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Batendo com duas mãos

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 24 de dezembro de 1998

O único tema importante deste fim de século, e por isto mesmo o mais ausente da imprensa brasileira, é o governo mundial que está se formando não sei se sob as nossas barbas ou sobre as nossas cabeças, e do qual a globalização financeira, tão falada, não é senão meio e instrumento. Tenho tentado, em vão, introduzir uma visão mais abrangente desse assunto nas páginas dos nossos jornais, encontrando neles (com a honrosa exceção do JT ) aquela resistência típica do cérebro cansado que, não sabendo como processar uma informação nova, se nega a recebê-la.

Uma brecha no muro da indiferença burra foi aberta por Arnaldo Jabor, na sua coluna de 11 de novembro em O Globo , onde ele denuncia o Multilateral Agreement on Investment (MAI) como um golpe fatal na autonomia dos Estados nacionais. Mas não sei se devo cumprimentar o colunista pela sua sensibilidade de perceber o fato novo ou lamentar que o tenha interpretado segundo os velhos cânones do nacionalismo de esquerda, os quais nunca ajudaram a compreender nada e não é agora que vão começar a ajudar.

O MAI, explica Jabor, é um acordo internacional que “dá poderes totais às corporações mais fortes do mundo (leia-se G-7), para processar os países signatários (leia-se ‘emergentes’) por qualquer política governamental que possa prejudicar seus lucros”. A informação é perfeita. Perfeita é também a previsão das conseqüências: o MAI “será assinado pelos Estados nacionais, mas é todo talhado para acabar com o poder dos mesmos Estados nacionais”.

O absurdo é que, sabendo de tais coisas, Jabor não consiga equacioná-las senão nos termos do consagrado esquema neoliberalismo versus social-democracia, com a ênfase na voracidade pirata do primeiro e nas virtudes salvíficas da segunda. Ele se mostra escandalizado, com efeito, de que tamanho acréscimo do poder das empresas sobre os Estados ocorra justamente na hora em que, prenunciando dias melhores, ia “renascendo a preocupação de se instalar um ‘novo keynesianismo’ global contra a voracidade financeira, preocupação ostensiva até de homens como Alan Greenspan, diretor do FED”. O keynesianismo, para os que não sabem, é uma doutrina que, sem chegar a abolir o capitalismo, favorece o fortalecimento do papel do Estado na economia – uma tendência sintética que hoje ressurge com o nome de “terceira via”, e na qual Jabor acredita residir toda a esperança nacional de sair da paralisia patrimonialista sem cair vítima “da fome cega do capitalismo corporativo”.

Desse ponto de vista, a globalização do poder é idêntica a neoliberalismo (liberdade total para as empresas) e oposta à social-democracia (controle da economia privada pelo Estado). Assim, embora enfatizando nominalmente a novidade absoluta do acordo e rejeitando com veemência os argumentos globalistas que vêem nele apenas a inócua implementação de práticas jurídicas já existentes, Jabor acaba por reduzir o episódio a mais um capítulo da velha luta entre o imperialismo capitalista e o esquerdismo nacionalista. Dificilmente alguém poderia com mais eficácia neutralizar aquilo que afirma.

O esquema neoliberalismo-social-democracia, bem como sua pretensa síntese ou “terceira via”, não apenas não permite compreender nada, como foi posto em circulação precisamente para que ninguém compreendesse nada. Foi posto em circulação pelos mesmos poderes que conceberam o MAI, aos quais serve de areia para jogar nos olhos da imprensa. Os homens que dirigem o mundo não são neoliberais nem social-democratas, e aliás não teriam chegado aonde chegaram se não tivessem passado anos estudando a teoria e a técnica do chamado “gerenciamento de conflitos”, justamente para aprender a controlar o fluxo dos acontecimentos mediante o jogo de oposições em cuja realidade aparente se deleita, se embasbaca e se confunde a imprensa do Terceiro Mundo, como um sapo hipnotizado pela serpente.

