Apostila do Seminário de Filosofia
QUARTA AULA
5 de abril de 1994
Transcrição de:
Heloísa Madeira,
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro.
2a parte
O mito da lógica nas interpretações de Aristóteles
É à luz desta observação que vamos ver que parece ter havido um enorme equívoco na interpretação de Aristóteles ao longo de muitos séculos. Porque sempre se considerou que a dialética, sendo uma ciência do raciocínio meramente provável, seria inferior à lógica, que tem exatidão matemática. E que, portanto, quando Aristóteles criou a lógica, superou e abandonou a dialética. Existe um grande historiador da filosofia grega – Solmsen – que é um dos grandes responsáveis pela consolidação desta interpretação. Segundo ele, a analítica anula a tópica (dialética). Como numa evolução, Aristóteles teria vindo por um caminho e chegado a um fim – primeiro foi professor de retórica; depois, desenvolveu a dialética, e finalmente se dedicou à lógica. Solmsen partiu também da premissa de que a ordem temporal deve representar uma ordem hierárquica. Aristóteles teria concedido atenção, no fim, à coisa mais importante, num sentido evolutivo. Ao que há uma objeção feita por um dos grandes intérpretes de Aristóteles, que é Éric Weil. Este escreveu pouco – não chegou a dez livros. Era um judeu alemão que quando viu o avanço do nazismo, fugiu da Alemanha para a França, adotou a língua francesa e nunca mais escreveu uma única palavra em alemão. Para o meu gosto, é o maior filósofo francês do século. Éric Weil faz uma observação mortal. Diz ele: “Se a lógica é tão mais importante que a dialética, por que Aristóteles nunca fez uma demonstração lógica de nenhuma tese?” Nenhum livro de Aristóteles é escrito logicamente, todos dialeticamente. Se Aristóteles descobriu uma coisa tão importante assim, por que nunca a usou? Depois de ter descoberto a técnica mais perfeita, por que continua usando a imperfeita até morrer?
Um exemplo de demonstração lógica se encontra na Ética de Spinoza – assenta as premissas e vai tirando conclusões, como numa demonstração matemática. Outro é o livro de Wittgenstein. Tractatus Logico- Philosophicus – coloca as premissas, axiomas, e continua em linha reta a dedução lógica. Aristóteles nunca faz isto, em momento algum. Ora, tendo descoberto uma técnica mais profunda, mais exata que a anterior, como iria ele resistir à tentação de usar a nova? Hoje em dia, qualquer garoto que aprenda um programa de computador mais sofisticado que o anterior, vai logo testar o novo. E Aristóteles nunca usou a nova técnica em nenhum dos textos conhecidos. Acontece, que dos textos conhecidos, acredita-se que temos – neste um terço que sobrou de sua obra – aproximadamente setenta por cento das obras filosóficas importantes de Aristóteles. Existem sérias razões filológicas para crer que, das obras filosoficamente decisivas, sobrou quase tudo. Pode ter faltado uma coisinha ou outra. De tudo o que se encontrou de Aristóteles depois de Andrônico, nada se achou que pudesse mudar gravemente as bases conhecidas do sistema aristotélico. Até no século passado se encontrou um novo texto. Uma obra conhecida como “A constituição de Atenas”, hoje incluída nas obras completas. Isto foi achado em 1890. É importante porque é de Aristóteles; mas trata só da constituição de Atenas, não é nada decisivo filosoficamente. Claro que se você achar uma receita de cozinha assinada “Aristóteles”, é um documento histórico, mas não vai abalar a interpretação do sistema. Historicamente importante é uma coisa, filosoficamente importante é outra. Não riam quando falo de receitas de cozinha, porque Aristóteles escreveu até um “Tratado de Economia Doméstica” – não há assunto que esteja para ele fora do mundo do conhecimento.
Então, os livros de lógica abarcaram as categorias, a interpretação, os tópicos, as duas analíticas. Existe um outro livrinho que se chama Das Refutações Sofísticas, que pode ser considerado ou como livro independente ou como capítulo final dos Tópicos. É mais fácil incluí-lo aí – menos um nome para decorar. É uma aplicação dos critérios dialéticos à refutação de determinadas argumentações sofísticas – ou erísticas. Erístico é um argumento que você lança para fins de combate. Não é argumento sério, a ele você recorre no calor da polêmica, só para criar dificuldades para o adversário. Uma discussão política na maior parte dos casos não chega a ser retórica, é apenas erística.
