agonia deleitosa. Ainda há homens e mulheres de verdade, capazes de agir por si próprios, sem intermediário estatal, orgulhosos da sua liberdade. Eles sabem que a liberdade efetiva não tem nada a ver com “direitos” outorgados pela burocracia espertalhona. Sabem que a liberdade vem do coração e depende de símbolos inspiradores profundamente arraigados na cultura dos milênios. Quando são abordados por um pobre na rua, sabem que não estão diante de um problema administrativo. Não correm para esconder-se sob as saias da burocracia. Encaram o pobre como um igual temporariamente caído, merecedor de tanto carinho e atenção quanto eles próprios o seriam em circunstâncias análogas. Não hesitam em estender algum dinheiro ao infeliz, em conversar com ele, às vezes em assumir responsabilidade pessoal por tirá-lo da sua condição infame, dando-lhe trabalho, um abrigo, um conselho.

A sociedade já se condenou a si mesma quando virou o rosto aos pedintes, sonhando em transformá-los numa equação administrativa. Só homens e mulheres de verdade podem salvá-la da derradeira abjeção. Não hesito em incluir entre eles o sr. Fausto Wolff, que é burro, metido e comunista, mas, graças à boa influência da sua esposa, está se tornando gente. Olhem só o que ele escreveu no JB de 2 de janeiro:

Minha mulher leva na bolsa R$ 10 em moedas para dar aos meninos que lhe pedem dinheiro para comer. Outro dia, contou-me uma história que comoveu este velho coração de granito. Um menino pretinho de cinco anos pediu-lhe dinheiro para comprar um pão. Ela disse-lhe: ‘Pois não, meu filhinho
querido’. O menino ficou com olhos cheios de lágrimas. Afastou-se e logo voltou e pediu mais dinheiro, mas, em verdade, o que queria era ouvi-la dizer que ele era querido. Logo, outros se aproximaram apenas para ouvir palavras carinhosas e se sentirem seres humanos. Em dez anos estarão queimando ônibus?

É isso aí, sra. Wolff! Se todas as mulheres brasileiras ensinarem isso a seus maridos, um sorriso de esperança brilhará nos rostos de milhões de crianças deste país.

P. S. – Leiam também http://www.olavodecarvalho.org/semana/grossura.htm.

O patinho feio da política nacional

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de março de 2007

Um artigo que publiquei no Rio de Janeiro, mas que o leitor do Diário do Comércio pode encontrar em http://www.olavodecarvalho.org/semana/070308jb.html, acabou suscitando mais polêmicas do que eu esperava. Nele eu esboçava as preliminares de uma crítica ao hábito da direita brasileira de denominar-se “liberal” em vez de “conservadora”, hábito que resulta numa desastrada inversão das suas intenções e propósitos, já que o liberalismo é uma etapa do movimento revolucionário mundial e não se pode frear um movimento fazendo-o dar, como dizia Lênin, um passo atrás para dar dois para a frente.

A terminologia política americana é muito mais sã e realista do que a brasileira. Direita e esquerda, nos EUA, são chamadas respectivamente “conservatism” e “liberalism”, mostrando que o pivô da luta política é a escolha entre conservar os valores e princípios dos Founding Fathers, ou, ao contrário, liberar-se deles. O fato de que esses valores e princípios absorvam em si o legado do liberalismo econômico clássico (de Adam Smith a Ludwig von Mises) poderia gerar algum equívoco, mas nunca vi um americano com mais de oito anos de idade confundir “classic liberalism”, que é uma teoria econômica, com o liberalismo político de Ted Kennedy, Nancy Pelosi e George Soros, que tende a uma economia estatizante e socialista. É que a divergência em economia é somente um elemento de detalhe numa disputa que se desenrola em torno de diferenças muito mais abrangentes e profundas. Em última instância, o que está em jogo é saber se os princípios da Constituição continuarão valendo em sentido material, substantivo, com todas as suas implicações culturais e morais para o guiamento da vida americana, ou se, ao contrário, serão interpretados num sentido meramente jurídico-formal que permita usá-los em favor de valores opostos aos que inspiraram a redação do documento.

