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Missão cumprida

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, 10 de maio de 2000

Diante do que expliquei sobre a esquerda e as drogas na Folha de 24 de abril, Marilene Felinto, enfezada criaturinha empenhada em mostrar serviço à ortodoxia ascendente, ligou sua máquina de denunciar e, nas linhas que consagrou à minha pessoa em 2 de maio, informou às autoridades do futuro Brasil socialista que sou perigoso, fascista, racista, homofóbico e extrema-direita, além de espírito de porco, paranóico, péssimo filósofo e falso desmascarador do discurso alheio – tudo isso sic.

Como ela usasse outros parágrafos do seu artigo para despejar de quebra um pouco de bile sobre o governador Garotinho e aproveitasse o restante para louvar a beleza, o charme e demais qualidades que compõem a seus olhos o sex appeal do traficante Marcinho VP, assim como para enaltecer os dons intelectuais que fazem do gatíssimo estuprador e assassino um profundo filósofo, compreende-se que não lhe restasse espaço para dizer o que, afinal, havia de errado nos meus argumentos. Mas é claro que ela jamais teve a intenção de fazê-lo. Porta-vozes de uma hidrofobia coletiva não têm de apresentar razões. Convocam a massa enraivecida, apontam com o dedo um suspeito, gritam o nome do candidato à guilhotina, e pronto. Missão cumprida. O nome do inimigo está registrado: no dia da vingança, não escapará. Marilene Felinto pode ir dormir em paz, sonhando cenas de amor bandido com Marcinho VP.

Não vou portanto discutir com a temível senhorita. Não vou tentar juntar, para examiná-los como se fossem coisa lógica, os cacos de um pensamento que expressa apenas uma personalidade errática e fragmentária, capaz de buscar no ódio projetivo a bodes expiatórios o alívio factício das paixões inconciliáveis que lhe atormentam a alma. Aristóteles já alertava para a incongruência de debater com incapazes. Não vou prostituir a arte da lógica tentando fazê-la valer contra uma mente desconjuntada que, imediatamente após me atribuir um “simplismo direita-esquerda”, sai me acusando logo de quê? De “direitista”! Nem vou tentar me explicar a alguém que ignora completamente os fatos em questão, ao ponto de imaginar que a ajuda das esquerdas à disseminação das drogas é mera opinião minha e não um fato notório reconhecido por quem quer que tenha vivido a década de 60 ou lido alguma coisinha a respeito.

O desprezo pela razão e a arrogância de opinar sem o mínimo conhecimento do assunto definem inconfundivelmente o incapaz a que se refere Aristóteles. Porém a Felinto realiza ainda com mais perfeição a essência da inépcia, na medida em que nem mesmo entende o que lê, pois me acusa de “ver esquerda e direita em tudo” justamente porque escrevi que um ex-ministro enxergou esquerda e direita num caso onde essas categorias eram totalmente descabidas. Aí o conselho do Estagirita já não expressa mais uma simples conveniência prática, mas uma necessidade lógica imperiosa: se uma pessoa não pensa, não sabe do que fala e não compreende o que lhe dizem, discutir com ela é não apenas inútil, mas impossível.

Diante de tanta estupidez, não vale nem a pena examinar o artigo dessa moça pelo lado moral. Não vou me entregar à faina inglória de remexer as trevas, contemplando a baixeza inominável de uma mentalidade da qual sua portadora, desprovida do dom da consciência, decerto se orgulha. Também não vale a pena protestar em vão contra a frivolidade monstruosa que, na volúpia de insultar, apela a imputações criminais de extrema gravidade – tão artificiosas, tão deslocadas de seu alvo, que não chegam a ter sequer a inocente dignidade do ridículo e são apenas, no fim das contas, uma coisa disforme e triste, uma esquisitice gratuita e deplorável.