As obras teoréticas: Física e Metafísica
Depois das obras lógicas, vem a série das ciências teoréticas (aquelas cuja finalidade é tratar do real e dizer alguma coisa a seu respeito). A obra teorética esgota sua finalidade quando consegue pronunciar uma proposição ou juízo no sentido de que algo é alguma coisa ou é outra coisa. Responde à pergunta “o que é?” A lógica não pode responder a esta pergunta de jeito nenhum. Ela não trata de nada, não tem assunto. Mostra apenas os esquemas de pensamento possíveis. A série das obras lógicas pega o conjunto de tipos esquemáticos de raciocínios que fazemos sobre a realidade e os considera independentemente da realidade a respeito da qual eles versam. Portanto, a lógica só existe como ciência distinta por uma distinção mental, não real.
Vamos pegar uma ciência real qualquer – a física, por exemplo. Física para Aristóteles é a ciência da natureza e trata de algo real – o cosmos existente, que chega a nós através dos sentidos. Em seguida, você vê como raciocinamos – ou deveríamos raciocinar – a respeito da natureza, e isola o raciocínio de seu assunto. Ora, este isolamento só é feito por um truque mental, não real. Portanto, a lógica não tem um objeto real, tem apenas um objeto formal, definido idealmente. E isto é que a diferencia da ciência teorética. Ela não é uma ciência teorética porque theoréin quer dizer olhar, contemplar. A lógica não tem um objeto para o qual possa olhar. Seu objeto é totalmente inventado. A separação entre o raciocínio e seu conteúdo é, por sua vez, uma distinção simplesmente lógica, não uma distinção real.
Seguem-se os tratados de física. Tal como Aristóteles e o mundo grego a entendem, a física é o mundo dos fenômenos – o mundo que se apresenta diante de nós, considerado na sua totalidade. O sentido moderno da palavra “física” é muito mais restrito. Aquilo que hoje chamaríamos de biologia, e também a química se tivesse ocorrido uma química a Aristóteles, entrariam nos tratados de física. A física se divide basicamente em duas partes: primeiro, aquilo que se refere aos processos cósmicos; segundo, o que se refere aos seres vivos. Mais tarde, receberam os nomes de cosmologia e biologia, respectivamente.
A biologia, por sua vez, não se destaca do que hoje chamamos psicologia. Aristóteles jamais conceberia um estudo da psique que não tivesse uma raiz no corpo vivente. A alma é para ele como se fosse um aperfeiçoamento, um escalão superior da vida e não um fenômeno distinto. Vamos ver que esta inseparabilidade dos fenômenos psíquicos e orgânicos é uma das intuições centrais de Aristóteles, e que o tornará um filósofo particularmente apto a ser aceito no mundo cristão, porque o cristianismo é a religião da encarnação, da união inseparável entre alma e corpo.
Em seguida, deveriam vir os objetos matemáticos. E aí vemos que a divisão das ciências feita por Andrônico não coincide inteiramente com a divisão dos textos. Aristóteles não escreveu uma linha sobre matemática. E na divisão das ciências, a ordem seria esta: em primeiro lugar, os objetos físicos; em segundo, os matemáticos; em terceiro, a metafísica.
Aqui precisamos fazer um parêntese no seguinte sentido: quando dizemos que um objeto é um “objeto da natureza”, nós o estamos distinguindo de outros objetos possíveis. Entendemos que um triângulo não existe na natureza. E também entendemos que um tatu não existe matematicamente. Porém, a diferença entre o triângulo e o tatu é uma diferença de plano ou modo de existência. Porque na verdade os dois são existentes, os dois são reais. Mas estes objetos – o tatu e o triângulo – do ponto de vista de Aristóteles, são ambos abstratos, embora sejam reais. Abstratos porque o geométrico e o biológico são aspectos da realidade; aspectos que, na verdade, coexistem, mas que nós separamos por maior facilidade de examiná-los.