A diferença é exemplificada pelo debate atual em torno do famoso “muro de separação” que Thomas Jeffenson pretendia erguer entre o Estado e as religiões. A idéia original era impedir que o Estado se tornasse instrumento de perseguição religiosa. Os “liberals” apegam-se hoje à fórmula, mas esvaziando-a do seu significado e transformando-a num pretexto jurídico-formal para banir da vida pública toda expressão da fé, instituindo a perseguição anti-religiosa generalizada que, a esta altura, já se traduz numa profusão de leis repressivas.

O que no Brasil incitou a direita a autodenominar-se “liberal” foi o fato de que o debate político nacional se limita quase que por inteiro a uma questão econômica, a disputa entre intervencionismo estatal e livre mercado. Nesse quadro, a simples opção pelo “liberalismo clássico” em economia acabou servindo para definir toda uma corrente política como “liberal” (ou, segundo seus adversários, “neoliberal”, um termo que já comentei aqui; v.  http://www.olavodecarvalho.org/semana/050725dc.htm). Os inconvenientes disto são múltiplos.

Desde logo, o fato de uma corrente política aceitar definir-se exclusivamente pela sua opção econômica serve para legitimar um debate político atrofiado, expressão cultural de uma sociedade doente obcecada por dinheiro – ou antes, como dizia o Millôr Fernandes, pela falta de dinheiro.

Em segundo lugar, o liberalismo político é desde suas raízes um movimento revolucionário e anti-religioso. A origem do termo é espanhola, opondo “liberales” a “serviles”, abrangendo implicitamente neste último termo a totalidade dos fiéis católicos. Foi o liberalismo  que, na França, instituiu a “constituição civil do clero”, virtualmente banindo a Igreja do território nacional. Na linguagem das encíclicas papais, “liberalismo” é a denominação das correntes heréticas que diluíram o dogma tradicional, preparando o advento da apostasia geral e da “teologia da libertação”. Entre os protestantes, “liberalismo religioso” é o nome da traição organizada. “O liberalismo – como resumiu um pregador evangélico americano – substituiu-se à perseguição. A perseguição matava homens, mas fazia prosperar a causa; o liberalismo mata a causa bajulando os homens para induzi-los a compromissos. A verdade perseguida sobreviveu em todas as eras, mas a verdade comprometida nunca sobrevive à tragédia fatal em que a voz de Deus é igualada à voz das tradições humanas” (Judson Taylor, em http://gospelweb.net/OldTimersWorks/judsontaylor.htm).

Como no Brasil não há outras correntes direitistas além da “liberal”, a ela acorrem em busca de abrigo os conservadores católicos, protestantes e judeus. Mas aí, em nome da liberdade de mercado, são obrigados a camuflar as divergências que têm com os demais liberais em pontos muito mais decisivos de ordem moral e cultural. O “liberalismo” brasileiro, unificado exclusivamente por um programa econômico, é um saco de gatos no qual têm de conviver em harmonia abortistas e anti-abortistas, adeptos e inimigos da liberação das drogas e da eutanásia, fiéis religiosos ao lado de discípulos de Voltaire e Richard Dawkins empenhados em banir a religião da vida pública. Durante algum tempo, essas divergências podem parecer desprezíveis em face da luta mais imediata contra a economia estatista. Mas isso é uma ilusão mortal. Há tempos a esquerda internacional e local já decidiu que a estatização da economia pode ser adiada indefinidamente, se não sacrificada de vez em favor da fórmula mista chinesa — e que muito antes dela vem o combate no campo cultural, a luta contra a civilização judaico-cristã. Nessa luta, bandeiras como a liberação das drogas, a proibição da “homofobia” ou a legalização da eutanásia são prioritárias. Como se pode combater o esquerdismo concentrando o ataque num objetivo hipotético de longo prazo e cedendo ao inimigo todo o campo de batalha real e imediato onde ele já conquistou a hegemonia e tem quase o controle completo da situação? Essa é exatamente a “fórmula estratégica” do liberalismo brasileiro, que no seu enfrentamento com os esquerdistas tem de se limitar à argumentação econômica para não pôr à mostra suas profundas e insanáveis divergências internas, enquanto o discurso da esquerda está livre para abranger todos os temas e todas as dimensões da vida social, seguro de poder contar, em muitas áreas, com o apoio de uma parcela dos “liberais”.