Não me resta portanto muito o que dizer. Quero apenas registrar que Marilene Felinto cumpriu sua tarefa, a seus olhos talvez a mais alta a que um ser humano possa aspirar. Ela ergueu-se no meio da praça e apontou um suspeito. Não é para isso, afinal, que servem os jornalistas? Quando o Brasil tiver um governo comunista, ela poderá exibir seu artigo às autoridades e reivindicar aposentadoria especial por seus relevantes serviços de alcagüetagem de inimigos do povo.

A loucura triunfante

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 27 de abril de 2000

Durante décadas, a esquerda acreditou que havia neste país duas burguesias: uma nacionalista, empenhada em desenvolver a nossa economia; outra, aliada aos interesses norte-americanos e decidida manter o Brasil na condição de fornecedor de matéria-prima barata. A estratégia era portanto simples: aliar-se com a “burguesia nacional” contra o imperialismo.

A fórmula de Luiz Carlos Prestes, do agrado de Moscou que então advogava uma linha de luta eleitoral pacífica, tinha a vantagem de tornar o comunismo palatável a muitas famílias de ricaços e de abrir assim aos comunistas o acesso a altos postos no governo.

Na década de 60, a aliança rompeu-se. A incapacidade dos “burgueses progressistas” para reagir contra o golpe militar deixou os comunistas órfãos e eles entraram num surto de autocrítica do qual a estratégia de Prestes emergiu desfeita em cacos. O livro de Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira, publicado se não me engano em 1969, teve um formidável impacto desagregador. Ele alegava que não havia burguesia nacional nenhuma, que eram todos uns malditos imperialistas. Logo, o melhor era mandar a estratégia eleitoral às favas e partir para a luta armada, conclusão endossada por um livreto infame, também de muito sucesso, Revolução na Revolução, de Régis Debray. Tudo parecia muito científico, mas deu no que deu.

Os anos seguintes foram marcados pelo estancamento das fontes francesas, pelo desmantelamento do comunismo no Leste Europeu e pela formidável ascensão da “nova esquerda” norte-americana, que tão bem soube se aproveitar dos movimentos de direitos civis e juntar suas forças com a avassaladora onda psicótica da New Age que ia dissolvendo, um por um, os pilares da cultura tradicional norte-americana. Somou-se a isso a disseminação das idéias de Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano, que em vez da tomada violenta do poder por uma organização monolítica pregava a lenta penetração da esquerda na administração estatal e nos órgãos formadores da opinião pública por meio de redes flexíveis de colaboradores informais. Ao mesmo tempo, as nações ricas começavam a implantar o projeto de globalização e governo mundial, causando revolta entre os nacionalismos, mas, sobretudo, atraindo o concurso de ambiciosos intelectuais esquerdistas de todos os países, que, na esperança de aplicar a estratégia de Gramsci em escala global, iniciaram a “longa marcha” para dentro dos organismos internacionais, onde hoje reinam soberanos sobre os “movimentos sociais” plantados por engenheiros comportamentais no Terceiro Mundo e sobre os programas educacionais que vão moldando a mente da Humanidade futura.

A esquerda brasileira assimilou confusamente essas transformações, endossando a esmo os slogans dos novos movimentos sociais globalistas – feminismo, gays, “minorias raciais”, etc. -, e enxertando-os, aos trancos e barrancos, no ideário híbrido onde reminiscências da guerrilha já se mesclavam absurdamente a apelos nacionalistas herdados da aliança com a “burguesia progressista”.

Por isso é que hoje nossos esquerdistas podem, ao mesmo tempo, bufar de indignação patriótica ante o leilão de empresas estatais e inflamar-se de entusiasmo belicoso no apoio a protestos grupais divisionistas, insuflados por organizações estrangeiras para debilitar o poder nacional. Por isso é que podem berrar contra o “desmanche do patrimônio nacional”, ao mesmo tempo que aderem fanaticamente a uma visão afro-indigenista da História que resulta em negar a legitimidade da existência do Brasil enquanto nação. Por isso é que podem clamar contra a política do FMI e servir às organizações que lhe dão suporte no plano cultural e psicossocial. Por isso é que podem, ao mesmo tempo, querer salvar a economia e destruir o País.