Quando dizemos que 2 + 2 = 4, isto é um fato bruto, ao qual porém só chegamos através de raciocínio. Mas também entendemos que não fomos nós que fizemos dar 4, entendemos que este resultado nos é imposto pela estrutura mesma dos números. Entendemos que as propriedades das figuras geométricas também nos são impostas. Entendemos que se dividirmos um quadrado pela diagonal, vamos encontrar dois triângulos isósceles e quantas vezes fizermos esta operação, encontraremos o mesmo resultado. Isto nos é imposto de maneira dura e implacável. Esta resistência, esta consistência própria dos objetos matemáticos faz com que não somente Aristóteles, mas os gregos em geral os considerem reais. No entanto, o tipo de realidade deles não é o mesmo que tem um tatu. O tatu pode ser visto – ele nos é imposto aos sentidos. A divisão do quadrado em dois triângulos isósceles não nos é imposta aos sentidos, mas tão logo raciocinamos, percebemos que isto não é montado por nós, mas também nos é imposto. As duas coisas são reais. Triângulos, quadrados, números e suas propriedades – existem efetivamente, são relações perfeitamente reais. Tatus e elefantes também são reais. Se decidimos separar uns dos outros, é porque, além de sabermos que são reais, introduzimos uma divisão na realidade, de acordo com um interesse que é nosso. Decidimos encarar alguns como fenômenos naturais, e outros como não naturais. Ou seja, o tatu e o triângulo se distinguem não pela sua realidade, mas por uma segunda qualidade que abre esta divisão no “natural” e no “não natural”. É por isso que Aristóteles os considera abstratos. Só são percebidos como distintos mediante uma abstração mental que separa o natural do não natural, embora ambos sejam igualmente reais.
O que é mais real? 2 + 2 = 4, isto é real. Não, você diz, real é o tatu que eu vejo com os olhos. Mas o tatu antes de nascer não existia e quando morrer não vai existir mais. Então ele é menos real que os números. O que eles são não diz respeito à sua maior ou menor realidade. Ambos são reais. Só que o sentido da palavra realidade, aí, se divide. Um é real de um jeito, outro de outro. Mas na realidade eles não são distintos, não podemos graduar a realidade em função deles. Representam distinções dentro da mesma realidade.
Ora, somente a realidade como tal e independentemente das suas distinções é que pode ser considerada concreta e real objetivamente. E isto é que é o conceito de Aristóteles do ser enquanto ser, a realidade enquanto tal. Para entender mais claramente isto, você pode imaginar o “tatu voador”. Ele não faz parte da realidade. E a conta 2 + 2 = 5 também não faz parte da realidade. Mas também entendemos que é mais fácil haver um tatu voador do que 2 + 2 dar 5. Se a evolução animal tivesse tomado um outro rumo, poderia haver um tatu voador, ou talvez o tatu pudesse falar sânscrito – nada impede. A impossibilidade do tatu voador é relativa e condicionada a determinadas condições do universo físico. Num outro planeta pode ser que existam tatus voadores, ou tatus filólogos. No filme “Guerra nas Estrelas” há um tatu filósofo – o guru do Luke Skywalker. Estas coisas não são inconcebíveis. Mas é inconcebível que 2 + 2 dêem 5. O tatu filólogo ou o tatu voador são idéias com as quais os nossos sentidos se revoltam. Mas somente os sentidos – a inteligência não. Ela admite esta hipótese, embora como remotíssima. Agora, existe a hipótese remotíssima de que 2 + 2 dê 5? Existe a hipótese de que em algum outro planeta 2 + 2 possam dar 5? Existe a hipótese de que em outro universo 2 + 2 dê 5? É inconcebível e seria auto-contraditório. Então você entende que há gradações de impossibilidade. O estudo do real só se esclarece quando se confronta o real com o irreal, e você vê estas distintas gradações de irrealidade. Este estudo faz parte de alguma ciência? Não, nenhuma ciência pode estudar isto, porque toda ciência já subentende estas distinções. Então Aristóteles se viu na contingência de ter de inventar outra ciência. Todas as ciências se fundavam em distinções deste tipo – real, irreal, possível, contingente, necessário. Todas elas se baseavam nisto e estas distinções não eram estudadas por ciência alguma. Este estudo das condições que definem o real, que o delimitam, que o separam do irreal, e também o possível do impossível, é o que se chama ontologia ou metafísica, ou filosofia primeira, ou como Aristóteles também a chamava, teologia. Por um curioso paradoxo, somente o objeto da metafísica é perfeitamente concreto, pois o real como tal não pode ser abstrato. Neste sentido é que triângulos e tatus são abstratos, em face da realidade como tal, do ser como tal.