Se o globalismo que vai arrasando os Estados nacionais é monopólio dos neoliberais e imperialistas, da “direita” em suma, como se há de explicar que a esquerda, em toda parte, lute pela uniformização mundial de direitos (como por exemplo os do trabalhador imigrante), a qual resulta em golpear os Estados nacionais mais fundo – e mais baixo – do que estes foram atingidos pelo MAI? Também não tem aí explicação o fato de que, desejando deter a globalização, a esquerda fomente por toda parte ressentimentos raciais que, integrando os ressentidos na grande comunidade mundial da sua raça, os transforma ipso facto em fatores debilitantes de qualquer união nacional possível. E muitíssimo menos se explicaria racionalmente, na perspectiva jaboriana, a mobilização histérica das esquerdas em favor de um ecologismo global que, por definição, não pode ser administrado autonomamente pelos Estados nacionais, e que, aplicado ao Brasil, já resultou em entregar a ONGs estrangeiras o controle de regiões mais extensas do que alguns Estados da Federação, sem encontrar oposição senão entre os militares, tradicionais bêtes noires da fantasia esquerdista.

Não, não: o globalismo não é neoliberal, pela simples razão de que não é one way . É um movimento de mão dupla, que tanto debilita os poderes nacionais pela apologia do livre comércio e da abolição das fronteiras, quanto o faz pela disseminação de insatisfações e reivindicações esquerdistas que, não podendo ser atendidas na escala dos Estados, terminam por subjugar as nações ao despotismo branco das organizações supranacionais.

Dos esquerdistas que colaboram para esse fim, somente uns poucos o fazem com plena consciência, e destes não posso dizer em público o que penso.

Podem ser facilmente identificados pelo teor ecológico, futurista e vagamente esotérico (“Nova Era”) do seu discurso. Nomeei um deles, semanas atrás, numa nota publicada na revista República , da qual me permito recordar um trecho:

“No folclore midiático brasileiro, ‘esquerda’ ainda significa aquele velho complexo de progressismo e nacionalismo que se opunha às multinacionais. Mas essa esquerda não existe mais: todos os seus remanescentes se tornaram servidores das causas neo-esquerdistas (negros, gays, aborto, etc.) calculadas para debilitar os Estados nacionais e favorecer o poder global.

Todos servem a um novo senhor, parasitando o prestígio do velho – uns por ingenuidade, outros por excesso de esperteza. Por enquanto ainda iludem a opinião pública e talvez a si mesmos. Mas, aos poucos, todos, sem exceção, irão perdendo as inibições, tirando as máscaras e declarando, alto e bom som, quem são e a que vieram. Com sua entrevista em Veja de 26 de agosto, o dr. Leonardo Boff tornou-se o pioneiro desses globalistas neo-assumidos: ‘O mundo – declarou ele – vai ao encontro de uma grande crise, e a saída será a criação de uma central de gerenciamento planetário.’ Que o advento desse tremendo poder central terá algo como a glória e o prestígio de uma nova revelação religiosa, é algo que também o sr. Boff não esconde: ‘Segundo ele, afirma Veja , os empresários andam com uma fome imensa de espiritualidade e estão atentos para a necessidade de uma nova ordem mundial.’ Governo mundial e Nova Ordem: é o paraíso espiritual do FMI.”

Quanto aos outros, que colaboram às tontas e por mera incapacidade de escapar do esquema dualista, a estes digo apenas que está na hora de acordar, de perceber que as causas e bandeiras nada significam apenas pelas belas palavras do seu enunciado abstrato (direitos, igualdade, humanismo, etc., etc.), mas pelo esquema concreto de poder no qual se enquadram como lances de uma estratégia bem complicada, na qual o bem é às vezes calculado precisamente para gerar o mal.

Muitos se gabam de ter superado o esquematismo esquerda-direita, mas continuam presos numa versão mais sutil do mesmo esquema, que é o confronto progressismo-reacionarismo. O futuro deste país depende de que essas pessoas, entre as quais estão algumas de nossas melhores cabeças e alguns corações sinceros, se dêem conta finalmente de que nenhum poder é uniformemente progressista ou reacionário, mas que todas as ambições políticas justas ou injustas, neste mundo, sempre se realizaram dosando espertamente uma coisa e a outra e batendo, em suma, com duas mãos.