Foi para limpar o terreno e possibilitar uma discussão séria desse problema que escrevi o artigo “Por que não sou liberal”.

O artigo exibia as palavras “liberal” e “conservador” entre enfáticas aspas, para indicar que significavam “tipos ideais”, não assimiláveis a qualquer grupo político concretamente existente nos arredores. Não obstante, muita gente o leu como se fosse um ataque desferido contra um desses grupos. Houve até quem visse nele o manifesto de um alguma confraria política mais ou menos clandestina, que por fim saísse do armário esbofeteando as vizinhas para poder mais facilmente se autodefinir por oposição a elas.

No Brasil de hoje, é isso o que se chama de “ler”. Primeiro, atribuir intenções ao autor e discutir com elas, não com ele. Segundo, transpor o texto para o modo imperativo, interpretando-o como se fosse a expressão de um desejo ou ordem, uma tentativa de interferir na realidade e não de compreendê-la. Já expliquei anos atrás que, das famosas três funções da linguagem classificadas por Karl Bühler, os brasileiros só sabiam de duas: a expressiva (manifestar estados interiores) e a apelativa (influenciar as pessoas). A função denominativa (descrever e analisar a realidade) era totalmente desconhecida nesta parte do mundo, e quem quer que cometesse a imprudência de falar ou escrever alguma coisa nessa clave seria automaticamente traduzido para as outras duas.

Por trás da linguagem informal, meu artigo era um estudo estritamente científico de duas fórmulas ideológicas consideradas na sua pura lógica interna, independentemente de acréscimos e modificações que pudessem sofrer de fatores sociológicos ou psicológicos intervenientes. Para tirar dele conseqüências políticas aplicáveis à situação concreta seria preciso antes compreendê-lo no próprio nível teórico em que se colocava. Saltando essa etapa, alguns preferiram aplicá-lo diretamente a si próprios e achar que eu estava falando mal deles, ficando naturalmente indignados com a injustiça que eu lhes fazia (é a terceira regra de leitura vigente neste país: substituir a compreensão inteligente por alguma afetação de sentimentos morais elevados; a quarta é interpretar tudo como mensagem cifrada de um grupo e não como esforço cognitivo de um cérebro individual).

Quem sabe que os sistemas de idéias têm uma estrutura própria, independente e diversa das intenções subjetivas de seus seguidores, entende claramente que a distinção entre liberalismo e conservadorismo é exatamente aquela que expus. Se alguém não o entende é porque, levado por hábito pessoal ou grupal, anexa ao liberalismo valores externos, — morais ou religiosos — que não são logicamente integráveis na sua estrutura. Muitos dos que caem nesse erro são apenas conservadores que se afeiçoaram, por motivos de pura oportunidade local, ao rótulo de liberais.

Quando o liberal enfezado exclama: “Nós temos princípios, não somos aqueles amoralistas que você descreveu”, ele mostra, desde logo, sua incapacidade de distinguir entre o arranjo terminológico local e a ideologia liberal em si. Mostra ainda sua confusão entre “princípios” e meras regras operacionais.