As ciências práticas e técnicas
Em seguida vinham as ciências práticas que dizem respeito à ação humana, ou mais genericamente, à conduta humana, que Aristóteles dividia em duas partes: conduta do indivíduo enquanto tal e a conduta dele enquanto membro de uma sociedade em particular. Esta a distinção entre a ética (ou moral) e a política. Entre as ciências práticas Aristóteles inclui a economia, seja doméstica, seja política: a economia do cidadão e a da polis.
E finalmente as ciências que chamaríamos artísticas ou técnicas ou poéticas ou poiêticas. Estas estudam, não a conduta humana, mas o meio de produzir alguma coisa, algum objeto. Para entender a diferença entre ciências práticas e ciências poiêticas, é preciso entender a diferença entre ação imanente e ação transitiva. A primeira é a que esgota sua finalidade no próprio sujeito que faz a ação; a segunda, a que se define pelo resultado que ela produz num objeto. Por exemplo, respirar é típica ação imanente, quem respira é você mesmo e quem sofre o efeito da respiração é você mesmo. Pintar é uma ação transitiva. Se a pintura se esgotasse no gesto do pintor, independentemente do quadro, não a poderíamos chamar pintura de maneira alguma. Toda produção, todas as artes produtivas, pertencem à ação transitiva.
Nesta última divisão, Andrônico colocou a Poética, que ensina a fazer obras literárias e a Retórica, que ensina a fazer discursos para o foro, os tribunais, as assembléias populares. O discurso, peça escrita, é um objeto, embora um pouco abstrato. Ao passo que a conduta pessoal ou política não é uma coisa, mas uma ação. As ciências práticas visam à ação humana e as ciências poéticas visam ao objeto da produção humana. Esta divisão das obras está rigorosamente de acordo com a divisão das ciências feita por Aristóteles, com um senão que é aquele das matemáticas. Falta um tratado consagrado às matemáticas – coisa que Aristóteles não fez em parte por ojeriza pessoal: ele devia estar farto de vinte anos de estudos matemáticos na Academia. Na Academia só se falava em matemática, e o que irritava muito a Aristóteles era a tendência platônica de tirar conclusões filosóficas direto da matemática. As pessoas na Academia achavam que triângulos existiam como tatus… Aristóteles tem uma mente muito concretista, orgânica. A materialização de conceitos abstratos é muito irritante para ele.
Introdução ao texto de Tertuliano
A propósito do texto que vamos ler na próxima aula: Tertuliano é um dos apologetas cristãos. Temos aqui mais uma imagem do que pensaram sobre Aristóteles. O ano é 213. O texto está no livro de Tertuliano, De Anima. Não fala de Aristóteles em parte alguma. Dificilmente encontraremos alguma menção exclusiva a Aristóteles em todos os primeiros padres apologistas cristãos. Não houve uma discussão com Aristóteles, houve com a Academia platônica, o que incluía Aristóteles. Nos escritos dos apologetas, praticamente todos os filósofos eram englobados neste conceito, com exceção dos que pertencessem declaradamente a uma escola adversária. Como este não é o caso de Aristóteles, ele fica englobado dentro da Academia. E o curioso é que as objeções lançadas por Tertuliano contra a Academia são objeções aristotélicas, que Aristóteles poderia subscrever em gênero, número e grau. O texto é do ano 200 – seiscentos anos depois de Aristóteles e 263 anos após a edição dos textos por Andrônico. E o autor do texto, discutindo com a Academia e lançando contra ela objeções de conteúdo aristotélico, não tem disto a menor suspeita e imagina estar discutindo com a Academia como um todo. Isto prova que nos primeiros anos do mundo europeu e no final da civilização grega, a Aristóteles se aplica a famosa frase de Stanislaw Ponte Preta: “Sua ausência preencheu uma lacuna”. É uma ausência tão notável que ocupa um espaço. Uma espécie de Aristóteles está subentendido, pairando no ar. Não houve uma consciência de que havia uma obra aristotélica e que seria necessário se posicionar perante ela. Tanto que este indivíduo, discutindo com a Academia, se dirige coletivamente aos seus membros, sem ter a menor idéia de que um deles, Aristóteles, já havia dito coisas do mesmo teor. Também selecionei este texto porque ele mostra uma espécie de sentido da organicidade, da integridade do real, que é profundamente aristotélica. Só que Tertuliano não conhecia Aristóteles ou, se conhecia, não lhe tinha dado importância. Então, de onde tirou