Nossa esquerda, em suma, enlouqueceu. Mas enlouqueceu enquanto subia na vida. Encontrando as portas abertas pela omissão covarde de todas as outras correntes de opinião e pela ajuda de empresários idiotas que repetem às tontas “o comunismo morreu”, a esquerda colhe hoje os louros de 30 anos de “longa marcha”, imperando sobre os meios de comunicação, sobre o aparelho educacional e sobre a administração pública, repetindo, do alto do pódio, seu discurso monológico e insano. Ela nunca teve tanto poder e tanto medo.

Ela tem todos os meios à sua disposição: mas já não tem nada a transmitir exceto os germes de sua decomposição intelectual.

Foi o contágio da loucura esquerdista que transformou os festejos dos 500 anos numa palhaçada grotesca e masoquista. É ele que está no fundo de toda a angústia e a incerteza da vida brasileira hoje em dia.

Drogas e prioridades

Olavo de Carvalho

Folha de S. Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2000

O dr. José Carlos Dias, ao sair do Ministério da Justiça alertando o governo para “não transigir com os reacionários e a direita”, mostrou que estava no cargo menos para combater o tráfico de drogas do que para fazer política de esquerda. Que esses objetivos fossem conflitantes, nada mais natural: a esquerda fez a apologia das drogas desde a década de 60 e é moralmente responsável pela disseminação do vício. Se, passados quarenta anos, a troca de gerações no poder eleva um esquerdista à posição de repressor oficial do tráfico, ele pode até se esforçar para dar uma aparência verossímil ao seu desempenho, mas acabará se traindo mais dia menos dia e confessando que sua luta não era contra os traficantes e sim contra “a direita”. De fato, como poderia desejar mover guerra ao tráfico um adepto confesso da liberação das drogas? E o ex-ministro não se limitou a suportar como formalidade incômoda seu papel de comandante nessa luta, mas arrogou à sua pessoa o controle dos meios práticos de combate, condenando as iniciativas independentes. Como explicar o ciumento apego desse homem ao comando de uma guerra que declaradamente não era a sua, exceto pela hipótese de que ao assumi-lo ele tivesse outros objetivos, mais discretos e a seu ver mais relevantes?

Para um esquerdista, a luta ideológica é tudo. Todos os demais objetivos e desejos humanos, por mais elevados e urgentes, devem ser subordinados a essa exigência primeira, única e obsediante: derrubar a democracia capitalista, instaurar em seu lugar o império da nomenklatura. O combate às drogas não constitui exceção. Se nas circunstâncias do momento ele serve acidentalmente ao supremo objetivo político, pode até ser usado. Se é inútil ou indiferente a esse fim, deve esperar pacientemente na longa fila de prioridades. E se por acaso se opõe aos intuitos revolucionários, deve ser substituído pela propaganda das drogas e pela resistência a todo esforço repressivo, como o foi nos anos 60 e 70. Os esquerdistas, enfim, não têm nada contra ou a favor das drogas: simplesmente servem-se delas ou da sua repressão conforme lhes convenha.

Não estou pondo em dúvida a moralidade pessoal do ex-ministro, estou apenas dizendo aquilo que sempre disse: que não existe nem pode existir esquerdista intelectualmente honesto, que esquerdismo é, por definição, desonestidade intelectual. Essa desonestidade pode permanecer disfarçada durante algum tempo, mas desponta em toda a plenitude da sua feiúra sempre que um esquerdista sobe a um cargo de poder no “Estado burguês”: aí não é mais possível esconder a dupla lealdade que o compromete, de um lado, com a defesa do Estado, de outro, com a sua destruição. Por mais elevada que seja sua intenção, ele terá de apelar a todas as complacências dialéticas de uma moralidade frouxa para se acomodar a uma condição objetivamente contraditória. Ninguém pode passar por isso sem se corromper interiormente e sem espalhar no ambiente os germes da sua inconsistência. Ser esquerdista, nessas horas, é necessariamente incorrer na maldição bíblica: bilinguis maledictus, maldito o homem de duas línguas.