Um princípio é assim chamado porque vem, ora bolas, no princípio! Não na continuação de alguma coisa. É um preceito fundante e não fundado, condicionante e não condicionado. Justamente porque não depende de mais nada, porque vale por si mesmo, é que um princípio tem de poder ser aplicado universalmente, sem modificações nem atenuantes, a todos os casos abrangidos no seu enunciado, sem que isso leve a nenhuma contradição lógica e muito menos a absurdidades reais. Sem essa propriedade, nenhum enunciado é um princípio. “Não matarás”, por exemplo, é um princípio. Um indivíduo decidido a cumpri-lo até às últimas conseqüências, abstendo-se de tirar a vida alheia mesmo quando os outros o julgassem moralmente obrigado a fazê-lo, nem por isso teria se tornado um assassino. Um omisso ou um covarde, talvez; não um assassino. A extensão indefinida das aplicações não modifica o sentido do princípio, que é princípio justamente por isso: por estar na extremidade inicial de uma série ilimitada de conseqüências sobre as quais ele impera com autoridade inabalável, absoluta.

Já as regras operacionais não instituem o seu próprio campo de aplicação: ele é demarcado por um número ilimitado de outras regras operacionais, algumas delas tácitas ou só descobertas ex post facto, bem como por um número também ilimitado de conveniências de ordem prática que podem intervir em cada caso. Toda regra operacional é por isso intrinsecamente deficiente e não pode ser aplicada senão com muitos atenuantes e modificações.

Um princípio vale por si, independentemente da variedade das situações. As regras operacionais, ao contrário, sempre se dispõem em sistemas e hierarquias compostos essencialmente de limitações mútuas (culminando, idealmente, num princípio que as limita a todas sem ser limitado por elas). Uma regra operacional que, desconhecendo seus limites internos e externos, busque estender indefinidamente seu campo de aplicação, acabará se chocando não só contra outras regras e contra as conveniências externas, mas contra si própria. “Agir no interesse próprio”, por exemplo, é uma regra operacional. Ela funciona em certas circunstâncias da vida, mas, se passar de um certo limite, jogando os interesses do indivíduo contra os de todos os demais, ele se tornará presa de uma situação de isolamento ou de hostilidade que não é do seu interesse de maneira alguma. A regra, para funcionar, tem de ser freada por um sem-número de outras considerações. Na verdade ela já vem com freio, porque os interesses de uma criatura limitada são eles próprios necessariamente limitados, no mínimo pela duração limitada da sua vida. Uma regra operacional erigida indevidamente em princípio leva necessariamente à sua própria negação.

Ora, quais são os “princípios” do liberalismo? Quais são os critérios máximos e comuns a que os liberais, ao tentar dirimir suas divergências internas, apelam como a princípios supremos incumbidos de fundamentar julgamentos unânimes e restaurar a unidade do conjunto?

São dois: a liberdade e a propriedade privada.

Mas esses não são princípios de maneira alguma. São regras operacionais. Quando um liberal diz que “a liberdade de um termina onde começa a do outro”, ele está reconhecendo exatamente isso. E o mesmo aplica-se à propriedade: o terreno do Zé-Mané termina onde começa o do Mané-Zé. Nem a lei da propriedade nem a da liberdade podem ser estendidas ilimitadamente sem negar-se a si próprias. A liberdade absoluta equivaleria à completa ausência de constrangimentos externos, isto é, ao poder absoluto e à completa extinção da liberdade. Do mesmo modo, a propriedade absoluta corresponderia à posse integral e perfeita: seria propriedade em sentido lógico e não jurídico, como a propriedade de respirar, que você não pode vender e portanto não é propriedade em sentido jurídico de maneira alguma.

O “não matarás” não tem limites internos de qualquer natureza. Ele exclui somente aqueles casos que, a priori, já estão fora do seu enunciado, como por exemplo a defesa própria: defender-se não é “matar”, é tentar sair da encrenca por algum meio que, independentemente da sua intenção, resulte na morte do atacante.  Se quem se defende em tais circunstâncias não é assassino, muito menos o é quem se recuse a fazê-lo, estendendo a aplicação literal do princípio até à aceitação passiva do dano próprio. Já a liberdade e a propriedade têm o dom inato de liquidar-se a si mesmas quando se erigem em princípios.

Se o liberalismo desemboca com tanta frequência no socialismo – como Verkhovenski pai gera Verkhovenski filho em Os Demônios de Dostoiévski –, é precisamente porque se constitui de regras operacionais que não têm, por definição, a abrangência necessária de princípios capazes de dar conta de suas próprias conseqüências.