este espírito da organicidade do real? Ele obtém isto de uma inspiração cristã. O cristianismo inaugura uma nova forma de abordagem do real, que enfatiza também este sentido da organicidade, costurando os dois mundos que o platonismo havia separado, na pessoa do Cristo. O cristianismo não deve nada a Aristóteles, vem de uma fonte completamente diferente – a fonte judaica. Mas como o cristianismo tem esta idéia da Encarnação, isto é, de que Deus nasceu como gente, já não é possível considerar que existem dois mundos, um profano, aqui, outro, divino, lá; ou um semi-real, aqui, outro real lá para cima. Se este aqui é irreal, dizer que Deus virou homem é o mesmo que dizer que Deus sumiu, entrou na ilusão. Se existe uma gradação de setores da realidade ou de planos da realidade, nenhum deles pode ser considerado mais real do que o outro. É o que mais tarde estará no verso de um poeta do século XX, aliás ateu e comunista, Paul Éluard: “Há outros mundos, mas estão neste”. É tudo um mundo só. Este senso profundo da unidade do real está de fato subentendido, mas muito ocultamente e em germe, no próprio platonismo. Este só pode ter validade se a distinção dos dois mundos emana de uma unidade prévia; se a distinção for absolutizada, vira demência. O senso da unidade e organicidade do real é a inspiração aristotélica mais característica e ela aparece neste Tertuliano que pega este mesmo senso, não de fonte aristotélica, mas de uma fonte judaico-cristã.
Pergunta: — Mas o cristianismo não enfatiza a separação entre mente e corpo? Pelo menos é o que todo mundo diz.
— O cristianismo é uma das doutrinas a respeito das quais circulam mais mentiras. O combate ao cristianismo no Ocidente foi muito intenso, é muito intenso ainda. Como acontece com quaisquer tradições espirituais, em volta das quais sempre existem incontáveis grupos interessados não em discutir as doutrinas cara-a-cara, mas em deformá-las, para lhes atribuir absurdos. No cristianismo a doutrina da separação entre corpo e alma é anátema. Esta separação que os inimigos atuais do cristianismo lhe atribuem foi proposta por inimigos antigos, e o cristianismo paga assim pelo mal que lhe fizeram.
Um dos grandes segredos da história do Ocidente é a gnose. Quem entender isto, entenderá em conseqüência tanta, tanta coisa! Entre os vários inimigos do cristianismo, desde o começo, há um setor chamado gnose. Ela defende uma série de doutrinas que, quando expostas à luz do dia, se mostram realmente escandalosas. Em parte sabendo disto, ela mesma atribui suas doutrinas ao adversário.
Estudando a evolução da doutrina cristã, você verá que ela é realmente muito diferente nos textos, nas falas dos papas, em toda a realidade na evolução do dogma, e na versão que dela os intelectuais anticristãos apresentam ao público. Esta separação de alma e corpo é anátema. Tertuliano é uma das primeiras grandes expressões de doutrina cristã, e ele se bate precisamente por este ponto.
Do mesmo modo que existe uma história de dois mil anos da Igreja, existe uma história de dois mil anos da gnose. A Igreja é uma entidade única, cuja história se acompanha facilmente graças aos textos básicos reunidos numa coleção chamada “Patrística”. A grega tem mais ou menos 400 volumes e a latina 300, de mil páginas cada uma, está tudo lá documentado. Quem quer saber qual é a doutrina da Igreja vai lá e lê. Como ninguém o faz, pode-se atribuir qualquer coisa ao cristianismo. O cristianismo não é uma religião feita para ser compreendida por pessoas de baixa qualificação intelectual. É difícil. Então, é muito fácil entendê-lo pela versão popular inventada por intelectuais anticristãos e combatê-lo por aí mesmo. Quantos teóricos não falam que o cristianismo separa a alma do corpo, quando na verdade é o contrário. Isto é o mesmo que atribuir ao cristianismo a idéia de que Deus não existe.
As pessoas formam uma idéia do cristianismo a partir do que é divulgado por não-cristãos. Para saber o que é uma religião, deve-se perguntar a quem a conhece e a pratica, não ao seu adversário. Para saber sobre o judaísmo pergunta-se a um rabino, não a um nazista. Do mesmo modo, para saber o que é o comunismo não vou perguntar à CIA, tenho de ler Marx, Lênin etc. Só o cristianismo é que não merece este privilégio. As pessoas divulgam o cristianismo já propositadamente distorcido e tornado absurdo para ser mais fácil combatê-lo. As grandes obras de doutrina cristã ninguém lê.