Isso tornou-se patente não só no caso do ex-ministro Dias como também no do ex-subsecretário da Segurança do Rio de Janeiro, Luís Eduardo Soares, criatura bifronte, que com uma de suas cabeças perseguia os policiais envolvidos com o tráfico e com a outra dava respaldo ao amigo banqueiro para ajudar um traficante a estudar guerrilha. A explicação do aparente paradoxo reside, como sempre, na unidade do critério ideológico subjacente às ações opostas: há um tráfico bom e um tráfico mau. O mau é aquele que se alia a velhas elites policiais comprometidas com o passado, com o regime militar e, numa palavra, com a “direita”. O bom é aquele que almeja fazer parceria com os guerrilheiros de Chiapas para armar no Brasil a maior guerra civil de todos os tempos e instaurar aqui o “reino de Deus na Terra”, que é como Frei Betto, uma indiscutível autoridade em assuntos celestes e terrestres, denomina o regime cubano. A Banda Podre não é podre por ser podre, mas por ser “de direita”. A podridão esquerdista é pura e sem mácula como uma hóstia consagrada. Confirma-o a beatificação de João Moreira Salles, celebrada na Sala da Cinemateca pela fina flor do radicalismo chique quando do lançamento do filme “Notícias de uma Guerra Particular”, um ataque moralista ao hediondo costume que os policiais têm de atirar nos traficantes que atiram neles. Contra esse modo “militaresco” (sic) de lidar com os pobres e oprimidos capitães do tráfico, o seráfico cineasta propõe um método alternativo mais humano e cristão: dar-lhes dinheiro para que vão ao Exterior aprimorar seus conhecimentos da técnica de matar.

Perseguir os traficantes, ajudá-los ou simplesmente esquecê-los é, pois, para a mentalidade esquerdista, uma simples questão de oportunismo. Prioridade, mesmo, só existe uma: eliminar a execrável “direita”, seja com a ajuda dos traficantes, seja a despeito deles, seja enterrando-os na mesma cova com os “reacionários”. O ex-ministro Dias pode, na sua imaginação subjetiva, ter tentado levar a sério o papel de supremo-comandante do combate às drogas. Mas seu velho comprometimento ideológico, mais durável e exigente que as obrigações passageiras de um cargo público, acabou por prevalecer. Outro tanto passou-se na alma do Dr. Luís Eduardo Soares.

Se fosse possível existir um esquerdista intelectualmente honesto, esse homem de exceção compreenderia que a erradicação do flagelo das drogas é um objetivo que deve estar acima de toda picuinha ideológica, que esquerdistas, direitistas e quantas mais facções políticas existam devem unir-se incondicionalmente numa guerra qual depende a salvação das futuras gerações. Mas esse homem não é o ex-ministro Dias, como também não é o dr. Soares.

13 de abril de 2000

Apêndice

Apelo dramático ao sr. Caio Aguilar Fernandes

“No mínimo confusas as idéias do sr. Olavo de Carvalho (“Drogas e prioridades”, Folha de S. Paulo, 24 de abril de 2000): abusando da adjetivação e de generalizações mancas como argumento de autoridade, vincula a esquerda nacional à disseminação das drogas na atualidade. Nada mais intelectualmente honesto que isso.”

Caio Aguilar Fernandes
( Ribeirão Preto, SP)

“Painel do Leitor”, Folha de S. Paulo, 25 de abril de 2000.

Nota de Olavo de Carvalho

Se alguém conhece o signatário da coisa acima reproduzida, favor solicitar-lhe que forneça, para alívio do perplexo e inconsolável autor do artigo mencionado, os seguintes itens:

  1. Lista das confusões que observou no artigo e provas de que elas estão no texto, não na cabeça do leitor.
  2. Lista dos adjetivos sobrantes, e razões pelas quais os referidos seriam dispensáveis.
  3. Lista das generalizações mancas e provas de que mancam.
  4. Explicação de como uma generalização afirmada pelo próprio autor de um texto pode ser ao mesmo tempo um argumento de autoridade invocado por ele.

1 de maio de 2000

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