O liberalismo é assim em razão da profunda influência que recebeu de Kant. Todo o esforço do filósofo de Koenigsberg foi para esvaziar a moral (e sua filha primogênita, a filosofia política) de todo conteúdo substantivo, reduzindo-a a um punhado de exigências formais, como por exemplo, “age de maneira que a regra que inspira tua ação possa ser adotada em todos os casos idênticos”. Kant não nos diz que regra deve ser essa, e não o diz justamente porque a moral, para ele, não pode ter nenhum fundamento objetivo. Ela repousa inteiramente na “fé”, compreendida como crença subjetiva, e nos “imperativos categóricos”, isto é, em exigências que ninguém pode justificar mas que todos se sentiriam aviltados se não as cumprissem. Para Kant, só existe conhecimento substantivo dos “fenômenos”, aparências naturais estudadas pela ciência física. Tudo o mais são formas lógicas, “imperativos categóricos” ou matéria de crença pessoal. Como nenhuma dessas três coisas é um princípio, no sentido substantivo do termo, isso equivale a dizer que a moral kantiana e a política liberal que nela se inspira são totalmente desprovidas de princípios, exceto lógico-formais e operacionais.

Guido de Ruggiero notou, em sua clássica “História do Liberalismo Europeu”, que o liberalismo não era uma filosofia política no sentido substantivo, mas um “método”, um conjunto de preceitos e regras que podiam ser adaptados às mais diferentes situações mediante um número ilimitado de ajustes e atenuações, conforme as exigências dos casos concretos.

Qualquer afirmação de um princípio substantivo é, na perspectiva kantiana, uma invasão do território reservado às ciências. O kantismo é, nesse sentido, o pai do positivismo, que os liberais de hoje tanto abominam porque têm contra ele aquele ódio extremo dos irmãos inimigos. Na verdade, odeiam nele tão somente a sua política centralizante e intervencionista, mas continuam subscrevendo a proibição kantiano-positivista de levar o conhecimento humano para além dos “fenômenos” e, portanto, de conhecer qualquer princípio moral universal no sentido que esses princípios tinham em Platão ou no cristianismo.

A própria sacralidade da vida humana não cabe de maneira alguma na perspectiva liberal. Para não ser abandonada de todo, ela acaba tendo de ser justificada com base nos dois pseudo-princípios da liberdade e da propriedade. Raciocina-se, por exemplo, da seguinte maneira: o corpo e sua vida são propriedades privadas do seu portador, o qual tem a liberdade exclusiva de decidir o que fazer com eles; logo, matá-lo contra a vontade dele é violar sua propriedade e sua liberdade. Tendo proclamado isso, o liberal acredita ser um sujeito boníssimo, porque defende a integridade da vida humana sem ser compelido a isto por nenhuma obrigação religiosa ou princípio universal, mas somente pelo livre exercício da sua razão individual. Mas não há nisso racionalidade nenhuma, há apenas uma confusão dos diabos. Desde logo, produzir um argumento em favor de alguma coisa não é o mesmo que fundamentá-la. A liberdade e a propriedade podem ser alegadas em favor da proibição de matar, mas não a fundamentam de maneira alguma, porque não são princípios. É impossível, por exemplo, decidir só com base nessas regras se o aborto deve ser permitido ou não: a aplicação dos “princípios” a esse caso só leva a perplexidades insolúveis, como por exemplo, a de saber se o feto é propriedade da mãe ou é dono de sua própria vida, discussão imbecil e postiça que já mostra a deficiência intrínseca do conceito de propriedade, quanto mais a inviabilidade de estender sua aplicação ao ponto de fazer dele o fundamento de alguma coisa mais básica como o direito à vida. Para qualquer pessoa não intoxicada do preconceito kantiano, o direito à vida é que é fundamento da liberdade e da propriedade. Reconhecem-no implicitamente todos os códigos penais do mundo (exceto o velho código penal soviético) ao prescrever penas mais graves para o homicídio do que para a mera subtração da propriedade ou da liberdade. Fundamentar o direito à vida com base na liberdade e na propriedade é torná-lo tão ambíguo quanto elas. E aí a única solução possível é transformar o “Não matarás” num “imperativo categórico”, isto é, em algo que é assim só porque o fulano sente que deve ser assim.