Qualquer idéia tem o direito de ser defendida por ela mesma. Não se concede este privilégio ao cristianismo. As pessoas não têm idéia do que é a guerra pró e contra o cristianismo há dois mil anos. É uma coisa terrível. Ao mesmo tempo, não se pode identificar o cristianismo com a horda de padres e pastores que podem falar o que lhes dá na cabeça. O que a Igreja em si pensa está nas sentenças dos papas e nos chamados “doutores da Igreja”, um grupo seleto dentre os santos, cuja fala foi incorporada como parte do dogma – como por exemplo Sto Tomás de Aquino, Sta. Teresa de Ávila ou Sto. Afonso de Ligório. Não é o que qualquer pensador cristão fala que vale. Somente aquilo é pensamento da Igreja. Agora, um certo estado de espírito difuso que as pessoas chamam de cristianismo nada tem a ver com isto.
Aristóteles foi incorporado mais tarde ao cristianismo por Sto. Tomás de Aquino precisamente por aqui; este era o ponto de união: a unidade entre corpo e alma. Não havia uma contradição muito profunda entre o aristotelismo e o dogma cristão da encarnação. Ao passo que no platonismo essa conciliação já ficava mais difícil, o que não quer dizer que seja impossível.
Onde aparece uma tradição espiritual, uma revelação, uma eclosão de inteligência, surge necessariamente em seguida uma sombra e às vezes esta sombra tenta agir por conta própria, como se o rabo abanasse o cachorro. Do mesmo modo que existe um esforço humano em direção à verdade, existe um esforço no sentido contrário, no sentido do erro. A paixão pelo erro é incoercível, e certas pessoas, quando ouvem falar a verdade, isto lhes provoca raiva. Por exemplo, na Índia você tem o hinduísmo, a tradição vedântica, uma coisa maravilhosa – só que lá está cheio também de Rajneeshs, sociedades teosóficas etc, etc. – são parasitas. Do mesmo modo, você tem a Escola Platônica, um florescimento de inteligência, e logo em seguida, epicurismo, socráticos menores, um monte de parasitas que não entendem aquilo por falta de qualificação intelectual; então pegam um pedacinho da doutrina e o deformam. Isto é uma tendência humana – o homem é um bicho fraco e tende incoercivelmente ao erro.
Do mesmo modo, em relação ao cristianismo. É mais fácil inventar um cristianismo do que procurar o que realmente existe. Por exemplo, para falar de repressão sexual – “esta nossa velha desconhecida” – e provar que o cristianismo só tem repressão sexual, essa dona Marilena Chauí pega a estátua de Santa Teresa, por Bernini, e mostra que o êxtase de Santa Teresa, na estátua de Bernini, tem a fisionomia de um orgasmo corporal; de onde ela conclui que os êxtases místicos de Santa Teresa eram meros orgasmos disfarçados por muita repressão. Ora, em primeiro lugar, Bernini, que fez a estátua, nunca viu Santa Teresa. Em segundo lugar, como seria possível representar materialmente um êxtase espiritual senão sob a feição de um orgasmo físico? Agora, dona Marilena começa por atribuir à santa as características da estátua – o que é inteiramente absurdo. No século passado, um grande historiador – Michelet – pegou um quadro de Franz Hals e descreveu a psicologia do personagem — René Descartes — pelo quadro -, só que que Hals nunca tinha visto Descartes mais gordo. O caso ficou célebre como rateada de um grande historiador. Dona Marilena faz a mesma coisa, só que movida por uma intenção de “desmascarar”, e na verdade ela só se desmascara a si mesma. A necessidade que certas pessoas têm de depreciar os que lhes são espiritualmente superiores é o que se chama inveja espiritual, e é um dos sentimentos mais baixos que podem existir. Há pessoas que não gostam de Cristianismo porque um padre as suspendeu da aula ou lhes botou medo da masturbação. E fica aquela raiva de padre, que depois, travestindo-se de filosofia, é projetada sobre dois mil anos de Cristianismo. Mas não é filosofia, é rancor pessoal mesquinho. É querer medir a civilização com o tamanho das suas dorezinhas pessoais. Não se pode fazer isto. E condenar o Cristianismo é praticamente condenar a humanidade. Condenar qualquer destas grandes tradições – Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo – é condenar a humanidade. É preciso confiar um pouco no bom senso da espécie humana.
