Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 14 de abril de 2008
O general e historiador comunista Nelson Werneck Sodré, descrevendo no seu livro A Fúria de Calibã os horrores apocalípticos da perseguição a intelectuais logo após o golpe de 1964, que ele não hesita em nivelar ao que sucedeu na Alemanha de Hitler, acaba se traindo ao relatar que, naquele mesmo período, publicou não sei quantos livros, teve não sei quantas críticas favoráveis, algumas entusiásticas, foi brindado com alguns prêmios literários e no fim ainda recebeu uma homenagem no Instituto Brasileiro de História Militar, em cerimônia realizada na presença… do presidente da República, marechal Humberto Castelo Branco.
Jamais um historiador consentiu em personificar tão escandalosamente um exemplum in contrarium da sua descrição geral dos fatos. É o esplendor da paralaxe cognitiva realçado por uma efusão de histrionismo macunaímico. Já imaginaram Fidel Castro prestando homenagem a um historiador anticomunista? Ou Hitler indo à Academia de Berlim para conceder honrarias universitárias a um cientista social anti-racista?
Nada mais ridículo do que a tentativa de pintar o regime de 1964 como uma ditadura totalitária, empenhada em sufocar o trabalho da inteligência em geral e o dos intelectuais esquerdistas em especial.
Na verdade, um breve exame dos anuários da Câmara Brasileira do Livro, como já apontou com mira certeira o embaixador J. O. de Meira Penna, basta para mostrar que nunca a indústria editorial esquerdista prosperou tanto como naquele tempo, tanto em volume de livros publicados quanto na absorção de generosas verbas governamentais distribuídas de maneira exemplarmente – ou ingenuamente — apolítica. Pouco antes de morrer, o saudoso Ênio Silveira, dono da maior editora comunista do país, a Civilização Brasileira, me confessou que sua empresa jamais teria chegado ilesa ao fim da década de 80 sem os subsídios que ele próprio ia esmolar pessoalmente nas altas esferas de um governo federal alegadamente empenhado – segundo hoje se ensina em todas as escolas — em esmagar no berço toda manifestação do pensamento esquerdista.
A demissão de umas dúzias de professores esquerdistas no começo do regime não os impediu de ensinar, nem de publicar livros, nem de escrever em jornais — só os privou de receber dinheiro público para fazer propaganda comunista. Se isso lhes doeu tanto, não foi porque sua exclusão da universidade oficial trouxesse algum dano substantivo à cultura brasileira (sob esse aspecto ela trouxe até algum benefício): foi porque o dinheiro público é o alimento essencial da elite esquerdista, a qual, como se confirmou abundantemente depois da sua ascensão ao poder, se acha credenciada por uma espécie de direito natural a consumi-lo em quantidades ilimitadas, sem ter de prestar contas e, a exemplo do MST, sem precisar nem mesmo assinar recibo.
As vítimas dessa odiosa essa privação alimentar, que foram aliás pouquíssimas, sobretudo em comparação com o número de intelectuais cubanos exilados, não sofreram nenhum entrave sério ao exercício das atividades culturais na iniciativa privada, onde, ao contrário, os empreendimentos esquerdistas proliferaram como nunca, entre outras razões pela ajuda milionária que começaram a receber de fundações estrangeiras, também sem nunca ter de prestar contas. Foi também durante os governos militares que os intelectuais e artistas de esquerda, pondo em prática os ensinamentos de Antonio Gramsci, trataram de abocanhar todos os espaços nas universidades, nas instituições culturais e na indústria editorial, desalojando um a um os conservadores que, quando veio a redemocratização, já estavam tão marginalizados e isolados que a eleição de Roberto Campos para a Academia Brasileira, em 1999, surgiu como uma anomalia escandalosa e quase inacreditável.