Um liberal pode ter princípios, sim, e a maioria dos que conheço os têm, mas os têm enquanto indivíduos concretos e não enquanto “liberais”. A incongruência da situação reside em que o método liberal, posto a serviço de princípios e valores substantivos tradicionais, constitui precisamente aquilo que nos EUA se chama “conservatism”. Nesse sentido, nem Friedrich Hayek nem Ludwig von Mises jamais foram liberais: e nos EUA não há quem não os considere anjos tutelares do movimento conservador. Porém o mesmo método, separado da moldura tradicional e erigido ele mesmo em princípio, se torna uma arma terrível nas mãos do movimento revolucionário, que através dele põe a serviço da mutação cultural gramsciana milhões de idiotas úteis liberais dispostos a ceder em tudo o que não lhes pareça limitar diretamente a liberdade e a propriedade (ou, pior ainda, em tudo que pareça fomentá-las mersmo à custa de dessensibilizar moralmente a população). Muitos desses, na verdade, não são propriamente idiotas: são liberais no sentido estrito e espanhol do termo, empenhados em destruir a civilização judaico-cristã e em implantar universalmente o império do niilismo por meio da radicalização da economia de mercado transfigurada em molde e princípio para a conduta humana em todas as áreas da vida. Não é sem razão que alguns deles se gabam de ser mais revolucionários que os socialistas.

A economia de mercado, como o liberalismo em si, é um esquema formal, um sistema de regras operacionais que pode ser posto a serviço de princípios e valores ou, usurpando o lugar deles, corroê-los e dissolvê-los. Hoje em dia, no Brasil, chamam-se igualmente “liberais” os adeptos de ambas essas coisas. Mas é uma unidade meramente verbal encobrindo divergências ainda mais profundas e insanáveis do que a oposição de economia de mercado e economia dirigida.

A idéia de unificar sob a bandeira de uma simples predileção econômica pessoas e correntes separadas por concepções morais e civilizacionais opostas e incompatíveis entre si é tão desastrada, que a autodissolução do “liberalismo” nacional já começou. O Instituto Liberal de Porto Alegre mudou seu nome para Instituto Liberdade, e o Partido da Frente Liberal para Partido Democrata. É a carapaça verbal que se rompe, deixando à mostra a confusão interna. O “liberalismo” brasileiro nunca passou de um arranjo oportunista, incapaz de impor respeito a seus adversários ou até a si próprio. A maior parte dos liberais que conheço não são liberais. São conservadores com nome trocado. Confundem o liberalismo econômico clássico, que é parte integrante da tradição conservadora, com a ideologia liberal que é uma camada histórica do movimento revolucionário. Como acreditam no primeiro, ostentam na lapela o emblema da segunda. Imaginam que assim parecem mais “progressistas”, podendo usurpar o prestígio da esquerda e chamá-la de “atrasada”. Mas essa aparente astúcia retórica, além de obrigá-los a reprimir seu conservadorismo e a restringir a luta ao terreno econômico, tem um segundo preço maior ainda: fazendo da sucessão temporal um critério de superioridade, eles acabam endossando uma metafísica predestinacionista da História que é a essência mesma da ideologia revolucionária (v. meu artigo de 26 de fevereiro, http://www.olavodecarvalho.org/semana/070226dc.htm), e com isso ajudam a precipitar as transformações culturais que produzem inevitavelmente a ascensão da esquerda. É por nunca ter examinado seriamente essas contradições que o liberalismo brasileiro, ao longo dos últimos vinte anos, veio caminhando de derrota em derrota, de humilhação em humilhação.