Muitas religiões nos parecem esquisitas quando vistas de fora, mas na realidade somos nós que não as estamos entendendo. O sujeito diz: “Olha, o cristianismo condenou o corpo humano”. Se fizeram isto, são uns animais. Mas vamos ver se fizeram mesmo. Não, não faziam; mas seu adversário, a escola gnóstica, fazia. Baseados no preceito de que o mundo foi criado não por Deus, mas por um deus rebelde que violando instruções do Todo Poderoso criou o mundo, que é portanto necessariamente mau, os gnósticos concluiam que a nós cabe destruir esse mundo mau. Para isto existem dois meios – ou pelo ascetismo total, ou pela gandaia cósmica. Existem vários evangelhos gnósticos. A escola tem uma característica. Não há uma palavra que ela use que não tenha sentido ambíguo. Por exemplo – a curtição do “todo”. Existem duas maneiras de perverter o sentido do real. Uma é isolando uma parte; outra, empastelando tudo no “todo”. Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de que tudo é Deus, sem distinção, é gnóstica. E a idéia da separação absoluta também é gnóstica. Porque no organismo humano, na vida biológica, na vida real, não existe separação absoluta nem indistinção absoluta. Tudo funciona harmoniosamente segundo um jogo de todo e parte, no qual os dois são inseparáveis. E é este o sentido profundo do aristotelismo. E é o que lhe permitirá mais tarde ser harmonizado com o Cristianismo, como poderia ser harmonizado com o hinduísmo, ou o judaísmo ou qualquer das grandes tradições, porque isto é a linha mestra do pensamento humano, que no fundo é o nosso senso-comum, o senso do homem são. Quando você faz a idealização do “todo cósmico”, da integração na consciência cósmica – isto só serve para o indivíduo perder o senso da sua distinção, da sua limitação. Se por outro lado você enfatiza a total separação – coloca um Deus inatingível, numa esfera tão remota que não dá para saber o que é -, isto também deixa você meio maluco. O esforço das grandes tradições é para manter o verdadeiro equilíbrio orgânico, o verdadeiro equilíbrio ecológico da alma. E esta é a grande contribuição aristotélica.
Este texto de Tertuliano documenta isto que a maioria das pessoas ignora: que a unidade indissolúvel de corpo e alma é um dogma cristão. E o que quer que sirva ou para cortar esta distinção ou para empastelar uma coisa na outra, não é cristão. Nem judaico ou islâmico. É gnostico. Estas questões são muito graves. Mas quando se estuda filosofia é para estudar questões graves, atuais e urgentes, não uma coisa remota e boba que aconteceu na Grécia. É para estudar as coisas mais fundamentais da nossa decisão nesta vida. Aqui e agora. Importa muito para a condução da nossa vida termos uma idéia exata do que é dimensão corporal, espiritual, anímica no homem. O unir e o distinguir são as operações fundamentais da razão humana. O isolar e o empastelar são as duas operações fundamentais da ignorância, a qual também é organizada e sistêmica a seu modo. Existem sistemas inteiros que são feitos só para isto. O epicurismo, por exemplo, é um sistema premeditado de confusões, não é um mero engano acidental. O engano, a partir de certo ponto, se torna maldade. Do mesmo modo que existe gente se empenhando há milênios para que a humanidade se coloque numa direção luminosa, inteligível, equilibrada, tem gente fazendo força no sentido contrário. Existem representantes das duas coisas. Estamos num momento dificílimo. O papa há dias falou: “Parece que junto com a nossa civilização está-se desenvolvendo uma civilização do Anticristo”. Agora é que ele descobriu? Isto já está aí há uns cinquenta anos. Mas os papas têm isto, sempre falam as coisas muito tarde. A Igreja Católica tem um aspecto paquidérmico. Leva tempo para se mexer, e por isto mesmo os inimigos acabam com ela. Mas todas as grandes religiões têm isto. São lentas. “Os moinhos dos deuses moem lentamente…” E o nosso grande poeta Murilo Mendes fala das “lentas sandálias do bem” e das “velozes hélices do mal”…