Morte aos reacionários

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 10 de dezembro de 1998

Durante algum tempo, acreditei que chamar os outros de “reacionários” era manifestação de um impulso catalogante primitivo, forma incipiente do pensamento categorial observada nas camadas inferiores da evolução biológica. A divisão do mundo em reacionários e progressistas assinalava, segundo essa hipótese, o dualismo invencível da percepção do mundo nos animais dotados de apenas dois neurônios, um contra e um a favor, notando-se às vezes a presença de um terceiro incumbido de paralisar, em caso de dúvida, toda atividade cerebral.

Hoje devo refutar minha própria teoria. Por elementar e grossa que seja, a ação catalogante já manifesta a capacidade de referência a um objeto externo. Ora, esta capacidade não pode estar presente em criaturas que ainda não transcenderam o narcisismo primevo das amebas e protozoários, cuja cosmovisão hermeticamente umbigocêntrica nada tem a manifestar senão expressões de seu próprio estado interno, resumindo-se portanto o seu repertório cognitivo em dois juízos, dos quais o primeiro afirma “que delícia!” e o segundo declara: “Ai, me dói!”

Na célebre classificação das três funções da linguagem por Karl Bühler, o mencionado ato de rotulação nada tem portanto a ver com a função denominativa – que descreve e cataloga objetos e estados do mundo –, mas apenas com a função expressiva, que manifesta o estado do sujeito falante e nada diz exceto sobre ele mesmo.

Força é convir, no entanto, que a terceira função enumerada por Bühler, a função apelativa, em que o emissor se utiliza da linguagem para agir sobre seus semelhantes, intimidando-os ou estimulando-os, não está de todo ausente no mencionado procedimento, e talvez até exerça, nele, o papel preponderante. Prova disto é que, quando um desses animais chama alguém de reacionário, o efeito que exerce sobre os ouvintes é infalível e automático, independentemente de o mencionado epíteto ser inadequado, quer ao seu objeto, quer à correta expressão do sentimento do emissor. Proferido por um membro da espécie “progressista” (nome científico: Homo adorabilis, normalmente traduzido por “pessoa maravilhosa”), o epíteto de reacionário às vezes nada diz sobre o objeto ou o sujeito, mas indica a alta probabilidade de que, no instante seguinte, a horda estimulada por semelhante apelo se precipitará sobre o objeto para fazê-lo em pedaços. A mensagem enfim convoca a tribo para uma operação de linchamento, e raramente o faz sem resposta. Ao longo das décadas, o grito de “Reacionário!”, proferido ante platéias sensíveis, tem exercido sobre elas um efeito magnetizante instantâneo, disparando a imediata ação corretiva que extirpará do reino dos vivos a criatura a quem ocorra a má sorte de ser assim designada.

Mas a ampla comprovação do poder mortífero desse expediente lingüístico, constituída de cem milhões de reacionários assassinados neste século, longe de sugerir aos usuários da expressão a conveniência de empregá-la com extrema moderação, ou mesmo de suprimi-la por completo do arsenal polêmico decente, só fez despertar o desejo de usá-la com mais freqüência ainda, e mesmo de estender o seu emprego, originariamente político, a todos os campos da atividade humana, acusando a presença de reacionários sob toda sorte de moitas artísticas, religiosas, científicas e filosóficas.

Na atual campanha pelo policiamento do vocabulário, que professa suprimir as palavras sujeitas a despertar ódio coletivo, a seleção dos termos proibidos deveria banir em primeiro lugar os de eficácia homicida mais comprovada, e, destes, nenhum supera a palavra “reacionário”: o total de vítimas nos grupos perseguidos por todos os outros motivos somados (raça, religião, sexo, etc.) não perfaz mais de um quinto do total de pessoas assassinadas sob a acusação de reacionarismo. No entanto, a própria campanha pela exclusão das palavras odientas se apresenta, orgulhosamente, como uma caça mundial aos reacionários. Mais uma vez, na gloriosa história da modernidade, o assassino veste a toga de juiz e aponta contra suas vítimas o dedo acusador.