Quanto tempo falta para que aqueles “liberais” que acreditam em princípios substantivos – religiosos ou não – descubram que nunca foram liberais e sim conservadores? Com isso, decerto, perderão muitos falsos amigos. Mas, afinal, o patinho feio também teve de abdicar de falsas afinidades para descobrir que era algo de melhor que um pato.

Tenho a certeza de que qualquer candidato a qualquer cargo que seja, se tiver a coragem de se apresentar em público com um programa ostensivamente conservador, sem o breque mental constitutivo que trava os movimentos dos liberais, alcançará um sucesso eleitoral estrondoso. O conservadorismo é um sistema de valores, e esses valores são os do povo brasileiro, os da gente humilde e sem instrução que não entende nada de economia mas entende imediatamente a linguagem da moral, da religião, das tradições. São dezenas de milhões de pessoas à espera de alguém que as represente na política. Só o conservadorismo pode atendê-las, mas antes tem de consentir em deixar de ser pato.

Ateus e ateus

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 15 de março de 2007

 

Há dois tipos de ateus: os que não acreditam que Deus existe e os que acreditam piamente que Deus não existe. Os primeiros relutam em crer naquilo de que não têm experiência. Os segundos não admitem que possa existir algo acima da sua experiência. A diferença é a mesma que há entre o ceticismo e a presunção de onissapiência.

Acima da distinção de ateus e crentes existe a diferença, assinalada por Henri Bergson, entre as almas abertas e as almas fechadas. Vou explicá-la a meu modo. Como tudo o que sabemos é circunscrito e limitado, vivemos dentro de uma redoma de conhecimento incerto cercada de mistério por todos os lados. Isso não é uma situação provisória. É a própria estrutura da realidade, a lei básica da nossa existência. Mas o mistério não é uma pasta homogênea. Sem poder decifrá-lo, sabemos antecipadamente que ele se estende em duas direções opostas: de um lado, a suprema explicação, a origem primeira e razão última de todas as coisas; de outro, a escuridão abissal do sem-sentido, do não-ser, do absurdo. Há o mistério da luz e o mistério das trevas. Ambos nos são inacessíveis: a esfera de meia-luz em que vivemos bóia entre os dois oceanos da claridade absoluta e da absoluta escuridão.

O simbolismo imemorial dos estados “celestes” e “infernais” demarca a posição do ser humano no centro do enigma universal. Essa situação – a nossa situação – é de desconforto permanente. Ela exige de nós uma adaptação ativa, dificultosa e problemática. Daí as opções da alma: a abertura ao infinito, ao inesperado, ao heterogêneo, ou o fechamento auto-hipnótico na clausura do conhecido, negando o mais-além ou proclamando com fé dogmática a sua homogeneidade com o conhecido. A primeira dá origem às experiências espirituais das quais nasceram os mitos, a religião e a filosofia. A segunda leva à “proibição de perguntar”, como a chamava Eric Voegelin: a repulsa à transcendência, a proclamação da onipotência dos métodos socialmente padronizados de conhecer e explicar.

A religião é uma expressão da abertura, mas não é a única. A simples admissão sincera de que pode existir algo para lá da experiência usual basta para manter a alma alerta e viva. É possível ser ateu e estar aberto ao espírito. Mas o ateu militante, doutrinário, intransigente, opta pela recusa peremptória do mistério, deleitando-se no ódio ao espírito, na ânsia de fechar a porta do desconhecido para melhor mandar no mundo conhecido.

Dostoiévsky e Nietzsche bem viram que, abolida a transcendência, só o que restava era a vontade de poder. Aquele que proíbe olhar para cima faz de si próprio o topo intransponível do universo. É uma ironia trágica que tantos adeptos nominais da liberdade busquem realizá-la através da militância anti-religiosa. As religiões podem ter-se tornado violentas e opressivas ocasionalmente, mas a anti-religião é totalitária e assassina de nascença. Não é uma coincidência que a Revolução Francesa tenha matado dez vezes mais gente em um ano do que a Inquisição Espanhola em quatro séculos. O genocídio é o estado natural da modernidade “iluminada”.

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