No domínio do jornalismo, só forçando muito a realidade os esquerdistas se poderiam queixar de perseguição, de vez que o órgão mais visado pela censura foi justamente o mais conservador de todos, O Estado de S. Paulo , enquanto os semanários esquerdistas superlotavam as bancas e sofriam incomodidades, é certo, mas nem de longe comparáveis à pressão contínua que o governo impunha ao jornal dos Mesquita (não venham com conversa para cima de mim, porque eu trabalhava lá nessa época e vi tudo de perto). A simples contagem de cabeças basta para mostrar que o relativo pluralismo existente nas redações em 1964 foi cedendo lugar à hegemonia esquerdista mais descarada, até o ponto de que, dos anos 80 em diante, os grandes jornais fizeram questão de ter pelo menos um direitista no seu corpo de articulistas para atenuar a impressão de uniformidade ideológica que fluía de cada uma de suas páginas, do noticiário policial até as colunas sociais, mas sobretudo das seções de arte e cultura, onde uma hegemonia se somava a outra. Coube a Paulo Francis, a Roberto Campos e depois a mim representar o papel dessas exceções que confirmavam a regra. Nos regimes totalitários, a opinião da mídia, por definição e por uma questão de mera sobrevivência, vai se amoldando cada vez mais ao discurso oficial, até desaparecer toda possibilidade de oposição. A história do jornalismo brasileiro nos vinte anos de governo militar seguiu o curso simetricamente inverso, com a mídia em peso apoiando o golpe em 31 de março de 1964 e depois tornando-se cada vez mais esquerdista até que, no fim do governo Figueiredo, já não sobrava nos jornais e canais de TV um só jornalista que ousasse se opor ao consenso esquerdista e mencionar em voz alta, mesmo com restrições, os méritos mais óbvios de um regime que alcançara progressos econômicos jamais igualados antes ou depois (a expressão “nunca nêfte paíf…” é um salto anacronístico de trinta anos).
Seja nos órgãos de educação e cultura, seja no jornalismo, a esquerda, em vez de ser calada e marginalizada, foi indo cada vez mais para o topo e falando cada vez mais alto, até que já não se podia ouvir nenhuma outra voz senão a sua: se tagarelice esquerdista fosse alta cultura, o tempo dos militares teria sido o apogeu da nossa história intelectual até então (digo “até então” porque nada se compara ao brilho e à majestade da Era Lula). Mas, como é difícil fazer-se de intelectual excluído e ao mesmo tempo imperar sobre a cultura de um país ao ponto de poder decidir quem entra e quem sai, a intelligentzia esquerdista se atrapalha um pouco na narrativa daquele período, ora chamando-o de “anos de chumbo”, ora de “anos dourados”. Talvez não seja confusão, é claro, apenas uma natural alternância estilística, conforme essa coletividade de pessoas exemplares deseje acentuar como tudo em volta era feio ou como ela própria era bela. A língua pérfida de Daniel Más dizia que a segunda dessas expressões se referia, na verdade, aos pacotinhos dourados em que a cocaína era entregue, na pérgola do Copacabana Palace, às estrelas das letras e das artes que ali se dedicavam mais altos afazeres intelectuais de que se tem notícia. Caso esta versão seja fidedigna, ela não suprime a anterior, antes a reforça metonimicamente, designando pela cor da embalagem o efeito do estupefaciente que induzia aquelas criaturas a imaginar que brilhavam como ouro sob um céu de chumbo.
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Tive meus arranca-rabos com o general Andrade Nery e os teria de novo pelas mesmíssimas razões, mas não posso deixar de cumprimentá-lo por sua reação viril à tentativa de usar as Forças Armadas numa operação tão vexatória como a retirada dos agricultores brasileiros para dar lugar a uma “nação indígena”. Falando pelos companheiros de farda aos quais o código disciplinar impõe um mutismo indignado, o general disse o que todos os militares brasileiros gostariam de dizer: as Forças Armadas existem para defender o Brasil, não para destrui-lo sob pretextos politicamente corretos. Espero que a ocasião sirva para alertar o general quanto à verdadeira origem das pressões globalistas que ameaçam o futuro deste país, origem sobre a qual eu não poderia ser mais claro nem mais concludente do que fui nos meus antigos das últimas semanas.