Se…

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 27 de novembro de 1998

Peço ao leitor que examine com atenção o seguinte parágrafo (grifos meus):

“Na Faculdade de Direito ensinaram-me que o profissional capaz era aquele que mais conhecia a lei. No exercício da advocacia percebi que não bastava o conhecimento do direito positivo, necessário era saber o que pensavam os juízes, qual o caminho da jurisprudência. Ao assumir a magistratura, quando não tinha mais a responsabilidade ética de pedir bem, mas sim de decidir, descobri, em meio a angústia e sofrimento, que saber da lei e da jurisprudência não era suficiente. Os dispositivos legais, ao serem aplicados, com freqüência resultavam em decisões injustas. A jurisprudência, por comprometida com situações concretizadas, nem sempre chegava ao justo.”

Agora veja:

Se um jovem advogado confessa que, nos seus anos de estudo, nunca percebeu a importância da jurisprudência e sempre imaginou que a lei escrita bastasse para resolver todos os problemas num tribunal, temos de concluir que esse estudante relapso jamais abriu um livro de introdução à ciência do direito, pois não há um só deles que não o advertisse da enormidade de seu erro, inadmissível não apenas num estudante de letras jurídicas, mas em qualquer cidadão leigo medianamente culto.

Se, não contente de alardear tanta inépcia, o infeliz ainda acrescenta que, durante anos de prática profissional, continuou imaginando que a lei e a jurisprudência juntas perfizessem a encarnação mesma da idéia do justo, só tardiamente descobrindo que não, aí não apenas compreendemos que esse advogado jamais consultou uma só obra de filosofia do direito, já que praticamente todas começam pela discussão das relações problemáticas entre direito e justiça, mas também somos forçados a admitir que, independentemente de sua catastrófica privação de leituras, esse indivíduo é um idiota por natureza, já que a distinção entre o ideal e a prática é coisa de apreensão intuitiva que não requer estudos especiais.

Se, ademais, quem faz essas declarações não as apresenta como o simples mea culpa de um relapso arrependido, mas antes as trombeteia orgulhosamente como uma descoberta inédita e fundamental para o mundo, vendo nelas uma crítica arrasadora ao sistema jurídico e não à sua própria burrice pessoal, não podemos concluir daí senão que estamos diante de um caso patológico de ignorância pretensiosa que beira os limites da insanidade.

Mas, se descobrimos em seguida que o depoente não é um simples advogadinho de porta de xadrez e sim um juiz concursado e togado, aí à nossa reação de espanto ante sua anomalia individual se soma um sentimento de angústia e preocupação quanto ao sistema Judiciário inteiro, que, afetado de uma falha grave em seu processo de seleção, permitiu que as altas responsabilidades da magistratura fossem entregues às mãos de semelhante cretino.

Se, para ir ainda mais longe no território do absurdo, o magistrado em questão não é apenas magistrado, mas também professor de direito, nossa angústia ante o estado presente do sistema Judiciário se converte em temor maior ainda quanto ao seu estado futuro, tendo em vista a ameaça de propagar-se entre os magistrados em formação um tão pernicioso exemplo, sacramentado pela aprovação oficial e conjunta das autoridades judiciárias e pedagógicas.

E, por último, se constatamos que esse professor de ignorância não é apenas um obscuro juiz de comarca do interior, docente de uma faculdade de fundo de quintal, mas sim juiz de um Tribunal de Alçada e professor de uma prestigiosa Escola de Magistratura, e que em vez de ser objeto de chacota e desprezo na roda de seus colegas ele é seriamente tido na conta de uma autoridade intelectual e de um maître à penser habilitado a remoldar todo o pensamento jurídico nacional, então, meus filhos, é a derrocada final, tudo está perdido e já não há mais nada a fazer por este país insano, sendo até mesmo inútil prosseguir escrevendo o presente artigo.

Encerro-o, portanto, declarando que o trecho citado se encontra na abertura do livro Magistério e Direito Alternativo , de autoria de S. Exa. o dr. Amílton Bueno de Carvalho, juiz do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, professor da Escola Superior da Magistratura do mesmo Estado e, last but not least, o principal mentor da nova escola do “direito alternativo”.

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